Contos e phantasias (Maria Amália Vaz de Carvalho, 1905)/As filhas de Victor Hugo

AS FILHAS DE VICTOR HUGO



Ha pouco tempo um escriptor francez desconhecido entre nós, o sr. Gustavo Rivet, publicou um livro intitulado Victor Hugo chez lui, no qual pinta o grande poeta francez, surprehendido, por assim dizer, na intimidade dos seus pensamentos, de seus gostos, das suas attitudes mais familiares.

Desce do pedestal onde a nossa phantasia se compraz em o collocar, o poeta da Lenda dos Seculos, e mostra-nol-o com a robe de chambre e os pantufos de qualquer honesto rentier do Marais.

Victor Hugo não perde em ser visto assim.

A sua alma amantissima, desnudada diante do nosso olhar corresponde positivamente a tudo que d’ella esperavamos.

O avô brincando no tapete do seu quarto de trabalho com a graciosa Joanninha que a Art d’être grand père immortalisou, não desmente de modo algum o justiceiro implacavel dos Châtiments.

Comtudo não é o pae de familia, que nós vamos hoje estudar em Victor Hugo, como o nosso titulo um tanto phantasista parece estar indicando.

As filhas de Victor Hugo, que nós tentaremos apresentar diante dos olhos das leitoras, não são as filhas do seu matrimonio de simples mortal, são as radiosas filhas do seu genio, as visões illuminadas que elle evocou com palavras de mysterioso encantamento d’esse Olympo inaccessivel onde vivem e nascem as creações immortaes dos grandes artistas.

Para nós que temos vivido da palavra do mestre, que temos seguido com enternecimento apaixonado todas as phases do seu espirito, essas mulheres ideaes é que são as suas verdadeiras filhas. Que nos importam as outras no fim de contas, se atravez d’estas é que elle se revelou tal como é?

Todos os artistas de primeira ordem criam um typo de mulher, em que consubstanciam e sinthethisam todos os sonhos que tiveram, todas as aspirações que tem concebido.

A mulher que elles fazem viver com a penna, se são poetas, com o escopro ou com o pincel, se são estatuarios ou pintores, não é como alguns querem que seja, a mulher que elles amaram: é mais do que isso, é a mulher que elles queriam amar!

Para essa é que a sua lyra tem cantos mais ardentes, o seu cinzel mais avelludadas caricias, a sua palêta côres mais suaves, a sua penna traços mais vivos, analyses mais delicadas, intenções mais graciosas e mais finas.

E como o coração dos homens é tão vasto que n’elle cabem dous cultos que se não prejudicam mutuamente, quasi sempre esses artistas de que fallamos tratam com o mesmo primoroso esmero dous typos de mulher bem diversos, e que representam como a dupla face do seu modo de sentir.

Um d’elles personifica a virginal creança cujas seducções mais irresistiveis se chamam innocencia, pudor, candura, ou ignorancia; lyrios que o orvalho da manhã corôa com um diadema de perolas, lyrios que uma aragem mais quente crestaria, e que o contacto de uns dedos brutaes lançaria por terra murchos e amarrotados. Outro, a mulher na plena posse da sua perigosa soberania, a mulher sereia que encanta e embriaga e mata, consciente dos seus maleficios, e gosando do seu fatal poder!

Consoante o espirito do artista se enamora da sombria belleza do mal, ou da immaculada candura do bem, assim elle trata com mais delicada predileção o eterno feminino que representa uma das faces do mesmo problema insoluvel.

Porque o homem grande ou pequeno, intelligente ou mediocre, ha de sempre amar a mulher debaixo de qualquer d’estas duas formas, ou antes debaixo d’ellas ambas.

Até os bons nas suas horas de perversão, nas crises em que no coração d’elles triumpha a porção de dominio que ha até mesmo na alma dos anjos, hão de sentir-se attrahidos por este mysterio luminoso e sombrio, que na arte pagã se chamou Circe ou Helena, que na edade média foi Melusina, que na Renascença foi Imperia ou Lucrecia Borgia, que os modernos emfim conhecem debaixo de tantos nomes, que o genio de tantos homens tem revestido de prestigio magico e de superior fascinação.

Os maus... escusado é dizer que os maus, só n’essas mulheres symbolos do mal, symbolos de todas as seducções insalubres, hão de achar a graça magnetica que arrasta e que enlouquece.

Não é por isso de admirar que todos os poetas as tenham cantado, que todos os romancistas as tenham descripto, mas na feição peculiar que cada um d’elles dá ao modo por que as estuda e as pinta, é que consiste a superioridade ou inferioridade do eterno typo.

Quanto ás outras, ás boas, ás candidas, ás angelicas, poucos as comprehendem na sua genuina e original pureza, e os que as souberam comprehender teem produzido obras primas!

Shakespeare é o poeta a quem se deve uma galeria mais radiosa e pura d’estas divinas creanças impeccaveis.

Umas absortas n’um sonho de eterna tristeza, envoltas como que n’um presentimento de inevitavel desdita, como Ophelia ou Desdemona; outras deixando florir nos labios frescos a rubra flôr da alegria matinal, mas todas lindas, e meigas e innocentes, todas fazendo crer no bem até os mais cynicos.

Victor Hugo tem, como Shakspeare, d’estas criações risonhas e sympathicas.

As mulheres de um como as mulheres do outro, téem na alma um pouco da alma das aves.

Téem a ligeireza alada do sonho, téem a graça imponderavel das visões.

Não ha ninguem que não quizesse ter por filha uma d’essas creanças borboletas; não sei se todas as quereriam para esposas.

E no entanto são boas, de uma doce bondade inconsciente que d’ellas se exhala como o aroma se exhala da flôr; mas tambem as creanças são boas, e comtudo ninguem como ellas sabe ser engenhosamente cruel.

Victor Hugo com a sua alma de forte, que não precisa de auxilio, e não precisa de guia, não comprehende a mulher como os modernos aspiram a encontral-a.

Não quer a companheira robusta d’esse athleta moral, que é o luctador de hoje; não quer a mulher de animo reflectido, de coragem viril, de consciencia illuminada e austera, que na hora do perigo ou na hora da vacilação criminosa, arrasta ao impulso da sua voz o espirito do homem esmorecido ou duvidoso.

Elle, cuja vida tem sido uma ascenção progressiva para o bem, elle, que não precisa d’outra bussola que não seja a luz interior que nunca se apaga nem bruxoleia, não teve necessidade de crear ao lado de Marius, ao lado de Didier, ao lado de Gennaro, ao lado dos seus altivos heroes, uma mulher forte que os auxiliasse e fortalecesse na grande lucta do bem!

Oh! não era de força que elles careciam.

Era de luz nas sombras do seu caminho sombrio!

Didier saberia resistir ás seducções da criminosa voluptuosidade; Hernani saberia responder ao sinistro som da trompa funeraria; Gennaro saberia confessar as suas indignações austeras e os seus odios inquebrantaveis; Marius saberia amar a honra impolluta como as virgens, brilhante como as espadas, implacavel como a eterna justiça.

Do que elles precisavam era de risos, de flôres, de caricias e de beijos.

Precisavam de quem os arrancasse á contemplação do seu deslumbramento ideal e lhes dissesse ao ouvido ternamente, melodiosamente:

— Olha! eu sou a graça, sou a poesia, sou o esquecimento, sou a embriaguez. Tenho só um nome, que vale por todos e a todos sobreleva: eu sou o amor!

E não são mais nada as mulheres creadas pelo genio portentoso de Hugo!

O amor, sempre o amor.

O amor egoista, o amor cego, o amor absorvente, exclusivo, com os seus pudores instinctivos, as suas ignorancias virginaes e as suas aspirações insaciadas a fatalidade irresistivel da sua força!

No seu primeiro drama, Hugo todo imbuido das ideias cavalleirescas do romanceiro, creou um typo de mulher que é talvez um dos mais bellos da sua formosa e radiante galeria.

Dona Sol sabe amar impetuosamente, ardentemente, e n’esse amor que é a nota predominante do seu caracter, encontra força para todas as resistencias viris.

Como ella é dôce e humilde enlaçada pelos braços valentes do seu senhor, do seu leão das montanhas, do seu principe bandido, do seu rebelde e indomavel cavalleiro!

Sorrisos, olhares, vozes, caricias, tudo é de velludo!

Um desejo d’elle, tem-na escrava! no entanto sabe por instincto, que elle o heroe, o forte lhe não póde pedir cousa alguma que a filha de um paladino das Hespanhas deva recusar envergonhada.

Quem dirá que aquella graça póde fazer-se indignação, que aquella flexibilidade ondeante póde transformar-se em revolta implacavel?

É que n’ella ha de tudo! porém esse tudo é simplesmente amor.

Appareça outro que a requeste, outro que ouse amal-a, e a pomba saberá ser leôa, para defender o seu thesouro!

Mas de que lhe vem a força com que ella domina, a indignação austera que a transfigura? Do coração.

As mulheres de Hugo não pensam, não raciocinam, amam! Isso lhes basta.

E se a fome ás vezes as perde, se a maldade e a perfidia do homem as arrasta, nunca o amor deixou de as redimir.

Para ellas o amor não é a perdição, é o resgate!

Vêde Marion, a cortezã incredula, a serpente de enganosas caricias, que um sentimento verdadeiro purifica e exalta, e que d’elle recebe uma nova e mysteriosa virgindade! Vêde Eponine, a filha das lamas de Pariz, a quem um olhar de Marius inocula o amor, o sacrificio, a abnegação e a heroicidade!

Mas — contradicção á primeira vista inexplicavel e que no fundo tem talvez uma significação sublime — o amor que transfigura e santifica e illumina as peccadoras, torna egoistas, torna ingratas as puras!

Eponine immola-se, porque ama, e Cosette, porque ama, esquece tudo que não seja o seu amor, e com a mesma pequena mão com que abre a Marius os paraisos inacessiveis enterra o punhal no seio de João Valjean!

Marion, de Magdalena impudica e triumphante, levanta-se Magdalena arrependida e piedosa, e Esmeralda não tem a esmola, a caridade de um sorriso bom para Quasimodo!

Porque?

Ah! é que umas são a ignorancia na sua perfeição mais divina, outras guardam na bocca o gosto amargo de todos os fructos vedados que teem devorado!

Umas não conhecem nada para além da nuvem iriada que as envolve e lhes intercepta o mundo, outras possuem a medonha sciencia que é feita de todas as decepções, de todas as agonias, de todos os tedios, de todos os remorsos, de todas as nauseas da vergonha e do desprezo proprio!

Umas entram no amor, triumphantes, immaculadas, curiosas, ébrias de harmonias nunca ouvidas, sedentas de alegrias nunca sonhadas, absortas pela radiante visão que as transporta a mundos desconhecidos.

Viviam d’antes? tinham affectos? prazeres? distracções?

Não sabem.

Sabem que as inundou a luz de um olhar, e que, a essa luz, viram o que nunca tinham visto, esqueceram tudo mais que fôra seu.

As outras vão alli á porta d’aquella região de que hão de ser as eternas exiladas, pedir a esmola de um perdão, a caridade de umas horas de esquecimento.

E em troca d’esse consolo supremo a que se julgam sem direito, são capazes de todos os sacrificios, de todos os renunciamentos sublimes que inventa a mulher depois de ter perdido a esperança de ser feliz.

Leitora, estás cansada das chatas e incaracteristicas figuras que tens encontrado na vida real? Entristecem-te dolorosamente os typos hediondos ou repugnantes da moderna arte?

As Gervasias, as Bovarys, as Fannys, as peccadoras da França juvenil?

Pois bem, deixa que desfile por diante do teu olhar pensativo a gloriosa legião das filhas de Victor Hugo.

Oh! crê que não aprenderás com ellas cousa alguma que rebaixe o teu espirito, que fira o teu coração, que surprehenda cruelmente o teu entendimento.

Ellas sabem todas o que é o amor, muitas o que é o arrependimento, o remorso, a vergonha, a expiação; nenhuma sabe o que é o triumpho impudico do vicio, a ostentação criminosa das vaidades mundanas, a impenitencia immoral das que medram no meio do crime.

As peccadoras contar-te-hão a dolorosa historia das suas amarguras, as virgens a doçura sonhadora dos seus extasis!

Amaram, acreditaram, sentiram na plenitude do coração que a vida é boa, e que o paraiso póde encontrar-se n’um canto da terra.

Não sabem nada de toilettes, de pequenas intrigas, de namoros, de vicios mesquinhos, de invejas e de tagarelices; atravessaram o mundo com os olhos fitos n’outros olhos, com as mãos enlaçadas n’outras mãos, com a alma a cantar-lhes um hosanna de mysticos arroubos!

Se queres estudar os escaninhos caprichosos de um coração de mulher bonita e garrida, não as procures, mas tambem lhes não peças que te fallem nos nossos piedosos e obscuros deveres de todos os dias.

São as hallucinadas do amor! Arrastou-as uma tempestade para outras espheras ardentes onde se não vive a vida que conhecemos!

Vê tu — Esmeralda! que bem posto nome!

Toda ella scintilla ao sol como a pedra preciosa que lhe serviu de baptismo; os seus dedos de gitana crestados e finos arrancam ao pandeiro do seu paiz doidos e extranhos sons! Fascina com um olhar inconsciente dos seus olhos de velludo, com uma nota da sua voz crystallina, com um meneio do seu corpo de serpente.

Que sabe ella da vida? Nada; a não ser que a vida é bella, visto que ha dous olhos que ao fixar nos seus os banharam de fulgor!

E Cosette! vive ao pé d’ella um enygma sombrio! um espirito sobrehumano! um luctador d’estas luctas interiores cujo reflexo se estampa na frente que as encerra.

Ella nunca interrogou essa alma, e nunca tentou decifrar esse enygma, e nunca sequer comprehendeu a existencia d’essas luctas.

Ao seu companheiro triste, humilde, heroico, adoravel ella deve durante quinze annos a ventura mais perfeita que póde gosar-se na terra.

Satisfez-lhe todos os desejos; todos os brinquedos d’aquella fada, encarregou-se de os fornecer a natureza na liberdade plena, nos seus idyllios primaveris! Estava na escuridão, e deram-lhe luz; era escrava fizeram-n’a rainha.

Não importa! Marius appareceu e Cosette louca, deslumbrada, esquecida, deixa morrer de dôr o amigo da sua risonha mocidade.

É má?

Não; é ignorante. Não sabe que se morre visto que elle vive na posse de uma ventura que nunca até alli conhecera.

Não sabe que se tem saudades, porque ao pé de Marius nunca esse espinho lhe mordeu no coração!

Pois é possivel ser desgraçado quando eu sou tão feliz! pergunta tacitamente com barbaridade que se ignora, cada um dos sorrisos de ventura que ella atirara em redor de si, sem se importar onde lhe vão cahir!

Ai! Cosette, Cosette! eu gosto de ti, borboleta, ébria de luz! és uma das visões luminosas que ficarás para sempre moça e querida! és uma estatua branca que ninguem ousará mutilar e que os seculos verão erguida no teu pedestal de flôres! Mas como eu te amaria muito mais ainda se em vez de seres o Amor fosses o Sacrificio!

Um dia Victor Hugo pediu ás neblinas matinaes dos climas do norte, uma porção de renda branca e transparente com que ellas corôam a crista das montanhas e... fez Déa!

Que doce, vaporosa e lendaria visão!

Não ha n’ella cousa alguma que seja realidade!

Toca na terra ao de leve; não tanto que pareça filha d’ella, não tão pouco que lhe não seja dado consolar alguem votado ás dores sem consolo.

É cega!

Amada por um monstro sabe verter-lhe n’alma as alegrias de um Deus!

Não vê o homem que a ama, vê o amor de que elle a veste!

Abençoada cegueira que faz dous felizes!

Ao lado d’ella — supremo contraste! — sorri Josiane com o seu sorriso de deusa pagã!

No olho azul da patricia ingleza scintilla em chispas uma diabolica ironia.

Josiane é a amante do impossivel! Procura o que nunca ninguem achou!

Quer um sonho que a sacie, o amor de um Titan, ou de um cyclope, o amor de Apollo ou de Polyphemo!

Estranha figura, producto doentio de uma noite de febre!

Dona Sol, Maria de Neuburgo, Marion, Eponine, Cosette, Déa, quantas figuras radiosas, quantas humanições esplendidas da mulher sonhada!

Nas horas de desalento ou de amarga duvida, nas horas em que as miserias que nos cercam, nos fizeram encarar a vida pelo seu aspecto mais desolado e mais escuro olhemos para ellas!

Dir-nos-hão os poetas de hoje que ellas não existem, e, o que é peior, que ellas não puderam existir nunca.

Oh! é bem triste, é bem esteril a arte que só trata de rebaixar o que em nós é de mais elevada essencia, e só quer que vejamos a fatalidade brutal do instincto, onde viamos d’antes a fatalidade mais nobre do sentimento.

Não acreditemos o que elles nos dizem, porque na sua preoccupação exagerada do horrivel, elles mentem muito mais do que os outros mentiam na sua preoccupação exagerada do bello!

Estes reunindo todos os vicios e hediondezas que encontraram dispersos n’uma só figura, conseguem apenas crear... um monstro, um ser hybrido e infecundo que a ninguem aproveita!

Os outros synthetisando n’uma filha do seu genio as harmonias, as feições, os encantos, que estudaram e amaram em toda a natureza, conseguiram alguma coisa mais!

Crearam o ideal immutavel e eterno e ensinaram-nos a fitar n’elle os olhos da nossa alma, e a invocal-o como um consolo adoravel nas nossas horas de desalento e de agonia.

 
FIM