ORFEU (orfismo: culto religioso-filosófico) → Música

"Saiba moderar o fogo de teus desejos,
senão tua Eurídice logo te será arrancada"

O personagem mítico-literário de Orfeu está envolto numa auréola misteriosa, desde a lenda do seu nascimento até às condições da sua morte. Inúmeras são as variantes que se encontram nos escritores, antigos e modernos, que fizeram referências à figura do herói semideus, associando-o a outros mitos. A própria etimologia da palavra "Orfeu" é duvidosa. O termo grego que mais se aproxima é orphnos, que significa "obscuro". Estudiosos distinguem três "mitemas" fundamentais:1) Orfeu e os Argonautas; 2) Orfeu e Eurídice; 3) Orfeu e as Bacantes (→ Dionísio). O primeiro mitema trata de Orfeu jovem, solteiro, aventureiro. Segundo a versão mais aceita, Orfeu nasceu de uma relação de Apolo com a musa Calíope, numa montanha da Trácia. O jovem pastor recebeu os dons da música e da poesia. Com seu canto suave, acompanhado pela lira, acalmava os ímpetos da natureza, fascinando animais, plantas e pedras. Na condição de poeta e músico, acompanhou os Argonautas na expedição à Cólquida, região da Ásia Menor, em busca do Tosão de Ouro, um talismã constituído pelo pêlo de um carneiro consagrado a Júpiter, cuja posse seria a garantia de poder e prosperidade. Com a força da sua música, Orfeu tirou o navio Argo de um atoleiro, aplacou os ventos e impediu que os marinheiros ouvissem o canto feiticeiro das Sereias. Este episódio mítico lembra a passagem épica da Odisséia de Homero, quando o herói Ulisses manda colocar cera nos ouvidos de seus marinheiros, enquanto ele se amarra ao mastro para não sucumbir às vozes melodiosas que vem dos promontórios de Cila e Caríbdis.

O segundo mitema sobre Orfeu diz respeito à parte da lenda mais conhecida: sua paixão amorosa por Eurídice. A versão da lenda mais tradicional descreve a moça como amiga das Ninfas e esposa de Orfeu. Um dia, fugindo do assédio sexual do pastor Aristeu, é mortalmente picada por uma serpente. Orfeu, desesperado pela perda da amada, vai até ao Inferno em busca de Eurídice. Seu canto harmonioso e pungente emociona as divindades do subsolo e alivia o sofrimento das almas penadas: Sísifo deixa de rolar sua pedra, Tântalo não sente fome nem sede e as Danaides interrompem a inútil tarefa de preencher um tonel sem fundo. Seu pedido de reaver a amada é atendido mas, infelizmente, ele não respeita a proibição imposta. Os deuses dos Infernos permitiram que Orfeu levasse Eurídice de volta à terra, mas ela teria de caminhar atrás dele, sendo proibido ao herói de olhar para ela, antes de chegarem à luz da superfície. Estava quase saindo do mundo infernal, quando não resistiu à tentação de olhar para trás. Imediatamente, uma força misteriosa tirou Eurídice de seus braços e a jogou de novo nas trevas do subsolo. Orfeu perdeu Eurídice pela segunda vez e para sempre. O olhar para trás é um sacrilégio, pois as divindades infernais não querem ser vistas. Orfeu e Eurídice, de alguma forma, perturbaram o silêncio dos mortos. A dupla mítica pagã, como a dupla bíblica de Adão e Eva, cometeu o pecado do híbris, do orgulho, em querer ver ou saber mais do que é permitido ao ser humano. Orfeu é o homem que violou a proibição e ousou olhar o invisível. Na Favola di Orfeo, do renascentista italiano Angelo Poliziano, o pacto do Hades com Orfeu implica na moderação da paixão. O deus Plutão diz ao herói: "Saiba moderar o fogo de teus desejos, senão tua Eurídice logo te será arrancada". Assim, o Orfeu "inconsolável" passa a substituir o jovem celibatário ou "ágamo" da primeira fase.

No terceiro mitema, a lenda de Orfeu se mistura com a de Dionísio. A tragédia amorosa da dupla morte de Eurídice precisava de um "bode expiatório". Segundo uma versão, ele teria se matado para não sobreviver a Eurídice. Mas a lenda mais aceita é que ele teria sido esquartejado por Mênades (Bacantes) na Trácia. Após retornar do mundo das sombras, inconsolável por perder Eurídice para sempre, Orfeu passou a vagar pela Grécia, chorando a ausência da esposa e recusando o assédio sexual de várias mulheres. As devotas do deus Baco, enfurecidas por seu desprezo, despedaçaram-no à margem do rio Hebro. Salvaram-se apenas a cabeça e a lira do poeta-cantor, levadas pelas águas até a ilha de Lesbos, onde receberam sepultura. Conforme outra variante do mito, a lira de Orfeu foi transformada em constelação por Júpiter.

O terceiro núcleo da fábula de Orfeu, acima resumido, acoplado ao mito de Dionísio e aos mistérios de Elêusis, deu origem a um culto que se tornou uma religião de fundo esotérico. O orfismo ensina que o herói teria sido o primeiro homem a receber a revelação de certos mistérios divinos e os teria transmitido a alguns iniciados, sob forma de poemas musicais. O "caminho de vida" seria revelado apenas aos que acreditassem na imortalidade da alma e na sua transmigração através de vários corpos, até conseguirem a purificação das culpas cometidas no passado. Os órficos conceberam a origem do universo como um imenso "Ovo", do qual saiu Eros, o deus do Amor, o princípio de todas as coisas. A raça humana teria nascida das cinzas dos Titãs, castigados por Júpiter por terem matado Baco, deus-menino. Essa dupla natureza (Dionísio e Titãs) explicaria a existência no ser humano das forças antagônicas do bem e do mal, da luz e da sombra. O caminho da salvação proposto pela religião órfica consiste em libertar a alma do corpo, tido como seu sepulcro. É preciso relevar as semelhanças da doutrina do orfismo com a Teoria das Idéias de Platão, com os princípios de Buda e com outras formas de Espiritismo (→ Espírito). Mas acima da religião e da filosofia está a poesia. O mito de Orfeu engendrou inúmeras obras de arte musical, pictórica, escultural e literária. Na cultura moderna, sua presença vai de Monteverdi a Vinicius. O Orfeu, de Claudio Monteverdi, é a primeira Ópera lírica completa dos teatros europeus, representada em Nápoles, em 1607. Vinicius de Morais, em 1956, no Rio de Janeiro, encenou sua peça teatral Orfeu da Conceição, com muito sucesso. Em 1958, o cineasta e escritor francês Marcel Camus transformou a peça de Vinicius em filme, com o título Orfeu Negro, vencedor da Palma de Ouro, em Cannes. Outra película sobre o mesmo tema foi realizada, em 1998, pelo diretor brasileiro Cacá Diegues, com a interpretação de Toni Garrido e Patrícia França, tendo como pano de fundo a violência de uma favela carioca, durante os festejos do Carnaval.