Curso de litteratura portugueza e brazileira (Sotero dos Reis)/Tomo Primeiro/Secção I/Licção III

A língua portuguesa, senhores, formou-se, segundo se viu na sessão precedente, da corrupção do Latim, assim como a língua espanhola sua irmã, e depois desta; se um século ou cinco quartos de século mais tarde, é coisa que se não pode bem determinar, por falta de dados que nos guiem em semelhante indagação. Nesse ponto tudo é dúvida, tudo é noite. O mesmo que aqui adianto, o infiro de documentos posteriores e da época da fundação da monarquia portuguesa, a qual precedeu à da formação da língua, como o atesta a história.

No ano de 1093, de nossa era, o conde D. Henrique, francês de origem, tomava posse das terras de Portugal que lhe foram doadas por seu sogro, D. Afonso VI, rei de Leão e Castela, como dote de sua filha, D. Tareja, ou Teresa, mulher do Conde. Constava essa doação dos territórios do Porto, entre Douro e Minho, Beira, Trás-os-Montes e da parte da Galiza que se prolongava até o Castelo de Lobeira, com faculdade de poder, o conde estender suas conquistas para o Algarve. Por morte do conde em 1112, sendo de menor idade seu filho e herdeiro D. Afonso Henriques, governou Portugal D. Teresa, tomando o título de rainha. Em 1139, foi D. Afonso Henriques alevantado o 1.º rei português no famoso campo de batalha de Ourique, onde venceu a cinco reis Mouros contra ele reunidos.

A língua que se falava nas terras da doação do conde, era sem dúvida o Castelhano e o Galego, dialeto deste, visto como umas foram desmembradas de Leão ou Castela e outras de Galiza, e só depois dilatado o território português até o Algarve, inclusive por conquistas dos reis sucessores do conde, feitas sobre os Mouros.

Os documentos que nos restam do primeiro reinado, como a canção de Egas Moniz Coelho, que vivia no tempo de D. Afonso Henriques, morto em 1185, a canção de D. Afonso Henriques, a qual se atribui a data de 1121, e outra que começa “No figueiral figueiredo” a que se assina a de 1112, mas que é evidentemente de data posterior, pouco ou nada importam a questão da formação da língua, porque tanto podem provar em favor do Galego, como do Português que então se falava, mal distinto do Castelhano. Os dois idiomas não se achavam ainda bem discriminados; e tais documentos são apenas apreciáveis como um espécime da mudança, que principiava a operar-se na língua vulgar do novo Estado fundado pelo conde D. Henrique.

O primeiro monumento incontestável que possuímos de língua portuguesa é o Cancioneiro, do rei D. Dinis, que começou a reinar em 1279. A linguagem desse documento, de fins do século XIII, é sim rude e tosca, como o pode ser um misto de latim bárbaro com termos godos, árabes e catalães, mas já é portuguesa em sua forma e índole a ponto de não poder ser desconhecida, e bem distinta do Espanhol que então se falava; do que nós podemos convencer, comparando-a com a do primeiro monumento de língua espanhola do mesmo século, ou romance do Cid por mim citado no precedente discurso.

D. Dinis, rei poeta e versado no conhecimento da língua e dos autores latinos, mereceu o nome de sábio aos seus contemporâneos e o foi de certo, porque tanta ciência em um rei era um verdadeiro prodígio naqueles tempos de crassa ignorância. D. Dinis não só cultivou, mas também animou as letras, fundando, em 1290, a Universidade de Lisboa, que pouco depois passou a ser de Coimbra, e ordenando que alguma obras estrangeiras fossem traduzidas em língua vulgar. Foi ele, talvez, o primeiro que previu o que podia vir a ser o português, compondo o seu Cancioneiro em vulgar, e convidando com o seu exemplo outros a imitá-lo. Quando apareceu o Cancioneiro desse sábio rei, o Latim era ainda a língua em que geralmente se escrevia.

Do século XIV, não me chegou às mãos documento algum, por onde possa eu avaliar as modificações por que foi passado o português até o seculo posterior, se bem que existia desse século o Nobiliário³⁰, de D. Pedro Afonso, conde de Barcelos, filho natural do rei D. Dinis, cuja impressão foi feita em 1640.

Do século XV, temos para ajuizar do desenvolvimento da língua três preciosos documentos, o Leal Conselheiro, do rei D. Duarte, a Crônica de Guiné, de Gomes Eanes de Azurara.

Antes, porém, de os apreciar devo referir um fato que muito concorreu para o aperfeiçoamento do Português, dando-lhe carta de alforria na expressão do Visconde Almeida Garrett. Até fins do século XIV, todos os atos e instrumentos públicos eram ainda escritos em Latim. D. João I, o regenerador da monarquia portuguesa, o rei mais popular que teve Portugal, foi o primeiro que ordenou em 1400 que tais atos e instrumentos fossem escritos em vulgar. Esta sábia medida, que tornou o português língua oficial e forense, deu um grande e eficaz impulso ao seu desenvolvimento.

A linguagem do Leal Conselheiro, do rei D. Duarte, que começou a reinar no ano de 1433, já é um português muito mais correto e limado que o do Cancioneiro, do rei D. Dinis, onde ainda se deparam fezes godas e mouriscas; um português, em suma, que já pode ser facilmente entendido pelos portugueses e brasileiros de hoje, com exceção de alguns termos obsoletos.

D. Duarte, rei filósofo, contemporâneo do célebre Cosme de Médicis, duque de Florença, foi um dos principais mais ilustrados da Europa naquele tempo, e irmão do infante D. Henrique que, sob seus auspícios, deu princípio aos descobrimentos feitos pelos Portugueses em África e dos quais se originou, depois, a passagem do Cabo de Boa Esperança e o descobrimento da Índia. O seu Leal Conselheiro atesta muita e variada instrução em todo gênero de conhecimentos.

A linguagem da Crônica dos Reis, por Fernão Lopes, o pai da História Portuguesa, é um português não menos correto e depurado, que o do Leal Conselheiro. Por este documento que começou a ser escrito no reinado do rei D. Fernando, aclamado rei em 1367, e cujo único título de glória foi haver animado o primeiro historiador português, pode se inferir que o Português só entrou a aperfeiçoar-se de meados do século XIV, ou antes do último período desse século em diante. Até então, o Galego era idioma mais perfeito que o Português, porque o português Vasco de Lobeira, que uns fazem contemporâneo do rei D. Dinis, e outros posteriores, mas que foi provavelmente do primeiro período do século XIV, preferiu escrever em Galego a sua história ou romance de Amadias de Gaula. Ainda em princípios do século XV, escrevia o português Macias os seus versos em Galego.

A linguagem da Crônica de Guiné, por Gomes Eannes de Azurara, o primeiro historiador dos descobrimentos dos Portugueses, em África, e dos feitos do infante D. Henrique, é um Português ainda pela aventura mais correto e depurado do que o dos dois precedentes documentos. Azurara, que escreveu no reinado de D. Afonso V, filho e sucessor de D. Duarte, mereceu a justo título ser elogiado por João de Barros como um escritor de mérito.

A língua começava então a adquirir o necessário polimento, porque o Português de todos esses documentos já é um Português puro com todos os seus principais idiotismos, orações do particípio na ordem inversa, infinitivos pessoais, e inversões frequentes.

As terminações agalegadas dos verbos em ades, ade, edes, ede, ides, ide, do tempo do rei D. Dinis, já se acham neles aportuguesadas em ais, ai, eis, ei, is, i, com alguma leve diferença apenas da ortografia que seguimos hoje. A apreciação dos escritos do século XV, ou se atenda ao torneio da frase, ou à estrutura do período, revela da parte de seus autores um grande e apurado estudo da língua latina.

Deram-se, no fim deste século, acontecimentos de ordem tal, que, elevando a seu auge a glória de Portugal e Espanha, mudaram inteiramente a face do mundo. Em 1487, no reinado do rei D. João II, passou Bartolomeu Dias além do Cabo da Boa Esperança. Em 1493, descobriu, Cristovão Colombo, a América.

Em 1498, descobriu, Vasco da Gama, a Índia já no feliz reinado do rei D. Manuel, um dos maiores reis que teve Portugal. Em 1500, descobriu, Pedro Alvares Cabral, o Brasil.

Depois desses descobrimentos, as conquistas e o comércio de Portugal tomaram proporções gigantescas; as suas armadas senhorearam os mares; e as Quinas Portuguesas foram levadas a China e ao Japão. Veneza que fazia, então, o comércio do Levante pelo Mediterrâneo, decaiu de seu antigo esplendor e grandeza, porque os portugueses abriram novo e mais largo caminho para o Oriente. Portugal foi por muito tempo, não obstante o seu acanhado território na Península, um dos Estados mais florescentes e poderosos da Europa. A literatura floresceu com a nação e a língua enriqueceu-se de cópia de novos termos ou de novos sinais de ideias.

Nos documentos da primeira parte do século XVI, nota-se o grande e rápido desenvolvimento que teve a língua em muito pouco tempo. Desses, os que se apresentam a nossa apreciação como principais, são:

A Crônica do rei D. João II, por Garcia de Resende.

As obras, de Gil Vicente.

A menina e Moça, de Bernardim Ribeiro.

As obras, de Francisco Sá de Miranda.

A linguagem destes escritos, já é um Português culto e superior a todos os respeitos a dos escritos do século anterior, nos quais ainda se nota rudeza de forma e pobreza de expressão.

Garcia de Resende, o Cronista de D. João II e seu moço da câmara e privado, se não apresenta na sua prosa o número e a harmonia da de João de Barros, já tem menos esperteza, que os que o precederam na ordem cronológica.

Gil Vicente, o fundador do teatro Português, tem muita naturalidade, abundância e sal nos seus autos e tragicomédias. É a justo título que lhe dão o nome de Plauto Português.

Bernardim Ribeiro, o primeiro romancista Português, já tem mais número e harmonia em sua prosa do que Garcia Resende, e, nos seus versos, muita naturalidade e melancolia. É sobretudo admirável na expressão do sentimento, qualidade em que ninguém o excede, a não ser o grande épico português.

Sá de Miranda, que fez uma revolução na poesia portuguesa, introduzindo nela o verso hendecassílabo, ou verso branco italiano, apresenta nas suas comédias o modelo de uma prosa muito castigada, e, nos seus versos, mais gosto e variedade do que os que procederam. É um sábio e profundo moralista, cujas obras denunciam grande estudo da filosofia moral.

A língua já tinha então adquirido o necessário polimento e acomodava-se já a todo o gênero de assuntos. As terminações em ou dos nomes e verbos, usadas ainda no tempo de Fernão Lopes, do rei D. Duarte e de Azurara, foram convertidas em ão nasal, longo ou breve. A alteração na ortografia, que se nota nos escritores da primeira parte desse século, acusa também alteração na pronúncia.

Cumpre fazer aqui uma observação; é que o Português, filho do Latim bárbaro, tanto mais se aproxima do Latim culto, quanto mais caminha para a sua perfeição. Mas foi justamente nas obras dos escritores, da segunda parte do século XVI, que o Português adquiriu toda a sua perfeição e chegou ao seu maior auge de esplendor, como língua culta.

Mencionarei aqui apenas os principais: Antonio Ferreira, autor da primeira tragédia regular, que apareceu na Europa, e de diversas poesias líricas e didáticas; João de Barros, o Tito Lívio Português, autor das Décadas da Ásia, que compreendem os feitos dos Portugueses na conquista e descobrimento dos mares e terras do Oriente; Luís de Camões, o Homero Português, autor dos Lusíadas e de muitas poesias líricas de todo gênero.

Grandes, por certo, foram os serviços que prestaram à língua os dois primeiros, enriquecendo-a por diversas formas e injustiça fora desconhecê-lo.

Ferreira, grande imitador dos clássicos gregos e latinos, e profundo conhecedor do coração humano, introduziu nela muitos modos de dizer concisos, enérgicos e até graciosos que, em vão, procuraríamos nos escritores que o precederam.

João de Barros, homem versado em todo gênero de literatura, cujo estilo animado, pitoresco e, por vezes, grandioso, é parte para que ainda hoje o leiamos com prazer e interesse. Foi o primeiro escritor que deu à prosa portuguesa número, harmonia e majestade ou a forma mais conveniente. Para chegar a esse resultado, grande e profundo conhecedor devia ele ser do idioma que tão eloquentemente manejava.

Mas nenhum deles prestou tantos serviços à língua como Camões, o maior gênio do seu século e um dos maiores dos tempos modernos, porque nenhum lhe deu, como ele, tanta riqueza de expressão, tanta elegância, elevação, majestade, flexibilidade e graça. A língua portuguesa é, nas mãos de Camões, um instrumento perfeito, que se adapta a todos os tons. Nenhum dos poetas, que o precederam, manejou-a tão bem como ele. Nem podia deixar de ser assim, porque o seu imortal poema é uma enciclopédia, como a de Homero e como a de Dante⁵¹, a qual compreende toda poesia, toda história, toda ciência do século em que ele viveu.

Camões foi quem fixou o Português pela força de seu gênio, assim como Homero fixou o Grego e Dante, o Italiano. Tanto é assim, que o Português dos seus Lusíadas, publicados há coisa de três séculos, é ainda o mesmo Português culto em que hoje nos exprimimos, com exceção apenas dos termos poéticos.

Resta acrescentar que a língua, que vedes definitivamente fixada pelo maior poeta português, acompanhou sempre o progresso da literatura, que nunca floresceu tanto como no século XVI, pois, além do que ficam citados, muitos foram os poetas e prosadores, que a enriqueceram com seus escritos na segunda metade desse século. As letras acompanharam pelo seu turno o engrandecimento da nação portuguesa, que era então senhora de todo o comércio do Oriente e possuidora de vastos territórios e importantes cidades em África e Ásia, bem como do Brasil que começava a provar-se. A religião Católica Romana tinha sido levada pelos missionários portugueses não só a África e a América, mas até as mais remotas partes da Ásia e Oceania; e a literatura florescia também como a religião, porque os missionários aprendiam as línguas orientais no intuito de propagar a fé. Portugal havia, em suma, atingido o maior auge de sua glória política e literária; e o século XVI foi com razão chamado a sua idade de ouro.

Em breve, porém, começará ele a decair de tamanho esplendor e as letras com ele, pela fraqueza dos sucessores dos dois grandes reis D. João II e D. Manuel I. O período que se seguiu ao de tanta glória, preludiado pela desastrosa jornada de África, na qual o inexperiente e infeliz rei D. Sebastião sepultou consigo a flor da nobreza do reino, foi até um dos mais aflitivos para a nação portuguesa que se viu sujeita ao domínio estrangeiro e perdeu quase todas as suas conquistas. Não se antecipem podem os fatos.

Devo por aqui termo ao meu discurso, para continuar com a mesma matéria nas preleções seguintes.