Descobrimento Prodigioso e suas Incalculaveis Consequências para o Futuro da Humanidade/Quadragesima Ascenção Franceza ao Monte Branco




QUADRAGESIMA
ASCENÇÃO FRANCEZA
AO MONTE BRANCO
QUADRAGESIMA
ASCENÇÃO FRANCEZA
AO MONTE BRANCO
POR
PAULO VERNE
TRADUCÇÃO
DE


SALVADOR DE MENDONÇA

RIO DE JANEIRO
B. L. GARNIER
LIVREIRO-EDITOR DO INSTITUTO HISTORICO
65—RUA D0 OUVIDOR—65

(13)

QUADRAGESIMA
ASCENÇÃO FRANCEZA
AO MONTE BRANCO


A 18 de Agosto de 1871, chegava eu a Chamunix com intenção inabalavel de fazer, custasse o que custasse, a ascenção do Monte Branco. Minha primeira tentativa em 1869 fora sem resultado. O mào tempo não me deixára chegar sinão aos Grands Mulets. Desta vez, as circumstancias se me affiguravam muito mais favoraveis, porque o tempo, que parecia querer melhorar na manhã de 18, mudou bruscamente ao meio dia. O monte Branco, na phrase do logar, pôz a carapuça e começou a fumar o cachimbo » ; o que, em termos menos tropologicos, quer dizer a neve, impellida por violento sudoeste, formava-lhe no cimo um comprido pennacho dirigido para os precipicios insondaveis da geleira da Breuva. Esse pennacho indicava aos touristas imprudentes o caminho que teriam levado, bem apezar seu, si tivessem ousado affrontar a montanha.

A noite seguinte foi pessima ; a chuva e o vento luctaram à porfia, e o barometro, abaixo de variavel, conservou-se d'uma immobilidade desesperadora.

Ao amanhecer, entretanto, alguus trovões annunciaram modificação no estado atmospherico. Para logo desnublou-se o céu, a cadeia do Breveut e das Agulhas Vermelhas descobriu-se O vento, voltando-se para nordeste, fez apparecerem acima do desfiladeiro de Balme, que fecha o valle de Chamunix ao norte, algumas leves nuvens isoladas e em frócos, que saudei como mensageiras do bom tempo.

Apezar destes felizes presagios e posto que o barometro houvesse subido um pouco, o sr. Balmat, guia-mór de Chamunix, declarou-me que não devia ainda pensar em tentar a ascenção.

— Si o barometro continuar a subir, accrescentou, e si o tempo se mantiver, prometto-lhe guias para depois d'amanha, para amanhã mesmo talvez. Emquanto isso, para ter paciencia e para desenferrujar as pernas, aconselho-lhe que faça a ascenção do Brevent. As nuvens vão dissipar-se, e o sr. poderá observar exactamente o caminho que tem de seguir para chegar ao cimo do Monte Branco. Si, apezar disso, tiver bom presentimento, tente lá a aventura !

Esta tirada, recitada com certa emphase, não era muito tranquillisadora e dava que reflectir. Aceitei entretanto a proposta, e elle designou para acompanhar-me o guia Ravanel (Eduardo), rapaz muito frio e muito dedicado, perfeitamente conhecedor da sua profissão.

Eu tinha por companheiro de viagem o meu compatriota e amigo o sr. Donatien Levesque, tourista apaixonado e caminhante intrepido, que fizera no começo do anno anterior uma viagem instructiva e muitas vezes penosa á America do Norte. Visitára-a já pela maior parte e dispunha-se a descer para a Nova Orléans pelo Mississipi, quando a guerra veio atalhar-lhe os projectos e chamá-lo outra vez à França. Tinhamo nos encontrado em Aix-les-Bains, e combináramos que, logo que acabasse o nosso tratamento, fariamos junctos uma excursão à Saboia e á Suissa.

Donatieu Levesque estava informado das minhas intenções, e como a saude não lh'o permittia, segundo suppunha, tentar tão longa viagem sobre os gelos ficára convencionado que esperaria em Chamunix a minha volta do Monte Branco, e faria, durante a minha ausencia, a visita tradicional ao mar de gelo pelo Montauvers.

Sabendo que eu ia ao Brevent, o meu amigo não hesitou em acompanhar-me. De resto, ascenção do Brevent é um dos passeios mais interessantes que se podem dar em Chamunix. Essa montanha, da altura de 2,525 metros, não é mais do que um prolongamento da cadeia das Agulhas Vermelhas, que corre do sudoeste para o nordeste, parallelamente à do Monte Branco, e fórma com ella o apertado valle de Chamunix. Do Brevent, por causa de sua posição central exactamente defronte da geleira dos Bossons, pode-se seguir, durante quasi todo o seu trajecto, as caravanas que emprehendem a ascenção do gigante dos Alpes.Porisso é muito frequentado.

Partimos ás sete horas da manhã. Em caminho, ia-me eu lembrando das palavras ambiguas do guia-mór ; inquietavam-me um tanto. Porisso, dirigindo-me a Ravanel, perguntei-lhe :

— Já fez a ascenção do Monte Branco ?

— Sim, senhor, respondeu-me, uma vez, e é bastante. Não cuide absolutamente de lá voltar.

— Com os diabos ! disse eu, e eu que tenho tenções de tentá-la !

— O sr. póde o fazer, mas eu é que não o acompanho. A montanha não está bôa este anno. Ja se têm feito muitas tentativas, só duas foram bem succedidas. Na segunda; tentaram-na duas vezes. Demais, o accidente do anno passado esfriou um pouco os amadores.

— Um accidente ! Qual foi ?

— Ah! o sr. não sabe? Eu lhe conto. Uma caravana, composta de dez guias e portadores e de dous inglezes, partiu em meiados de Setembro para o Monte Branco. Viram-na chegar ao cimo, depois, alguns minutos depois, desappareceu n'uma nuvem. Quando dissipou-se a nuvem, não se avistou mais ninguem. Os dous viajantes com sete guias e portadores haviam sido arrebatados pelo vento e precipitados para o lado de Cormayeur, sem duvida na geleira da Breuva. Apezar das mais activas pesquizas, não se lhes puderam encontrar os corpos. Os outros tres foram achados a 150 metros abaixo do cimo, nos Petits-Mulets. Tinham passado ao estado de pedaços de gelo.

— Mas então esses viajantes deviam ter commettido alguma imprudencia ? disse eu a Ravanel. Que loucura partir tão tarde para semelhante expedição ! No mez de Agosto é que a deviam ter feito !

Por mais que me debatesse, essa lugubre historia turbilhonava-me no espirito. Felizmente o tempo desannuviou-se logo e os raios d'um bello sol vieram dissipar as nuvens que ainda velavam o Monte Branco, e, ao mesmo tempo, as que me obscureciam o espirito.

A nossa ascenção realisou-se satisfactoriamente. Sahindo dos chalets de Planpraz, situados a 2 062 metros, sóbe-se por destroços de pedras e pôças de neve até à base de um rochedo chamado a Chaminé, que se escala a pés e mãos. Vinte minutos depois, está-se no cimo do Brevent, d'onde a vista é admiravel. A cadêa do Monte Branco apparece então em toda a sua magestade. O monte gigantesco, solidamente firmado nas poderosas bases, como que desafia as tempestades que lhe resvalam pelo escudo de gelo sem tocar-lhe, ao passo que essa multidão de agulhas, de pisos, de montanhas, que lhe são cortejo e levantam-se á porfia em torno delle, sem o poderem igualar, mostram evidentes signaes de lenta decomposição.

Do belvedero admiravel que occupamos, começa-se a averiguar, si bem que muito imperfeitamente ainda, as distancias a percorrer para chegar ao cimo.O cimo, que, de Chamunix, parece tão proximo do zimborio do Gôuter, toma o seu verdadeiro logar. Os diversos planos que formam outros tantos degrãos que se tem de galgar, e que não se póde avistar de baixo, descobrem-se á vista e removem ainda, pelas leis da perspectiva, o tão desejado cimo. A geleira dos Bossons, em todo seu esplendor, eriça-se de agulhas e de monticulos de gelo que tem ás vezes dez metros de altura, e que parece que batem, como vagas de mar encapellado, as parêdes dos rochedos dos Grands-Mulets, cuja base desapparece no meio delles.

Esse maravilhoso espectaculo não era proprio para desanimar-me, e mais que nunca fiz comigo a promessa de explorar esse mundo ainda para mim desconhecido.

O meu companheiro de viagem deixava-se igualmente dominar pelo enthusiasmo, e, desse momento em diante, entrei a crèr que não iria sósinho ao Monte Branco.

Tornamos a déscer a Chamunix ; o tempo melhorava cada vez mais ; o barometro continuava lentamente o seu movimento de ascenção ; tudo se preparava do melhor modo.

No dia seguinte, logo ao alvorecer, corri á casa do guia-mór. O céu estava sem nuvens ; o vento quasi insensivel, fixára-se ao nordeste. A cadeia do Monte Branco, eujos cimos principaes douravam-se aos raios do sol nascente, dir-se-hia convidar os numerosos touristas a visital-o. Não se podia, sem descortezia, recusar tão amavel convite. O sr. Balmat, depois de ter consultado o barometro, declarou realisavel a asenção e prometteu-me os dous guias e o portador prescriptos pelo regulamento. Deixei-lhe livre a escolha. Mas um incidente com que eu não contava veio causar-me alguma perturbação aos preparativos da partida.

Ao sahir do escriptorio do guia-mór, encontrei-me com Eduardo Ravanel, o meu guia da vespera.

— O senhor vae ao Monte Branco? perguntou-me.

— Vou, sem duvida, respondi-lhe. Não lhe parece bem escolhida a occasião?

Esteve a reflectir alguns minutos, e com modo um tanto constrangido, disse-me :

— O senhor é meu viajante; acompanhei-o hontem ao Prevent, não posso abandonal-o, e já que vae lá acima, irei com o senhor, si quizer aceitar os meus serviços. E' seu direito, porque para todas as viagens perigosas o viajante póde escolher os seus guias. O que ha é que, si aceitar o meu offerecimento, peço-lhe que junte a mim meu irmão Ambrosio Ravanel e meu primo Gaspar Simon. São dous rapazes novos e vigorosos ; gostam tão pouco como eu de semelhante viagem, mas não se mostrarão aborrecidos no serviço, e respondo-lhe por elles como por mim.

O rapaz inspirava-me toda a confiança. Aceitei, e fui, sem perda de tempo, prevenir ao guia-mór da escolha que eu fizera.

Mas, durante estas conversas, o sr. Balmat déra os seus passos junto dos guias, segundo o papel que cada qual tinha a desempenhar. Um só aceitára, Eduardo Simon. Esperava-se a resposta de um outro, chamado João Carrier. Esta não podia ser duvidosa, pois esse homem já fizéra vinte e nove vezes a ascenção do Monte Branco Achei-me, pois, em grande embaraço. Os guias que eu escolhêra eram todos de Argentière, communa situada a seis kilometros de Chamunix. Por isso os de Chamunix accusavam a Ravanel de me haver influenciado em favor de sua familia, o que era contra o regulamento.

Para atalhar a discussão, tomei para terceiro guia à Eduardo Simon, que já tinha feito os seus preparativos.

Não me era util si eu subisse sósinho, mas tornava-se indispensavel si o meu amigo me acompanhasse.

Isto posto, fui prevenir a Donatien Levesque. Achei-o dormindo com o somno do justo que percorreu na vespera quinze kilometros na montanha. Acordal-o não foi cousa das mais faceis ; mas tirando-lhe primeiro as cobertas, depois os travesseiros e finalmente os colchões, obtive algum resultado, e consegui fazêl-o comprehender que eu me estava preparando para a grande viagem.

— Está bem disse bocejando, acompanho-o até aos Grands-Mulets, e là fico esperando a sua volta.

— Bravo! respondi-lhe, tenho exactamente um guia de mais, que ficará addicto á sua pessoa.

Compramos os objectos indispensaveis para se andar sobre o gelo. Bastões ferrados, grevas de panno grosso, oculos verdes que se adaptam hermeticamente aos olhos, luvas forradas, véos verdes passe-montagnes, nada foi esquecido. Cada um de nós tinha excellentes sapatos de solla triplice, que os nossos guias mandaram ferrar para o gelo. Este ultimo pormenor é de consideravel importancia, porque momentos ha em semelhante expedição em que qualquer escorregadura seria mortal, não só para quem escorregasse, como para toda a caravana.

Com os nossos preparativos e com os de nossos guias gastamos cerca de duas horas. A's oito horas, trouxeram-nos as bestas, e partimos finalmente para o chalet da Pedra Ponteaguda, situado a 2,000 metros acima da altura, isto é, 1,000 metros acima do valle de Chamunix, e 2,800 metros mais baixo que o cimo do Monte Branco.

Chegando á Pedra Ponteaguda, ás dez horas, achamos ahi um viajante hespanhol, o sr. N..., acompanhado de dous guias e um portador O seu guia principal, chamado Paccard, parente do dr. Paccard, o qual fez, com Jacques Balmat, a primeira ascenção do Monte Branco, subira já dezoito vezes ao cimo. O sr. N... dispunha-se tambem a fazer a ascenção. Viajára muito na America e atravessára as cordilheiras dos Andes para o lado de Quito, passando no meio de neves pelos mais alcantilados desfiladeiros ; acreditava, pois, que poderia, sem muita difficuldade, levar ao cabo a nova empreza ; mas neste ponto estava enganado. Não contára com a verticalidade das ladeiras que tinha de subir, nem com a rarefacção do ar.

Apresso-me em accrescentar, em honra sua, que se conseguio chegar ao cimo do Monte Branco, foi isso devido a uma ener gia muito rara, porque desde muito o haviam abandonado as forças physicas.

Almoçamos na Pedra Ponteaguda tão lautamente quanto era possivel. E' uma medida de prudencia, porque geralmente perde-se o appetite logo que se entra nas regiões geladas.

O sr. N... partio com os seus guias, ás onze horas, para os Grands-Mulets. Nós só nos puzemos a caminho ao meio dia. Na Pedra Ponteaguda acaba o caminho para cavalleiros.E' preciso então subir em zigszags uma senda muito escarpada que margina a geleira de Bossons e perlustra a base da Agulha do Sul. Depois de uma hora de trabalho penosissimo, com intenso calor, chegamos a um ponto chamado a Pedra da Escada, situado a 2,700 metros. Ahi, guias e viajantes ligam-se por uma forte corda, deixando entre si um espaço de trez a quatro metros. Trata-se, com effeito, de entrar na geleira dos Bossons. Esta geleira, de difficil accesso, apresenta por todos os lados fendas hiantes e sem fundo calculavel. As paredes verticaes dessas fendas têm uma côr esverdinhada e incerta, mui seductora à vista ; quando, approximando-se com precaeção, chega-se a penetrar com o olhar as suas profundezas mysteriosas, sente-se a gente violentamente attrahida para ellas, e nada se affigura mais natural do que lá ir dar um passeio.

Adianta-se a gente lentamente, ora contornando as fendas, ora atravessando-as com uma escada, ou ainda em pontes de neve de solidez problematica. E' então que a corda desempenha o seu papel. Estendem-n'a durante a perigosa passagem ; si a ponte de neve vem a abater, o guia ou viajante fica suspenso ácima do abysmo. Retiram-n'o e fica-lhe tudo em algumas contusões. A's vezes, quando a fenda é muito larga, mas pouco profunda, desce-se ao fundo para subir pelo outro lado. Nesse caso, é necessario cortar degràos no gelo, e os dous guias da frente, armados com uma como machadinha curva, entregam-se a esse trabalho difficil e perigoso.

Uma circumstancia particular torna perigosa a entrada dos Bossons. Toma-se a geleira ao pé da Agulha do Sul e defronte esse trabalho de um vallo por onde passam muitas vezes avalanges de pedras. Esse vallo tem cerea de 200 metros de largura. E' preciso atravessal-o rapidamente, e, durante o trajecto, um dos guias posta-se de sentinella para prevenir do perigo que haja.

Em 1869, foi morto um guia nesse logar ; seu corpo, atirado no vacuo pela quéda de uma pedra, foi quebrar-se de encontro aos rochedos, trezentos metros abaixo.

Estavamos prevenidos ; por isso apressamos a marcha tanto quanto no-lo permittio a nossa inexperiencia ; mas ao sahirmos dessa zona perigosa, espera-nos outra que o não é menos. Trata-se da região desses immensos monticulos de gelo ponteagudos, cuja formação não está ainda bem explicada. Estes monticulos estão geralmente dispostos à beira de um plano e ameaçam todo o vallo que lhes fica abaixo. Um simples movimento da geleira ou até uma leve vibração da atmosphera póde determinar-lhes a quéda e occasionar os mais graves accidentes.

— Senhores, aqui, silencio, e passemos depressa.

Estas palavras, pronunciadas com voz brutal por um dos guias, fazem cessar a conversa. Passamos depressa e em silencio. Finalmente, de emoção em emoção, chegamos ao que se chama Juncção, que se poderia mais razoavelmente chamar a Separação violenta, pela montanha da Costa, das geleiras dos Bossons e de Tacconay. Nesse logar, a scena toma um caracter indescriptivel : fendas de côres scintillantes, agulhas de gelo de fórmas esbeltas, monticulos esguios e varados de lado a lado, lagosinhos esverdinhados, formam um chaos alėm de tudo quanto se póde imaginar. Junte-se a isto o mugir das torrentes no fundo da geleira, os fragores sinistros e repetidos dos fragmentos que se desprendem e precipitam-se como avalange no fundo das fendas, os estremecimentos do soio que se nos racha aos pés, e ter-se-ha então uma idéa dessas regiões sombrias e desoladas cuja vida só se revela pela destruição e pela morte.

Depois de passada a Juncção, segue-se durante algum tempo a geleira de Tacconay, e chega-se á ladeira Grands-Mulets. Esta ladeira, muito ingreme, sóbe-se em zigszags ; o guia da frente tem o cuidado de os traçar em angulo de cerca de trinta gràos quando ha neve recente, para evitar as avalanges.

Finalmente, depois de trez horas de trajecto sobre a neve, chegamos aos Grands-Mulets, rochedos com 200 metros de altura, que dominam por um lado a geleira dos Bossons, e pelo outro os planos inclinados de neve que se estendem até a base do zimborio do Goûter.

Uma cabanasinha, construida pelos guias no cimo do primeiro rochedo, e situada a 3,050 metros de altura, dà asylo aos viajantes e deixa-os esperar abrigados a hora da partida para o cimo do Monte Branco.

Janta-se ahi como se póde, e dorme-se da mesma forma ; mas o proverbio : « Quem dorme janta, » não tem significação alguma nessa altura, porque ahi não se póde fazer sériamente nem uma nem outra cousa.

— Então, perguntei a Levesque, depois de um simulacro de refeição, exagerei-lhe o esplendor da paisagem, e está arrependido de ter vindo até aqui ?

— Estou tão pouco arrependido, disse-me, que estou muito resolvido a ir até ao cimo. Póde contar comigo.

— Muito bem, mas sabe que o mais difficil está por fazer.

— Ora adeos ! sempre lá se ha de chegar. Emquanto se espera, vamos sempre vêr o pôr do sol, que deve ser magnifico.

Com effeito, o céo conservára-se admiravelmente puro.

A cadêa de Brevent e das Agulhas Vermelhas estendia-se-nos aos pés. Além, os rochedos dos Fiz e a agulha de Varan elevam-se ácima do valle de Sallauche e removem para o terceiro plano toda a cadêa dos montes Fleury e do Reposoin. Mais á direita, o Buet com o seu cimo coberto de neve, além o Dente do Sul, dominando com as suas cinco astilhas o valle do Rhodano. Por traz de nós, as neves eternas, o zimborio de Goûter, os montes Maldictos e afinal o Monte Branco.

Pouco e pouco a sombra invadira o valle Chamunix e alcançára successivamente os cimos que o dominam a oeste. A cadêa do Monte Branco é a unica que fica luminosa e parece rodeada de um nimbo de ouro. Para logo a sombra attinge o zimborio do Goûter e os montes Maldictos. Respeita ainda o gigante dos Alpes. Acompanhamos com admiração esse desapparecimento lento e progressivo da luz. Este mantém-se algum tempo no ultimo cimo, dando-nos a louca esperança de que não o abandonará. Mas ao cabo de alguns minutos, tudo se torna sombrio, e áquellas côres tão vivas succedem as côres lividas e cadavericas da morte. Não estou exagerando : quem ama as montanhas me comprehenderà.

Depois de havermos assistido a essa grandiosa scena, não tinhamos mais do que esperar a hora da partida Deviamo-nos pôr a caminho às duas horas da madrugada. Cada qual se estende no seu colchão.

Não se pòde pensar em dormir, nem em conversar tão pouco. Està-se absorvido por idèas mais ou menos sombrias ; é a noite que precede a batalha, com que nada nos obriga a travar a luta. Duas correntes de idéas disputam-nos a posse do espirito. E' o fluxo e refluxo do mar ; cada qual vence por sua vez. Não faltam as objecções a semelhante empreza. Para que correr tanto risco ? Si se for bem succedido, que proveito ? Si succeder um accidente, que arrependimento ? Então entra em scena a imaginação ; todas as catastrophes da montanha se nos apresentam ao espirito Sonhamos pontes de neve que nos abatem aos pés,sentimo-nos precipitados nessas fendas escancaradas, ouvimos os fragores terriveis da avalange que se desprende e vae sepultar-nos, desapparecemos, invade-nos o frio da morte, e debatemo-nos n'um esforço supremo !...

Um ruido estridente, o que quer que seja horrivel, produz-se nesse momento.

— A avalange ! avalange ! grita-se.

— O que foi ? o que está fazendo ? exclama Levesque, acordando sobresaltado.

Ai foi um movel que, no supremo esforço de meu pesadello derribei estrondosamente ! Esta prosaica avalange revoca-me à realidade. Rio-me dos seus terrores, a corrente contraria supéra a outra, e vem com ella as idéas ambiciosas. Está só em mim, com um pouco de esforço, pisar esse cimo tão raras vezes attingido ! E' uma victoria como outra qualquer ! Os accidentes são raros, rarissimos ! Dar-se-hão mesmo ? Do cimo, que espectaculo maravilhoso ha de see ! E depois, que satisfação ter conseguido o que tantos outros nem ousaram emprehender !

Com estas idéas, fortificou-se-me a alma, e com calma esperei o momento da partida.

A'uma hora, os passos dos guias, á sua conversa, o ruido das portas que se abrem, indicam-nos que approxima-se o momento. D'ahi a pouco o sr. Ravanel entra-nos no quarto :

— Vamos, senhores, de pé, o tempo está magnifico. A's dez horas estaremos no cimo.

Ao ouvirmos estas palavras, saltamos dos leitos abaixo e vestimo-nos apressadamente. Dous de nossos guias, Ambrosio Ravanel e seu primo Simon, partem adiante para explorar o caminho. Vão munidos de uma lanterna que nos deve indicar a direcção a seguir, e armados com a sua machadinha para abrir-nos logares muito difficeis. A's duas horas, amarramo-nos todos. Eis a ordem da marcha : diante e na frente, Eduardo Ravanel ; atraz de mim, Eduardo Simon ; depois Donatien Levesque; depois delle, os nossos dous portadores, pois tinhamo-nos tomado outro, o criado da cabana dos Grands-Mulets, e toda a caravana do sr. N...

Tendo os guias e os portadores dividido entre si as provisões, dá-se o signal da partida, e pomo-nos a caminho no meio de profundas trevas, dirigindo-nos para a lanterna que levaram os nossos primeiros guias.

Esta partida tem o que quer que seja solemne. Falla-se pouco, obseca-nos o vago do desconhecido, mas a situação nova e violenta exalta-nos e torna-nos insensiveis aos perigos que encerra. A paizagem em derredor é phantastica. Não se distinguem bem os contornos. Grandes móles alvacentas e indecisas, com manchas escuras um tanto mais accentuadas,fecham o horisonte.

A abobada celeste brilha com estranho esplendor. Avista-se, a uma distancia que não se póde avaliar, a lanterna vacillante dos guias que vão abrindo caminho, e o lugubre silencio da noite é apenas perturbado pelo ruido secco e longiquo do machado cortando degràos no gelo.

Sóbe-se lentamente e com precaução a primeira rampa, dirigindo-se para a base do Zimborio do Goûter. Ao cabo de duas horas de penosa ascenção, chega-se ao primeiro plano, chamado Pequeno Plano, situado ao pé do Zimborio do Goûter, a uma altura de 3,650 metros. Depois de alguns minutos de descanço, continua-se a andar, obliquando para a esquerda e dirigindo-se para a ladeira que leva ao Plano Grande.

Mas ja a nossa caravana não está tão numerosa. O sr. N..., com os seus guias, destacou-se ; a fadiga que sente obriga-o a descançar por mais tempo.

A's quatro horas e meia, começou a alvorada a branquear o horisonte. Subiamos nesse momento a rampa que leva ao Plano Grande, a que chegámos sem obstaculo. Estavamos a 3,900 metros. Tinhamos já feito jus ao almoço. Contra o costume Levesjue e eu sentiamo-nos com appetite. Era bom signal. Installámo-nos, pois, sobre a neve e tomámos uma refeição de occasião. Os nossos guias, alegres, consideravam como certo o nosso triumpho. Quanto a mim, parecia-me que iam muito depressa.

Alguns instantes depois, o sr. N... alcançou-nos. Insistimos muito com elle para que tomasse algum alimento. Recusou obstinadamente, sentia a contracção de estomago tão commum nesses logares, e estava muito abatido.

O Plano Grande merece uma descripção particular. A' direita eleva-se o Zimborio do Goûter. Em frente, o Monte Branco, que ainda lhe fica ácima 900 metros. A' esquerda, os rochedos Vermelhos e os montes Maldictos. Esse arco immenso é por todos os lados de uma alvura deslumbrante. Apresenta em todas as direcções enormes fendas. N'uma dellas foi que se abysmaram, em 1820, trez dos guias que acompanhavam o doutor Hamel e o coronel Anderson. Depois dessa epocha, em 1864, outro guia, Ambros o Couttet, ahi morreu.

E' preciso atravessar com muita precaução esse plano, porque ahi ha ás vezes fendas occnltas pela neve. Demais, é frequentemente varrido pelas avalanges. A 13 de Outubro de 1866, um viajante inglez e trez de seus guias foram sepultados debaixo de uma montanha de gelo rolada do Monte Branco.

Depois de um trabalho dos mais perigosos, conseguiu-se encontrar os corpos dos trez guias. Esperava-se a todo o momento descobrir o do viajante, quando outra avalange veio cahir sobre a primeira e obrigou os trabalhadores a renunciar ás investigações.

Tres caminhos se nos offereciam. O caminho commum, que consiste em tomar bem á esquerda, na fralda dos montes Maldictos um como vallo chamado Porche ou Corredor, leva por declives suaves ao alto da primcira escarpa dos rochedos Vermelhos.

O segundo, menos freqnentado, toma á direita pelo zimborio do Goûter e leva ao cimo do Monte Branco pela aresta que liga essas duas montanhas. Tem-se durante trez horas de seguir um caminho vertiginoso e escalar uma tira de gelo vivo muito difficil chamada a Bossa do Dromedario.

O terceiro caminho consiste em subir directamente ao alto do Corredor, galgando uma muralha de gelo de 250 metros de altura, que acompanha a primeira escarpa dos montes Vermelhos.

Tendo os guias declarado impraticavel o primeiro caminho por causa das recentes fendas que o embargavam completamente, restava-nos a escolha entre os dous outros. Eu, por mim, opinava pelo segundo, que passa pela Bossa do Dromedario ; mas esse foi julgado muito perigoso. e ficou assentado que escalariamos a muralha de gelo que leva ao cimo do Corredor.

Tomada uma resolução, o melhor é executala sem demora. Atravessamos, pois, o Plano Grande e chegámos ao pé desse obstacnlo realmente assustador.

Quanto mais nos adeantamos, tanto mais vertical parece que se vae tornando a inclinação. Além disso, abrem-se-nos aos pés muitas fendas que não tinhamos notado.

Começamos entretanto a difficil ascenção. O primeiro guia esboça os degráus, o segundo os conclne.Subimos dous por minuto. Quando mais subimos, tanto mais augmenta o declive. Os nossos proprios guias consultam-se acerca do caminho a seguir : fallam na giria da terra e nem sempre estão de accordo, o que não é bom signal. Afinal, torna-se tal o, declive que a aba de nossos chapéos toca nas barigas das pernas do guia que nos precede. Uma saraiva de pedaços de gelo, produzida pelo cortar dos degráus cega-nos e torna a nossa posição ainda mais penosa. Então, dirigindo-me aos guias da frente, disse-lhes :

— Sim, póde-se muito bem subir por aqui ! Não è lá grande caminho, concordo, mas ainda assim é praticavel. O que eu queria saber, é por onde nos farão descer.

— Oh ! senhor, responden-me Ambrosio Ravanel, na volta, tomaremos outro caminho.

Afinal, depois de duas horas de violentos esforços e depois de havermos cortado mais de quatrocentos degràus nessa medonha subida, chegàmos extenuados ao alto do Corredor.

Atravessamos então um plano de neve levemente inclinado, e abeiramos uma immensa fenda que nos embargava o caminho. Apenas acabamos de contorná-la, fugiu-nos dos labios um grito de admiração. A' direita o Piemonte e as planicies da Lombardia ficam-nos aos pės. A' esquerda, os massiços dos Alpes Appeninnos e do Oberland, corôados de neve, elevam os seus cimos incomparaveis. O monte Rosa e o Cervino são os unicos que ainda nos dominam, mas dentro em pouco os dominaremos por nossa vez.

Esta reflexão lembra-nos o termo da expedição. Volvemos o olhar para o Monte Branco e ficamos estupefactos.

— Deos do céu ! como ainda está longe ! exclamou Levesque.

— E alto ! accrescento eu.

Era com effeito desesperador. A afamada muralha do lado, tão temida, que era preciso absolutamente galgar, estava diante de nós com o seu declive de cincoenta gráos. Mas depois de havermos escalado a muralha do Corredor, já essa nos não assustava. Tomámos meia hora de descanço, depois continuamos o nosso caminho ; mas notamos logo que as circumstancias atmospherica, já não eram as mesmas. O sol dardejava-nos raios ardentes, e a sua refracção sobre a neve augmentava-nos o supplicio. Começava-se a sentir cruelmente a rarefacção do ar. Adiantavamo-nos lentamente, fazendo frequentes paradas, e chegamos finalmente ao plano que domina a segunda escarpa dos rochedos Vermelhos. Estavamos ao pė do Monte Branco. Elevava-se, só e magestoso, a uma altura de 200 metros ácima de nós. O proprio Monte Rosa arriára bandeira !

Levesque e eu estavamos completamente extenuados. Quanto ao sr. N..., que se nos reunira no alto do Corredor, póde-se dizer que estava insensivel à rarefacção do ar, pois a bem dizer já não respirava.

Começàmos emfim a escalar o ultimo degráo. Andavamos dez passos e paravamos, absolutamente impossibilitados de ir além. Uma dolorosa contracção da garganta tornava-nos ainda mais difficil a respiração. As pernas se nos recusavam a andar ; comprehendi então essa expressão pittoresca de Jacques Balmat, quando, narrando a sua primeira ascensão, diz « que as suas pernas já não se sustentavam sinão com o auxilio das calças. » Mas um sentimento mais forte dominava a materia, e si o corpo estava padindo misericordia, o coração, respondendo : Excelsior! Excelsior! abafava essas queixas desesperadas, e impellia para diante e apezar seu a nossa pobre machina desconcertada. Passámos assim os Petits-Mulets, rochedos situados a 4,666 metros, e, depois de duas horas de esforços sobre-humanos, dominámos afinal toda a cadeia. Estava aos nossos pés o Monte Branco !

Era meio-dia e um quarto.

O orgulho do triumpho restabeleceu-nos promptamente das fadigas. Conquistáramos emfim o temeroso cimo ! Dominavamos todos outros, e essa idéa, que só o Monte Branco póde suggerir,immergia-nos em profunda emoção. Era a ambição satisfeita, e, para mim principalmente, era um sonho realisado !

O Monte Branco é a mais alta montanha da Europa. Certo numero de montanhas na Asia e na America são mais elevadas, mas para que affronta-las, si, pela impossibilidade absoluta de attingir-lhes o cimo, tem-se afinal de ficar dominado por ellas ?

Outras, como o Cervino, por exemplo, são do accesso ainda mais difficil, mas cimo desse, avistamo-lo a quatrocentos metros abaixo de nos !

E depois, que espectaculo para recompensar-nos os soffrimentos ! O céo, sempre puro, tomára um colorido de azul carregado. O sol, despojado de parte de seus raios, perdêra o brilho, como n'um eclypse parcial. Esse effeito, devido á rarefacção da atmosphera, era tanto mais sensivel quanto as montanhas e planicies em torno estavam innundadas de luz. Por isso, não perdiamos o minimo accidente.

A sudeste, as montanhas do Piemonte, e além as planicies da Lombardia, fechavam-nos o horizonte. Para o oeste, as montanhas da Saboia e as do Delphinado ; além, o valle do Rholano. Ao nordoeste, o lago de Genebra, o Jura ; depois, descendo para o sul, um chaos de montanhas e geleiras, o que quer que seja indescriptivel, dominado pela móle do Monte Rosa, os Mischabelhærner, o Cervino, o Weishorn, o mais bello dos cimos, como lhe chama o celebre ascensionista Tyndall, e além pelo Jungfrau, o Monch, o Eigen e o Finsteraarhorn.

Não se póde calcular em menos de sessenta leguas a extensão do nosso raio. Descobriamos, pois, cento e vinte leguas de terra pelo menos.

Uma circumstancia particular veio ainda augmentar a belleza do espectaculo. Formaram-se algumas nuvens do lado da Italia e invadiram os valles dos Alpes Appenninos, mas sem lhes occultar os cimos. Tivemos d'ahi a pouco debaixo dos olhos um segundo céu, um céu inferior, um mar de nuvens d'onde emergia um archipelago inteiro de picos e montanhas cobertos de neve. Era um magico espectaculo que o maior de nossos poetas mal reproduziria.

O cimo do Monte Branco fórma uma aresta dirigida de sudoeste para nordeste, com duzentos passos de comprimento e um metro de largura no ponto culminante. Dir-se-hia o casco de um navio virado, com a quilha para o ar.

Cousa rarissima, a temperatura estava então muito elevada,10 gráos acima de zero. O ar estava quasi calmo. A's vezes perpassava ligeira brisa.

O primeiro cuidado dos nossos guias foi collocar-nos todos em linha na eminencia que defronta com Chamounix, para que se pudesse de baixo contar-nos facilmente e verificar que não faltava ninguem á chamada. Numerosos touristas tinham ido ao Brevent e ao Jardim para acompanhar e nossa ascenção. Puderam verificar-lhe o bom exito.

Mas subir não era tudo ; era preciso pensar em descer. O mais difficil, sinão o mais fatigante, ainda estava por fazer ; e depois, não se deixa facilmente uma alta posição conquistada com tanto trabalho ; falta-nos o movel que nos impellia quando subiamos, a necessidade de dominar, tão imperiosa ; caminha-se sem enthusiasmo, olhando muitas vezes para atraz.

Cumpria entretanto que nos resolvessemos. Depois de uma ultima libação do tradicional champagne puzemo-nos a caminho. Tinhamo-nos demorado uma hora no cimo. A ordem de marcha estava alterada. A caravana do sr. N... ia na frente, e a pedido do seu guia, Paccard, amarramo-nos todos juntos. O estado de fadiga em que se achava o sr. N... a quem falleciam as forças, mas não a vontade, podia fazer receiar quédas que os nossos esforços reunidos conseguiriam talvez suster. Os acontecimentos justificaram a nossa apprehensão. Ao descer a muralha da encosta, o sr. N... deu muitos passos em falso. Os seus guias, mui vigorosos e habeis, puderam felizmente detê-lo na passagem ; mas os nossos, receiando com razão que a caravana inteira fosse arrastada, quizeram separar-se. Levesque e eu oppuzemo-nos, e, tomando as maiores precauções, chegámos sem obstaculo á base dessa ladeira vertiginosa que se tem de descer inclinado para a frente. Não ha illusão possivel ; o abysmo, o vacuo quasi sem fundo está em frente de nós, e os pedaços de gelo desprendidos que passamnos por perto saltando, com a rapidez de uma flecha, mostram-nos perfeitamente o caminho que seguiria a caravana, si se falseasse um passo.

Uma vez transposto esse máo passo, comecei a respirar. Desciamos, os declives pouco inclinados que conduzem ao cimo do Corredor. A neve amollecida pelo calor, cedia sob os nossos passos ; mettia-mo-nos nella até aos joelhos, o que nos tornava muito fatigante a marcha. Acompanhavamos sempre os vestigios que deixáramos de manhã, e eu estava já admirado, quando Gaspar Simon, voltando-se para mim, disse-me :

— Senhor, não podemos seguir outro caminho, o Corredor está impraticavel, e é preciso absolutamente descermos pela muralha que galgámos esta manhã.

Communiquei a Levesque essa nova pouco agradavel.

— Apenas, accrescentou Gaspar Simon, acho que não podemos continuar todos amarrados juntos. De resto, veremos como se haverá o sr. N... no começo.

Adiantavamo-nos para a terrivel muralha. A caravana do sr. N... começava a descer, e ouviamos as palavras animadissimas que lhe đirigia Paccard. A inclinação tornava-se tal que jà não avistavamos nem a elle nem aos seus guias, posto que continuassemos a estar todos amarrados á mesma corda.

Mal Gaspar Simon, que me precedia, pôde conhecer do que se passava, parou, e, d epois de haver trocado algumas palavras na sua lingua com os companheiros, declarou-nos que era preciso separar mo-nos da caravana do sr. N...

— Responsabilisamo-nos pelos senhores, accrescentou, mas não nos podemos responsabilisar pelos outros, e si escorregarem, nos arrastarão comsigo.

Dizendo isto, separou-se.

Custava-nos muito a tomar essa resolução ; mas os nossos guias foram inflexiveis. Propuzemos então mandar dous delles prestar auxilio aos guias do sr. N... Aceitaram pressurosos ; mas, como não tinham corda, não puderam pôr por obra essa resolução.

Começamos então a medonha descida. Um so de nós movia-se por sua vez, e no momento em que esse dava um passo, todos os outros escoravam, promptos a susterem o abalo si elle viesse a escorregar. O guia da frente, Eduardo Ravanel, tinha uma missão das mais perigosas ; devia restabelecer os degráos que estavam mais ou menos destruidos pela passagem da primeira caravana.

Adiantavamo-nos lentamente e tomando as maiores precauções O nosso caminho levava-nos em linha recta a uma das fendas que se abriam ao pé da escarpa. Essa fenda, na subida, podiamos não olhar para ella ; mas na descida, fascinava-nos a sua fauce esverdinhada e lisante. Todos os pedaços de gelo desprendidos pela nossa passagem dir-se-hia que se tinham combinado : em tres saltos, lá se iam abysmar, como na quéda do Minotauro. A differença é que, depois de cada bocado, a guela do Minotauro fechava-se ; esta, não : esta fenda insaciavel estava sempre aberta e dir-se-hia esperar, para fechar-se, um bocado mais importante. Tratava-se de não ser esse bocado, e a isso é que tendiam todos os nosssos esforços. Para subtrahirmo-nos àquella fascinação, áquella vertigem moral, si assim me posso exprimir, bem tentavamos gracejar acerca da posição escabrosa que occupavamos, e que um cabrito montez não quereria para si. Chegamos até a cantarolar algumas coplas do maestro Offenbach ; mas, em honra da verdade, devo confessar que as nossas pilherias não eram das melhores e que não cantavamos certo. Pareceu me mesmo notar, sem que isto me sorprendesse, que Levesque obstinava-se em cantar a grande aria do Trovador com as palavras do Barbe-Bleue, o que denotava certa preoceupação. Emfim, para nos alentarmos, faziamos como esses falsos valentes que cantam nas trevas para se animarem.

Ficamos assim suspensos entre a vida e a morte durante uma hora, que nos pareceu eterna, e chegamos finalmente á base dessa escarpa medonha. Lá achamos sãos e salvos o Sr. N... e os seus guias.

Depois de alguns minutos de descanço, continuamos a caminhar.

Aoapproximarmo-nos do Pequeno Plano, Eduardo Ravanel parou bruscamente, e, voltando-se para nós, exclamou :

— Vejam que avalange ! Cobrio os nossos vestigios.

Com effeito, immensa avalange de gelo, cahida do zimborio do Goûter, cobria inteiramente o caminho que seguiramos pela manhā para atravessar o Pequeno Plano.

Não posso calcular o volume dessa avalange em menos de quinhentos metros cubicos. Si si tivesse desprendido no momento de nossa passagem, ter-se-hia de accrescentar sem duvida mais uma catastrophe á lista já muito extensa da necrologia do Monte Branco.

Em frente desse novo obstaculo, era preciso ou tomar outro caminho, ou passar mesmo abeirando a avalange. A' vista do estado de fadiga em que nos achavamos, este ultimo partido era certamente o mais simples, mas offerecia sério perigo. Uma muraralha degelo de mais de vinte metros de altura,já em parte desprendida do zimborio do Goûtnr, ao qual apenas estava ainda presa por um dos angulos, pendia sobre o caminho que deviamos seguir. Esse móle enorme de gelo parecia equilibrar-se.A nossa passagem abalando a atmosphera, não lhe determinaria a quéda ? Os nossos guias consultaram-se. Cada qual examinou com o binoculo a fenda que se formára entre a montanha e essa móle assustadora. As arestas vivas e nitidas da fenda indicavam quebramento recente, evidentemente occasionado pela quéda da avalange.

Depois de breve discussão,os nossos guias, tendo reconhecido a impossibilidade de achar outro caminho, resolveram tentar essa perigosa passagem.

— E' preciso andar muito depressa, correr atè, si possivel för, disseram-nos, e, dentro de cinco minutos, estaremos em segurança. Vamos, senhores, um ultimo esforço !

Cinco minutos de carreira é ponca cousa para quem está apenas fatigado ; mas para nós, que estavamos absolutamente extenuados, correr, ainda que por tão pouco tempo, sobre a neve molle, em que nos enterravamos até aos joelhos, parecia impraticavel. Fizemos entretanto um supremo appello á nossa energia, e, depois de tres ou quatro quédas, puxados por uns, empurrados por outros, chegamos finalmente a um monticulo de neve, onde cahimos exhaustos. Estavamos fóra de perigo.

Precisavamos de algum tempo para nos restabelecermos. Por isso nos estendemos sobre a neve com uma satisfação que facilmente se comprehenderà. As maiores difficuldades estavam agora vencidas, e si ainda restavam alguns perigos a correr, podiamos affrontal-os sem grande apprehensão.

Com a esperança de assistir á quéda da avalange, prolongamos o nosso descanço, mas inutilmente esperamos. Adiantando-se o dia e não sendo prudente demorar-se nessas solidões geladas, resolvemo-nos a continuar viagem, e, ás cinco horas, chegamos à cabana dos Grands-Mulets.

Depois de uma noite má e de um violento accesso de febre occasionado pela insolação que apanharamos na expedição, dispuzemo-nos a partir para Chamounix ; mas antes de sahirmos, inscrevemos, segundo é costume, no registro collocado para esse fim nos Grands-Mulets, os nomes dos nossos guias e as principaes circumstancias da viagem.

Folheando esse registro que contém a expressão mais ou menos feliz, mas sempre sincera, das sensações que experimentam os touristas á vista de um mundo tão novo, deparei um bymno ao Monte Branco, escripto em inglez. Como resume perfeitamente as minhas proprias impressões, vou tentar traduzil-a[1] :

Oh ! Monte Branco, audaz gigante que assoberbas
Com a attitude os rivaes, invejosos de ti,
Colosso atterrador, que, da soidão, ao homem
Lanças um desafio altivo, eu ti venci l

Domando-te o furor, em teu cimo orgulhoso,
O signal de meus pés sem descorar gravei.
E dos flancos maculei-te o immaculado arminho.
E me affrontei com a morte e nunca recuei.

Que ebriedade immensa, ah ! quando se domina
Esse mundo encantado, esse cháos deslumbrante
De quebradas e gel e rochedos miuados,
Do solto furacão que salta trovejante !

Mas d'onde este fragor ? Subverte-se a montanha
Vae-se inteira abysmar ? Surdo rumor profundo !
Não ê a avalange invencivel que róla,
Pula e se vae sumir n'um abysmo sem fundo.

Ei-lo, do Monte Rosa o cimo alvinitente !
Eis o Monte Cervino, o sinistro monte ! Eis
Esses Welterhorners, cujo vulto gigante
Vela do Jungfrau a nitida nudez!

Sois grandes, montes, sim, sois arduos e diflceis,
Poucos vos galgarão o insolente alcantil :
Quantos morreram já nos vossos duros flancos,
A quem não atterrára o vosso sspecto hostil.

Mas olhae para cá, mais alto, ainda mais alto ;
Erguei-vos, cada qual o outro carregando ;
Vêde este pico altivo, audaz. que dá vertigem.
Este é o vosso senhor, a este cabe o mando !

A's oito horas, puzemo-nos a caminho para Chamounix. A travessia dos Bossons foi difficil, mas fez-se sem accidente.

Meia hora antes de chegarmos a Chamounix, encontramo-nos, no chalet da cascata do Dardo, com alguns touristas inglezes que parecia que estavam á espreita da nossa passagem. Mal nos avistaram, vieram, com uma precipitação sympathica, felicitar-nos pelo nosso bom exito. Um delles apresentou-nos á mulher, encantadora senhora muitissimo distincta. Depois que lhe esboçamos a traços largos as peripecias da viagem, disse-nos com voz que vinha do coração :

— How much you are envied here by everybody ! Let me touch your alpenstocks ! (Como são invejados de todos ! Deixem-me tocar nos seus botões !)

E estas palavros exprimiam bem o pensamente de todos.

A ascenção do Monte Branco é difficilima. Diz-se que o celebre naturalista genovez de Saussure apanhou ahi o germen da enfermidade de que veio a morrer alguns mezes depois. Não posso terminar melhor esta extensa narração do que citando as palavras do Sr. Markham Sherwill :

« Seja como for, diz concluindo a narração da sua viagem ao Monte Branco, não aconselho a ninguem uma ascenção cujo resultado não póde ter nunca uma importancia proporcional aos perigos que nella se correm e se fazem correr aos outros. »


FIM
  1. A presente traducção é de Lucio de Mendonça.