Sonetos (Antero de Quental, 1880)/Disputa em familia
Dixit insipiens in corde suo: non est Deus.
I
Sae das nuvens, levanta a fronte e escuta
O que dizem teus filhos rebellados,
Velho Jehovah de longa barba hirsuta,
Solitario em teus Ceus acastellados:
«— Cessou o imperio emfim da força bruta!
Não soffreremos mais, emancipados,
O tyranno, de mão tenaz e astuta,
Que mil annos nos trouxe arrebanhados!
«Emquanto tu dormias impassivel,
Topámos no caminho a liberdade
Que nos surriu com gesto indefinivel...
«Já provámos os fructos da verdade...
Ó Deus grande, ó Deus forte, ó Deus terrivel,
Não passas duma van banalidade! —»
II
Mas o velho tyranno solitario,
De coração austero e endurecido,
Que um dia, de enjoado ou distrahido,
Deixou matar seu filho no Calvario,
Surriu com rir extranho, ouvindo o vario
Tumultuoso côro e alarido
Do povo insipiente, que, atrevido,
Erguia a voz em grita ao seu sacrario:
«— Vanitas vanitatum! (disse). É certo
Que o homem vão medita mil mudanças,
Sem achar mais do que erro e desacerto.
«Muito antes de nascerem vossos paes
Dum barro vil, ridiculas creanças,
Sabia eu tudo isso... e muito mais! —»