O teatro representa a mesma cena do segundo ato.

CENA I

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LEONARDA e INACINHA


LEONARDA (Encostada ao sofá com um lenço atado à cabeça.) - Ai, ai, ai; parece-me que estão me arrancando os miolos.

INACINHA - Sossegue, mamãe.

LEONARDA - Posso porventura ficar tranqüila quando considero que aqueles dois santarrões acabam de cometer para conosco tão negra ingratidão, introduzindo a vergonha e o escândalo no seio de uma família?!

INACINHA - Tem razão; se eu apanhasse o monstro neste momento, ele havia de passar comigo um mau quarto de hora.

LEONARDA - A sede de vingança que me devora é tamanha que, apertando-lhe o pescoço, obrigando-o a pôr um palmo de língua de fora e a morrer como um carneiro, sem dar um gemido, ainda assim eu não a saciaria! Ai, ai, ai.

INACINHA - Acalme-se, mamãe.

LEONARDA - O que se deve esperar mais de um velho sem pudor que, unindo-se com um tratante casado apenas há dois anos, seduz uma cria de casa e atira-se com ela no seio das orgias?!

INACINHA - Uma irmã colaça de sua mulher.

LEONARDA - Quase sua filha! Uma criança que ele carregou muitas vezes ao colo e a quem eu dei a liberdade na pia batismal. O que se deve esperar desses entes perdidos?

INACINHA - Parece-me um sonho a cena de ontem.

LEONARDA - Fortunato era o tipo da pachorra e da bondade; foi teu marido quem o perdeu, graças aos bons conselhos desse improvisado barão, em cuja casa eles se acham acoitados.

INACINHA - Nunca pensei que aquele homem se sujeitasse a representar papel tão infame!

LEONARDA - Ai, ai, ai, minha cabeça.

INACINHA - São horas de tomar o remédio. O médico recomendou-lhe o maior repouso possível e vosmecê está falando demais.

LEONARDA - Oh! mas a minha desforra há de ser tremenda.

INACINHA (Indo buscar uma garrafa em cima da mesa e despejando o remédio num cálice.) - Tome.

LEONARDA (Bebendo.) - Tira isto daqui, está me embrulhando o estômago.

INACINHA - Falta só um bocadinho; beba este resto.

LEONARDA (Depois de ter bebido um bocado, com repugnância.) - Não posso mais, leva.

INACINHA (Pondo a garrafa em cima da mesa.) - Por que não vai deitar-se? (Batem palmas.)

LEONARDA - Vê quem é.

INACINHA (Indo à porta do fundo.) - É ele!

LEONARDA (Levantando-se agitada.) - Ele, quem?

INACINHA - O barão.

LEONARDA - Manda-o entrar.

CENA II

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AS MESMAS e o BARÃO


BARÃO (Dirigindo-se a Leonarda.) - Bom dia, minha senhora. (Vai apertar a mão de Leonarda, esta volta-lhe a cara; dirigindo-se a Inacinha.) Como tem passado? (A mesma cena; à parte.) Estou metido em boas. (Alto.) O que aqui me traz, minha senhora, é um dever de bom amigo. (Leonarda volta-lhe o rosto.) Não sei se fui indiscreto... (Inacinha também vira-lhe o rosto: à parte.) Que temporal! (Alto.) Ora pois, vinha trazer a paz e a tranqüilidade a este lar e entretanto viram-me a cara e torcem-me o nariz.

LEONARDA - É na realidade interessante que o senhor venha aqui apresentar-se como o mensageiro da paz!

BARÃO - É verdade, esqueci-me do símbolo - o ramo de oliveira.

INACINHA - A situação é imprópria para gracejos.

BARÃO - Contam que Maomé resolvera um dia dar um passeio ao céu.

LEONARDA - Senhor, repare que fui muito condescendente recebendo-o em minha casa depois das cenas que se acabam de passar.

BARÃO - Peço-lhe licença para acabar a historia. Diversos gêneros de condução foram oferecidos ao profeta que ardia em desejos por Ver a mansão dos justos. "Não posso ir no meu burro? perguntou ele ao alado cicerone que devia guiá-lo em tão arriscada viagem. À resposta negativa deste, Maomé abanou a cabeça resignado e disse: "Já que não posso ir no meu burro, desisto da empresa."

LEONARDA - Não sei a que vem esta história.

BARÃO - O ridículo é o meu burro, minha senhora, habituei-me a viajar nele em todas as situações da vida e não mudo de montaria por princípio algum.

LEONARDA - Diz muito bem, senhor barão. O homem que entra com pés de lá no seio de uma família e que sob a máscara da amizade oculta a traição, aconselhando a dois maridos que abandonem suas mulheres e acoitando-os em sua casa, se não é um malvado, é um ente leviano que não tem consciência dos atos que pratica.

BARÃO - Vossa Excelência labora em um grande erro; em primeiro lugar nada aconselhei a esses dois maridos: segundo, eles não encontraram em minha casa a proteção que se costuma dar aos criminosos.

INACINHA - Quando lá fomos por diversas vezes...

BARÃO - Abri-lhes as portas e não os encontraram.

LEONARDA - Porque o senhor tinha o cuidado de escondê-los.

BARÃO - Escondê-los! Minhas senhoras, Vossas Excelências hão de permitir-me que lhes diga que não conhecem bem seus maridos. Aqueles homens, pacatos e mansos como dois cordeiros, já não são os mesmos que dantes eram. E doloroso dizê-lo, mas é a verdade. Operou-se neles uma transformação súbita desde aquela célebre noite em que foram aqui feridos em sua dignidade. Em vão tentei evitar o mal quando os vi fugir, o Senhor Fortunato, gesticulando como um possesso e o Senhor Luís de Paiva, rubro de cólera, gritavam vingança, depois de terem escrito uma carta e saíram desorientados por aquela porta. Sai também atrás deles, disposto a lançar mão de todos os meios, para que não prosseguissem na carreira que premeditavam. Recebendo-os em casa estava disposto a trazê-los apadrinhados no dia seguinte. Desprezaram, porém, os meus conselhos e afogando-se na vertigem dos prazeres.

INACINHA - Foram dar com os ossos em um baile mascarado...

LEONARDA - Ao lado dessa mulata que raptaram. E o senhor, que também foi cúmplice em toda essa bandalheira, acha que deve ficar impune uma tal afronta?!

BARÃO (Rindo-se.) - Tocou Vossa Excelência no ponto a que eu queria chegar. A mulata Felisberta entra nesse negócio como Pilatos no Credo.

LEONARDA - Pois o senhor ousa negar aquilo que eu vi com os meus próprios olhos?!

BARÃO - Entendamo-nos, minha senhora, o que foi que Vossa Excelência viu?

LEONARDA - O que eu vi? Ele que agradeça à sua boa estrela o ter-me faltado o ar naquela ocasião.

BARÃO - O que Vossa Excelência viu foi o Senhor Fortunato de braço com uma mulher mascarada, que reconheceu-se depois ser Felisberta. Segue-se porém daí que foi ele quem a raptou? Quantas vezes em um desses bailes não damos o braço a um homem, julgando que nos achamos ao lado de uma mulher encantadora e mais tarde caímos das nuvens, reconhecendo o engano em que laborávamos?

LEONARDA - Quem foi então que roubou a mulata?

BARÃO - E por que não acredita antes Vossa Excelência que ela tivesse saído desta casa, por seu motu propriu?

LEONARDA - Não creio, Felisberta era uma criatura tímida e pacata e só poderia dar este passo movida pela sedução.

BARÃO - O Senhor Fortunato e o Senhor Luís de Paiva eram também duas pombas sem fel; os maus tratos viraram-lhes a cabeça e hoje são dois tigres de Bengala.

INACINHA - O que quer dizer o senhor com isto?

BARÃO - Que Felisberta deu este passo levada talvez pelo desespero. Enfim, minhas senhoras, quer acreditem-me, quer não, vim de propósito a esta casa para dizer-lhes que o Senhor Fortunato e o Senhor Luís de Paiva foram ontem vítimas inocentes de uma coincidência comprometedora, cuja origem atribuem a Vossas Excelências. Dizem eles ter sido aquilo um meio diabólico de que lançaram mão para apanhá-los com mais facilidade com a boca na botija.

LEONARDA - Tanta inocência, senhor barão, seria irrisória, se não causasse nojo.

INACINHA - Vamos para dentro, mamãe.

LEONARDA - Diga a esse velho sem-vergonha que nos havemos de encontrar ainda um dia face a face. (Saí com Inacinha.)

CENA III

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BARÃO, só.


BARÃO - E então? Mas, no fim de contas, eu dou um doce a quem me explicar o aparecimento daquela mulata no baile mascarado!

CENA IV

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O MESMO e SANTA RITA e FELISBERTA (Que entram timidamente pelo fundo, olhando para os lados.)


SANTA RITA (Deparando com o barão, que deve estar pensando, recua com medo.) - Entra tu primeiro. (Esconde-se atrás de Felisberta.)

FELISBERTA - Você é quem deve falar.

SANTA RITA - Eu não.

BARÃO (Voltando-se.) - Quem é?

FELISBERTA (Tremendo.) - Sou eu.

SANTA RITA (Também tremendo.) - Sim, senhor, somos nós.

BARÃO (Com alegria.) - Ora pois: está descoberta finalmente a chave do enigma!

SANTA RITA - A chave?!

BARÃO - Foi pois você, seu maganão, quem raptou aquela inocente e tímida criatura?!

SANTA RITA - Eu, não, senhor; ela foi quem me seduziu. (Felisberta abaixa os olhos.)

BARÃO (Com alegria.) - Bravo, muito bem! E foram ontem ao baile mascarado..

SANTA RITA - É verdade: Vossa Senhoria não se lembra daquele sujeito vestido de rei, que perguntou-lhe...

BARÃO - O senhor não viu por aqui uma pastora de vestido encarnado?...

SANTA RITA - Isso mesmo, sim senhor; era eu.

BARÃO (Rindo-se.) - Magnífico! Magnífico!

SANTA RITA (Baixo a Felisberta.) - Este homem está maluco!

BARÃO (À parte.) - Posso, enfim, reabilitar dois palermas perante a família!

FELISBERTA - Creia vosmecê que eu não fui culpada daquele desaguisado.

BARÃO (Com alegria.) - Eu já volto. Onde está o meu chapéu? (Achando-o.) Ah! (Sai apressado pelo fundo.)

CENA V

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FELISBERTA e SANTA RITA


SANTA RITA - Sabes o que quer dizer aquilo?

FELISBERTA - Não.

SANTA RITA - Pois eu sei, minha cara; vou me pôr ao fresco e arranja-te lá como puderes. O homem foi chamar as sujeitas e não dou cinco minutos que elas não estejam aqui furiosas.

FELISBERTA - Você não há de sair.

SANTA RITA - Mas, enfim, que papel represento eu? Gasto dinheiro, levo-te a um baile e quando menos esperava, deixando-te engodar por um sorvete, dás o braço àquele bilter, vindo me dizer depois que era teu amo. Felisberta, eu não engulo araras, o Senhor Fortunato foi tanto ao baile mascarado como eu à China.

FELISBERTA - Você sabe perfeitamente que eu não poria mais os meus pés aqui, se não fosse aquela embrulhada de ontem.

SANTA RITA - O que eu sei é que tu estás arranjando meios e modos de levar um par de pescoções, iguais àqueles com que já foste mimoseada.

FELISBERTA - Sinhô velho está inocente e é preciso que eu ele há de ter sofrido. Além disso se até então a velha não podia me ver, não sabendo como se deu aquele fato, seria capaz de estrangular-me à primeira vez que me encontrasse.

SANTA RITA - La isso era; vamos embora, Felisberta. (Assusta-se.)

FELISBERTA - Quem é?

SANTA RITA (Olhando- para os lados.) - Ninguém.

FELISBERTA - Nunca pensei que você fosse tão poltrão!

SANTA RITA - Eu cá me entendo. Tenho muito amor a este lombo e meu pai que Deus haja, não faz um outro Santa Rita.

FELISBERTA - Não era isto o que você me dizia antigamente.

SANTA RITA - Nem tudo o que a gente diz se escreve.

CENA VI

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OS MESMOS, LEONARDA e INACINHA


LEONARDA (Gritando dentro.) - Inacinha?

SANTA RITA (Tremendo.) - Valei-me, Senhor do Bonfim.

LEONARDA (De dentro.) - Inacinha?

SANTA RITA - Minha Nossa Senhora da Guia!

INACINHA (Gritando dentro.) - Lá vou, mamãe...

SANTA RITA (Querendo fugir.) - Vou-me embora.

FELISBERTA (Detendo-o.) - Não seja banana. (Leonarda entra amparada por Inacinha, Felisberta e Santa Rita ajoelham-se.)

INACINHA e LEONARDA - Ela!

LEONARDA - Segura-me, segura-me, que eu vou ter um ataque.

SANTA RITA (À parte.) - Misericórdia!

FELISBERTA - Perdão, minha senhora, eu estou inocente.

LEONARDA - Sai de minha presença. Miserável! (Avança para Felisberta.)

SANTA RITA (Recuando à parte.) - Hoje é o último dia da minha vida.

INACINHA - Como te atreveste a entrar nesta casa depois de tanta infâmia?!

LEONARDA (Gritando para dentro.) - Genoveva? (A Inacinha.) Menina, manda buscar dois pedestres ali na polícia.

SANTA RITA (Levantando-se e procurando fugir. À parte.) - Dois pedestres!

INACINHA (Tomando-lhe a passagem.) - Para ali.

FELISBERTA - Reconheço que cometi uma falta, fugindo de casa com Santa Rita.

LEONARDA - Com Santa Rita!

SANTA RITA (À parte.) - Ei-la comigo.

INACINHA - Pois foi com Santa Rita.

FELISBERTA - Sim, senhora, em um momento de desvario, perdi a cabeça e pratiquei essa ingratidão para com vocemecês.

SANTA RITA (A Felisberta.) - Mas é preciso que você diga que não fui eu quem a seduziu.

LEONARDA - E a cena de ontem, deslambida?

FELISBERTA - Sinhô velho está inocente; ele não sabia quem eu era, nem eu tampouco podia imaginar com quem conversava. Perdendo-me de Santa Rita no meio do povo, encontrei aquele homem que convidou-me para tomar um sorvete, dei-lhe o braço e parecia-me a todo o momento que eu conhecia aquela voz; porém meu coração estava longe de pensar que fosse sinhô. O resto vocemecê sabe. Eu juro-lhe, por Nossa Senhora do Amparo, que estou inocente.

LEONARDA (À parte.) - Será possível?! (Para Felisberta.) Levanta-te.

SANTA RITA - Tudo isto é a pura verdade.

INACINHA - E onde estão eles?

FELISBERTA - Não sei, sinhazinha. Eu saí do teatro depois do que houve e fui para a casa corrida de vergonha.

SANTA RITA (À parte.) - Parece que o temporal vai serenando.

LEONARDA - Eu te perdôo, em nome do peso de que me aliviaste.

FELISBERTA (Beijando a mão de Leonarda.) - Obrigada, sinhá; mas ainda não lhe disse o outro motivo que aqui me trouxe. Eu vou-me casar com Santa Rita, e por isso preciso do seu consentimento.

LEONARDA - Muito bem; procedes como uma rapariga de juízo, reparando a falta que cometeste.

SANTA RITA - Mas olhe que não é para já, não, senhora.

LEONARDA - E por que não?

SANTA RITA - E que eu esperava um lugar no corpo de urbanos e não desejava dar este passo sem ter uma posição na sociedade.

LEONARDA - Pois bem; eu me encarregarei de arranjar quanto antes o que desejas.

SANTA RITA (À parte.) - O que diz ela!

LEONARDA (Para Felisberta.) - Podes ir lá dentro ver as outras. (Para Santa Rita.) Vai também.

SANTA RITA (Baixo a Felisberta.) - É impossível que nesta casa não entrasse mandinga. (Sai com Felisberta pela esquerda.)

CENA VII

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LEONARDA e INACINHA


INACINHA - À vista do que acabamos de ouvir qual deve ser a nossa atitude?

LEONARDA - O que pretendes fazer?

INACINHA - A mesma pergunta lhe faço eu.

LEONARDA - Minha filha, sejamos prudentes. Teu pai e teu marido puseram as mangas de fora de uma maneira insólita, é verdade, mas não tanto quanto pensávamos. As explicações de Felisberta vieram mudar a face das coisas e, a meu ver, este era o ponto que atacava mais de frente a nossa dignidade.

INACINHA - É também a minha opinião.

LEONARDA - Portanto, entendo que devemos recebê-los, e quanto antes.

INACINHA - Mas debaixo de que condições?

LEONARDA - Debaixo de todas, quaisquer que elas sejam.

INACINHA - Isso nunca.

LEONARDA - Tu não conheces os homens, Inacinha. Uma vez sujeitos ao nosso jugo, eles caminham até a humilhação; quebrado porém esse laço, alcançam sobre nós a força que lhes dá o sexo e então é-nos impossível reaver de um momento o terreno perdido. Fortunato e Luís quebraram de um modo tão violento as cadeias que os prendiam que hoje só nos restam dois alvitres: ou acabarmos os dias em uma viuvez prematura e inconsolável ou, perdoando-lhes as extravagâncias que cometeram, chamá-los de novo ao grêmio da família. Queres ficar viúva?

INACINHA - Oh! não.

LEONARDA - Então, façamos o sacrifício da nossa dignidade, convidando os dois monstros a voltarem para a casa.

INACINHA - E havemos de estar dovarante sujeitas aos seus caprichos?

LEONARDA - Que remédio! Representaremos durante algum tempo o papel de vítimas resignadas...

INACINHA E vocemecê se sente com forças para representar esse papel?

LEONARDA - Oh! mas depois... depois hastearemos em todo o fulgor o pavilhão do nosso primitivo domínio. (Dirigindo-se à mesa.)

INACINHA - O que vai fazer?

LEONARDA - Vou escrever ao barão. (Senta-se e escreve.)

CENA VIII

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AS MESMAS e o BARÃO


BARÃO (À parte.) - Vejamos o que se passou. (Alto.) Minhas Senhoras.

LEONARDA - Chegou a propósito, senhor barão, livrando-me do trabalho de escrever-lhe uma carta.

INACINHA - Pode dizer a seus amigos que estamos resolvidas a recebê-los.

BARÃO - Ainda bem. Resta agora saber se eles estarão pelos autos. Como já lhes disse, minhas senhoras, o fim a que me propus vindo a esta casa foi explicar-lhes tão somente a desagradável ocorrência de ontem, na qual os seus maridos não tiveram a mais pequena parte.

LEONARDA - Já sabemos de tudo. Nós lhes concedemos o perdão, e pedimos a Vossa Excelência que o transmita de nossa parte.

BARÃO - Ora muito bem. Vou ver se consigo convencê-los. É preciso, porém, que Vossas Excelências portem-se com a maior brandura e delicadeza possíveis; qualquer coisinha é bastante para irritá-los e a menor palavra, o menor gesto poderão servir-lhes de pretexto para um rompimento perpétuo.

LEONARDA - Vá descansado, senhor barão.

INACINHA - Eu serei de ora em diante uma mártir.

BARÃO - Até já. (Sai.)

LEONARDA (Saindo com Inacinha pela esquerda.) - Sim, seremos mártires; mas quando eles menos pensarem havemos de hastear a bandeira do nosso primitivo domínio.

CENA IX

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BARÃO, e depois LUÍS e FORTUNATO


BARÃO - Foram-se. (Dirigindo-se à porta do fundo.) Entrem. (Luís e Fortunato entram timidamente.) Trata-se de representar uma comédia. É preciso, portanto, que se compenetrem bem de seus papeis.

FORTUNATO - Estou com o coração do tamanho de uma pulga.

BARÃO (Para Fortunato.) - O senhor representa de marido furioso.

FORTUNATO - Mas se não está no meu gênero. Vou fazer fiasco com toda a certeza. Eu lhe conto o que me aconteceu uma vez. O senhor deve ter ouvido falar em uma célebre Dona Rita que vem ainda a ser parente longe..

BARÃO - Tá, tá, tá, meu caro, guarde essa história para depois. (Para Luís.) Em que diabo estás aí a pensar!

LUÍS - Considero, meu amigo, que aqui está a paz e a felicidade a despeito mesmo dessas pequenas tribulações que nos aguilhoam o espírito sem ferir-nos o coração. Em geral só avaliamos o bem quando dele nos vemos privados. Lá fora encontrei amores vendidos, mulheres que levantam seus tronos sobre ruínas, a hipocrisia nesses amigos de ocasião que me abraçavam, a febre do delírio por toda a parte. Aqui... está a família. Quero ver meu filho, barão.

BARÃO - Então o que é isto? Queres pregar moral? O teu papel é de marido atacado em sua dignidade.

LUÍS - Pois não basta a comédia que já representamos?

FORTUNATO - E que comédia!

BARÃO - Insensatos! A peça que representaram depende toda deste final. Vamos lá, mostrem-se artistas de força. (Para Fortunato.) O senhor arranja um ar carrancudo, sua fisionomia, seus gestos devem trair a coragem que lhe borbulha na alma. (Para Luís.) Tu deves afetar desprezo, indiferença e um certo ar de superioridade. Convençam-se, meus senhores, que deste epílogo depende o bom êxito da empresa.

FORTUNATO - E se o epílogo for um tapa-olho? (Inacinha e Leonarda espiam na porta.)

BARÃO (Baixo.) - Lá estão elas. Andem, não temos tempo a perder.

CENA X

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OS MESMOS, INACINHA e LEONARDA (Espiando à porta.)


FORTUNATO (Gritando.) - Não se abusa assim impunemente da paciência de um homem, a paciência tem limites. Eu hei de tirar a limpo este desaforo. (Batendo com a bengala no chão.)

BARÃO (Baixo.) - Magnífico! Magnífico!

LUÍS - Mas que diabo viemos fazer aqui? Vamos embora, eu estava lá fora passando muito bem e esta vida não me quadra.

BARÃO - O que pretendem então os senhores? Querem continuar nesta vida de ócio e de pândega, abandonando duas mulheres honestas que os adoram? (Baixo.) Andem, andem, é preciso que as cenas sejam bem atacadas.

FORTUNATO - Esta bengala, não me há de sair das mãos. (Baixo.) Isto não é muito forte?

BARÃO - O senhor é um miserável. (Baixo a Fortunato.) Avance para mim.

FORTUNATO (Avançando.) - Senhor barão, não me faça perder-lhe o respeito.

LUÍS - Que maçada! Vamos embora.

BARÃO - Os senhores não sairão daqui. (Baixo.) Falem no negócio da mulata.

FORTUNATO - Vou falar no negócio da mulata.

BARÃO (Baixo.) - Não, não é assim.

FORTUNATO (Gritando.) - Não é assim.

BARÃO - Ora bolas!

FORTUNATO - Ora bolas! O negócio da mulata há de ser esmerilhado.

LEONARDA (Entrando.) - Fortunato! (Fortunato estremece e recua afetando depois coragem.)

INACINHA - Eu te perdôo, Luís.

LUÍS - E irrisório esse perdão, minha senhora. Só se perdoam os criminosos e a senhora vê que eu estou de fronte erguida.

FORTUNATO (A Leonarda.) - Peço-lhe, senhora, que repare também para o meu porte.

LEONARDA - Foste um ingrato para comigo. (Quer abraçá-lo, Fortunato recua com medo.)

FORTUNATO - Chegue-se para lá.

INACINHA (Para Luís.) - Esqueceste teu filho!

LUÍS - Sim, esse filho, a quem a senhora muitas vezes abandonou. (Para Fortunato.) Vamos embora. (Luís e Fortunato vão sair.)

INACINHA - Oh! não saias, Luís, eu te peço. (Chorando.) Queres me matar?

LEONARDA (À parte.) - Que humilhação!

BARÃO - Os senhores hão de ficar e continuarão a viver nesta casa, como bons maridos, ainda que para isso me veja obrigado a lançar mão dos meios os mais enérgicos.

FORTUNATO - Pois bem, ficamos; mas sob a condição de que havemos de assumir as rédeas do poder. Concordam?

LUÍS - Se não quiserem é o mesmo, voltamos para a boa vida.

INACINHA (Para Leonarda.) - Deixemo-lhes a força e esse poder aparente, minha mãe, nós os dominaremos pelo coração.

FORTUNATO - Concordam ou não?

LEONARDA - Sim.

BARÃO - Ora pois, abracem-se e sejam felizes. (Leonarda abraça Fortunato, Inacinha, Luís; para Luís.) Agora venha lá também um abraço. (Abraça Luís.) Já que estou condenado a findar os meus dias como celibatário, resta-me ao menos o grato consolo de ter contribuído para a tua felicidade que começa hoje.

CENA XI

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FORTUNATO, LEONARDA, INACINHA, LUÍS, BARÃO, SANTA RITA e FELISBERTA


SANTA RITA (Entrando com Felisberta.) - Muito me contas, quem diria?

BARÃO (Vendo Santa Rita.) - Olá!

LEONARDA (Para o barão.) - Vão casar, já sabe?

BARÃO - Bravo! Eis o que se chama um dia cheio! Conciliação completa! (Batendo no ombro de Santa Rita.) Um conselho agora, meu capadócio.

SANTA RITA - Capadócio, não senhor, Santa Rita Gostoso dos Anjos para o servir.

BARÃO - Queres ouvir o conselho?

SANTA RITA - Sou todo ouvidos.

BARÃO - Trata de fazer entrar no caminho do bom viver esta inocente criatura com quem vais te ligar. Tiveste o exemplo em casa; aproveita-o.

SANTA RITA - Comigo está-se ninando. Vou entrar para o corpo de urbanos e no dia em que ela me sair fora do alinhamento tenho a polícia em casa.

FORTUNATO (A Leonarda, que abraça-o com força.) - Irra, senhora! Isto não vai a matar.


(Cai o pano.)