Era fresca a manhã, e dava mostras de o ser também o dia em que D. Quixote saiu da venda, informando-se primeiro de qual era o caminho mais direito, para ir para Barcelona sem tocar em Saragoça: tal era o desejo que tinha de pôr por mentiroso aquele novo autor, que tanto diziam que o vituperava. Não lhe aconteceu coisa digna de se escrever em mais de seis dias, ao cabo dos quais, indo fora do caminho ou carreira, apanhou-o a noite num espesso carvalhal ou sobreiral. Apearam-se das suas cavalgaduras o amo e o criado, e, encostando-se aos troncos das árvores, Sancho, que naquele dia merendara, entrou logo a dormir; mas D. Quixote, a quem conservavam desperto ainda muito mais as suas imaginações do que a fome, não podia pregar olho, antes ia e vinha com o pensamento por mil gêneros de lugares. Ora lhe parecia achar-se na cova de Montesinos; ora ver brincar e montar na sua burrica a Dulcinéia, convertida em lavradeira; ora que lhe soavam aos ouvidos as palavras do sábio Merlin, referindo-lhe as condições e diligências, com que se conseguiria o desencantamento de Dulcinéia. Desesperava-se ao ver a frouxidão e a falta de caridade de Sancho; porque lhe parecia que apenas dera cinco açoites em si próprio, número desproporcionado e pequeno para os infinitos que lhe faltavam; e com isto se afligiu tanto, que fez consigo o seguinte discurso:

“Se Alexandre Magno cortou o nó górdio, dizendo: “Tanto monta cortar como desatar”, e por isso não deixou de ser o senhor universal de toda a Ásia, nem mais nem menos podia suceder agora com o desencantamento de Dulcinéia, se eu açoitasse Sancho contra vontade dele; porque, se a condição deste remédio está em receber Sancho os três mil e tantos açoites, que se me dá a mim que os dê ele, ou que lhos dê outro? o essencial é que ele os receba, venham donde vierem!”

Pensando nisto, aproximou-se de Sancho, tendo primeiro agarrado nas rédeas de Rocinante; e, juntando-as de modo que pudesse açoitá-lo com elas, principiou a tirar-lhe a cinta; mas, apenas o começou a desapertar, acordou Sancho e disse:

— Que é isto? quem me toca e me desaperta?

— Sou eu — respondeu D. Quixote — que venho suprir as tuas faltas, e remediar meus trabalhos; venho-te açoitar, Sancho, e descarregar em parte a dívida a que te obrigaste. Dulcinéia perece, tu vives descuidado, eu morro de desejos; e, assim, desataca-te por vontade, que a minha é dar-te nesta solidão pelo menos dois mil açoites.

— Isso não — tornou Sancho; — Vossa Mercê faça favor de estar quieto, senão os surdos nos hão-de ouvir; os açoites a que me obriguei hão-de ser dados voluntariamente, e não à força; agora não tenho vontade de me açoitar; basta que eu dê a minha palavra a Vossa Mercê, que me fustigo e sacudo as moscas do meu corpo, assim que me apetecer.

— Não quero deixá-lo à tua cortesia, Sancho — disse D. Quixote — porque és duro de coração e tenro de carnes.

E procurava à viva força desapertá-lo. Vendo isto, Sancho levantou-se e, arremetendo a seu amo, abraçou-o e, passando-lhe o pé, deu com ele no chão, de cara virada para cima; pôs-lhe um joelho no peito e, segurando-lhe nas mãos, não o deixava mexer nem respirar.

— Como, traidor, pois desmandas-te contra teu amo e senhor natural? atreves-te contra quem te dá o pão?

— Não tiro rei, nem ponho rei — respondeu Sancho — mas ajudo-me a mim, que sou meu senhor; prometa-me Vossa Mercê que estará quieto, e não tratará agora de me açoitar, que eu o deixarei livre e desembaraçado, senão

Aqui morrerás, traidor,
imigo de Dona Sancha.

Prometeu D. Quixote e jurou por vida dos seus pensamentos não lhe tocar na roupa, e deixá-lo açoitar-se quando quisesse, por sua livre vontade e alvedrio. Ergueu-se Sancho e desviou-se daquele sítio um bom pedaço e, indo arrimar-se a um tronco de árvore, sentiu que lhe tocavam na cabeça e, levantando as mãos, topou dois pés de gente, com sapatos e calças. Tremeu de medo, procurou outra árvore, e aconteceu-lhe o mesmo; deu brados, chamando D. Quixote que lhe acudisse. Correu seu amo, e, perguntando-lhe o que é que sucedera, e de que é que tinha medo, respondeu-lhe Sancho que todas aquelas árvores estavam cheias de pernas e de pés humanos. Apalpou-os D. Quixote e logo percebeu o que seria, e disse a Sancho:

— Não tenhas medo, porque estes pés e pernas, que apalpas e não vês, decerto são de alguns foragidos e bandoleiros, enforcados nestas árvores, que por estes sítios os costuma enforcar a justiça quando os apanha, de vinte a vinte, e de trinta a trinta árvores, e por isso percebo que devo estar ao pé de Barcelona.

E era, efetivamente, assim.

Ao amanhecer, levantaram os olhos e viram os cachos daquelas árvores, que eram corpos de bandoleiros. Já nisto vinha amanhecendo, e, se os mortos os tinham espantado, também os atribularam mais de quarenta bandoleiros vivos, que de improviso os rodearam, dizendo-lhes, em língua catalã, que estivessem quedos e esperassem pelo capitão. Achava-se D. Quixote a pé, com o cavalo sem freio, com a lança arrimada a uma árvore, e, finalmente, sem defesa alguma; e, assim, não teve remédio senão cruzar as mãos e inclinar a cabeça, guardando-se para melhor ocasião e conjuntura. Correram os bandoleiros a espoliar o ruço, não deixando coisa alguma do que vinha nos alforjes e na maleta, e por felicidade Sancho trazia os escudos do duque, e os que trouxera da terra, metidos numa algibeira do alçapão; mas, ainda assim, aquela boa gente o revistaria, e lhe tiraria até o que tivesse escondido por baixo da pele, se não chegasse nesse momento o seu capitão, que mostrava ser homem de trinta e quatro anos, robusto, bem proporcionado, mais alto que baixo, de olhar grave, e de cor morena. Vinha montado num poderoso cavalo, com uma cota de malha de aço e quatro pistolas, a que se chamam na Catalunha pedernales, metidas no cinto. Viu que os seus escudeiros (que assim chamam aos que andam naquele exercício) iam despojar Sancho Pança; ordenou-lhes que o não fizessem, e foi logo obedecido; e, assim, escapou o cinto. Admirou-se de ver uma lança arrimada a uma árvore, um escudo no chão e D. Quixote armado e pensativo, com a mais triste e melancólica fisionomia que a própria tristeza podia ter. Chegou-se a ele dizendo:

— Não estejais tão triste, bom homem, porque não caístes nas mãos de algum cruel Osíris, mas sim nas de Roque Guinart, que têm mais de compassivas que de rigorosas.

— Não estou triste — respondeu D. Quixote — por ter caído em teu poder, Roque valoroso, para cuja fama não se encontram limites na terra, mas sim por ter sido tal o meu descuido, que me apanharam os teus soldados sem freio no cavalo, sendo eu obrigado, pela regra da cavalaria andante que professo, a viver sempre alerta, sentinela a toda a hora de mim mesmo; e quero que saibas, grande Roque, que se me achasse montado no cavalo, com a minha lança e com o meu escudo, não lhes seria fácil renderem-me, porque sou D. Quixote de la Mancha, aquele que enche todo o orbe com as suas façanhas.

Logo Roque Guinart conheceu que a enfermidade de D. Quixote estava mais próxima da loucura que da valentia; e, ainda que algumas vezes o ouvira nomear, nunca julgou verdadeiros os seus feitos, nem se pôde persuadir de que tivesse semelhantes disposições o coração dum homem; alegrou-se em extremo por tê-lo encontrado, para tocar de perto o que de longe ouvira a respeito dele; e assim, disse-lhe:

— Valoroso cavaleiro, não vos despeiteis, nem considereis como fortuna esquerda esta em que vos encontrais, porque pode ser que nestes tropeços se endireitasse a vossa torcida sorte; que o céu, por estranhos e nunca vistos rodeios, nunca imaginados pelos homens, costuma levantar os caídos e enriquecer os pobres.

Já D. Quixote lhe ia agradecer, quando sentiu pela retaguarda um ruído, semelhante a tropel de cavalos; mas era um só, em que vinha montado, correndo a galope, um moço que parecia ter os seus vinte anos, vestido de damasco verde, com alamares de ouro, bragas, chapéu revirado à walona, botas envernizadas e justas, esporas, adaga e espada dourada, uma pequena escopeta nas mãos e duas pistolas na cinta. Ouvindo o ruído, voltou a cabeça Roque e viu esta gentil figura que, ao aproximar-se dele, disse-lhe:

— Vinha à tua procura, valoroso Roque, para encontrar em ti, senão remédio, pelo menos alívio na minha desdita; e para que não estejas suspenso, porque vejo que me não conheceste, quero dizer-te quem sou: sou Cláudia Jerônima, filha de Simão Forte, teu amigo particular e inimigo de Clauquel Torrellas, que também é inimigo teu, por ser do bando contrário; e sabes que este Torrellas tem um filho, que se chama D. Vicente Torrellas, ou que pelo menos assim se chamava ainda há menos de duas horas. Este, pois, para encurtar razões, viu-me, enamorou-se de mim, escutei-o e enamorei-me também, às escondidas de meu pai; que não há mulher, por mais retirada que esteja, e por mais recatada que seja, a quem não sobre tempo para pôr em execução e efeito os seus atropelados desejos. Finalmente, prometeu ele ser meu esposo e eu dei-lhe palavra de ser sua, sem que em obras fôssemos adiante. Soube ontem que ele, esquecido do que me devia, ia casar com outra e que esta manhã a desposava, notícia que me turbou os sentidos e me deu cabo da paciência; e por meu pai não estar no lugar, tive eu de me vestir com este fato, e, metendo o cavalo a galope, alcancei D. Vicente daqui a coisa duma légua e, sem começar a fazer queixas nem a ouvir desculpas, disparei sobre ele esta escopeta e mais estas duas pistolas, e parece-me que lhe meti mais de duas balas no corpo, abrindo-lhe portas por onde saísse a minha honra, envolta no seu sangue. Ali o deixei nas mãos de seus criados, que não ousaram nem puderam defendê-lo, e venho rogar-te que me passes para França, onde tenho parentes com que viva, e também pedir-te que defendas meu pai, para que os muitos parentes de D. Vicente se não atrevam a tirar dele vingança.

Roque, admirado da galhardia, boa figura e aventurosa índole da formosíssima Cláudia, disse-lhe:

— Vinde, senhora; vamos ver se morreu o teu inimigo e depois veremos o que mais vos convirá.

D. Quixote, que escutara o que Cláudia dissera e o que Roque respondera, observou:

— Não precisa de se incomodar em defender esta senhora, que tomo eu isso a meu cargo: dê-me o meu cavalo e as minhas armas, que eu irei em busca desse cavalheiro, e, morto ou vivo, o obrigarei a cumprir a promessa que fez a tanta formosura.

— Ninguém duvide disto — disse Sancho — porque meu amo tem muita boa mão para casamenteiro; ainda não há muitos dias que obrigou a casar um, que também faltou à palavra que a outra donzela dera; e, se não fossem os nigromantes terem mudado a verdadeira figura do moço na dum lacaio, já a estas horas a tal donzela o não seria.

Roque Guinart, que mais cuidava no sucesso da formosa Cláudia do que nos discursos do amo e do criado, não os entendeu e, ordenando aos seus escudeiros que restituíssem a Sancho tudo o que tinham tirado do ruço, ordenou-lhes também que se retirassem para o sítio onde tinham estado nessa noite alojados, e logo partiu com Cláudia a toda a brida, à procura do ferido ou morto D. Vicente. Chegaram ao sítio onde Cláudia o encontrou, e não viram ali senão sangue derramado de fresco; mas, percorrendo com a vista aqueles contornos, descobriram por um monte acima alguma gente e perceberam que seria D. Vicente, que os seus criados levavam, ou morto ou vivo, ou para o curar, ou para o enterrar. Correram a apanhá-los, o que facilmente conseguiram, porque o cortejo ia vagarosamente. Encontraram D. Vicente nos braços dos seus servos, a quem pedia, com voz cansada e débil, que o deixassem ali morrer, porque a dor das feridas não consentia que fosse mais adiante. Saltaram dos cavalos abaixo, chegaram-se a eles; tremeram os criados com a presença de Roque e turbou-se Cláudia com a de D. Vicente; e meia enternecida e meia rigorosa, chegou-se a ele, travando-lhe das mãos e disse-lhe:

— Se tu me desses estas mãos, conforme o que combináramos, não te verias nunca neste transe.

Abriu o ferido cavalheiro os olhos semicerrados e, conhecendo Cláudia, disse-lhe:

— Bem vejo, formosa e iludida senhora, que foste tu que me mataste, castigo não merecido nem devido a meus desejos, porque nunca, nem com desejos nem com obras, te quis ofender.

— Então, não .é verdade — disse Cláudia — que ias esta manhã desposar Leonora, a filha do rico Balvastro?

— Não, decerto — respondeu D. Vicente. — Foi a minha má fortuna que te levou essa notícia, para que por zelos me tirasses a vida; mas, deixando-a nas tuas mãos e nos teus braços, ainda me considero venturoso; e, para te assegurares desta verdade, aperta-me a mão e recebe-me por esposo, se quiseres, que não tenho maior satisfação a dar-te do agravo que de mim recebeste.

Apertou-lhe a mão Cláudia e apertou-se-lhe o coração de maneira que desmaiou em cima do peito ensangüentado de D. Vicente, e este foi acometido por um paroxismo mortal. Estava confuso Roque e não sabia o que havia de fazer. Correram os criados a buscar água para a deitarem no rosto de seu amo e trouxeram bastante para banhar os rostos de Vicente e de Cláudia. Acordou esta do seu desmaio, mas não do seu paroxismo D. Vicente, porque lhe acabou a vida; e, vendo isto Cláudia, e reconhecendo que já o seu doce esposo não vivia, feriu os ares com suspiros e o céu com as suas queixas; maltratou os cabelos, soltando-os ao vento, rasgou a cara com as suas próprias mãos, com todos os sinais de dor e de sentimento, que podem indicar a angústia que punge um coração. “Ó cruel e inconsiderada mulher! — dizia ela — com que facilidade puseste em execução tão mau pensamento! Ó raivosa força dos zelos, a que desesperado fim conduziste a quem vos deu acolhimento no peito! Ó meu esposo, cuja desditosa sorte, por ser prenda minha, te levou do tálamo à sepultura!”

Tais eram os tristes queixumes de Cláudia, que arrancaram lágrimas dos olhos de Roque, não costumados a derramá-las.

Choravam os criados, a cada passo desmaiava Cláudia, e todo aquele circuito parecia campo de tristeza e lugar de desgraças. Finalmente, Roque Guinart ordenou aos criados de D. Vicente que levassem o corpo dele para a aldeia de seu pai, que ficava ali perto, para lhe darem sepultura. Cláudia disse a Roque que queria ir para um mosteiro, de que era abadessa uma tia sua e onde tencionava acabar a vida, acompanhada por outro melhor e mais eterno esposo. Louvou-lhe Roque o seu bom propósito e ofereceu-se para a acompanhar até onde ela quisesse, e para defender seu pai contra os parentes de D. Vicente e contra todos os que quisessem molestá-lo. Não aceitou Cláudia a sua companhia e, agradecendo os seus oferecimentos com as melhores palavras, despediu-se dele chorando. Os criados de D. Vicente levaram-lhe o corpo, e Roque voltou para os seus: e este fim tiveram os amores de Cláudia Jerônima. Mas que admira, se teceram o trama da sua lamentável história as forças invencíveis e rigorosas dos zelos?

Achou Roque Guinart os seus escudeiros no sítio para onde os mandara, e D. Quixote com eles, montado em Rocinante, fazendo-lhes uma prática, em que lhes persuadia que deixassem aquele modo de vida, tão perigoso, tanto para a alma como para o corpo; mas, como a maior parte deles eram gascões, gente rústica e fera, não lhes entrava bem na cabeça a prática de D. Quixote. Apenas Roque chegou, perguntou a Sancho se lhe haviam restituído o que lhe tinham tirado do ruço. Respondeu Sancho que sim, mas que só lhe faltavam três lenços, que valiam três cidades.

— Que dizes tu, homem? — acudiu um dos que estavam presentes — sou eu que os tenho, e não valem três reais.

— É verdade — disse D. Quixote — mas avalia-os o meu escudeiro no que diz, por mos ter dado quem mos deu.

Mandou-os Roque Guinart restituir imediatamente, e mandando pôr os seus em fileira, ordenou que trouxessem para ali fatos, jóias, dinheiro, tudo, enfim, quanto fora roubado desde a última repartição; e, fazendo rapidamente a conta, trocando a dinheiro o que não era divisível, repartiu tudo pela companhia, com tanta igualdade e prudência, que a ninguém favoreceu nem defraudou. Feito isto, e ficando todos satisfeitos, contentes e pagos, disse Roque para D. Quixote:

— Se não se guardasse esta pontualidade, não se podia viver com eles.

— Pelo que vejo — disse Sancho — é tão boa coisa a justiça, que é necessária até entre os ladrões.

Ouviu-o um escudeiro e, levantando o arcabuz pelo cano, ia decerto abrir a cabeça a Sancho, se Roque Guinart lhe não bradasse que se detivesse. Ficou Sancho pasmado e resolveu não tornar a abrir a boca, enquanto estivesse com aquela gente. Nisto, chegaram uns escudeiros, que estavam de sentinela lá fora, e disseram:

— Senhor, não longe daqui, pela estrada de Barcelona, vem um tropel de gente.

— Viste se são dos que nos buscam, ou se são dos que buscamos? — perguntou Roque.

— São dos que buscamos — respondeu o escudeiro.

— Pois saí todos — tornou Roque — e trazei-mos, sem que escape um só.

Obedeceram-lhe; e, ficando sozinhos D. Quixote, Sancho e o capitão, estiveram à espera de ver os que os escudeiros traziam; e entretanto disse Roque para D. Quixote:

— Há-de parecer o nosso modo de vida novo para o senhor D. Quixote, assim como lhe hão-de parecer novas as nossas aventuras, novos os nossos sucessos e todos perigosos; e não me espanto que assim pareça, porque, realmente, confesso que não há modo de vida mais inquieto e mais sobressaltado do que este. A mim trouxeram-me para ele não sei que desejos de vingança que têm força de turbar os mais sossegados corações; eu sou de índole compassiva e bem intencionada; mas, como disse, o querer-me vingar dum agravo que se me fez, deu em terra com todas as minhas boas inclinações, de forma que persevero neste estado, apesar do que entendo; e, como um abismo chama outro abismo e um pecado outro pecado, encadearam-se as vinganças, de modo que me encarrego não só das minhas, mas também das alheias; mas, graças a Deus, ainda que me vejo no meio do labirinto das minhas confusões, não perco a esperança de sair dele a salvamento.

Ficou D. Quixote admirado de ouvir a Roque tão boas e concertadas razões, porque pensava que entre os que tinham estes ofícios de roubar, matar e assaltar, não podia haver quem tivesse bom discorrer; e respondeu-lhe:

— Senhor Roque, o conhecimento da enfermidade e o querer tomar o enfermo os remédios que o médico receita são o princípio da saúde: Vossa Mercê está enfermo, conhece a sua doença, e o céu, ou Deus, para melhor dizer, que é o nosso médico, lhe aplicará remédios que o sarem, remédios que costumam curar a pouco e pouco, e não de repente e por milagre; e, além disso, os pecadores discretos estão mais próximos de emendar-se, do que os simples; e, como Vossa Mercê mostrou no seu arrazoado a sua prudência, tenha ânimo e espere, que há-de melhorar da enfermidade da sua alma; e se quiser poupar caminho e entrar com facilidade no da sua salvação, venha comigo, que eu o ensinarei a ser cavaleiro andante, profissão em que se passam tantos trabalhos e desventuras, que, tornando-as por penitência, põem-no em duas palhetadas no caminho do céu.

Riu-se Roque do conselho de D. Quixote, a quem, mudando de conversação, contou o trágico sucesso de Cláudia Jerônima, ficando muito pesaroso Sancho, a quem não tinha parecido mal a beleza, desenvoltura e brio da moça. Nisto, chegaram os escudeiros do roubo, trazendo consigo dois cavaleiros e dois peregrinos a pé, e um coche de mulheres, com seis criados a pé e a cavalo, que as acompanhavam, e mais dois moços de mulas, que os cavaleiros traziam. Meteram-nos no meio os escudeiros, guardando vencidos e vencedores um grande silêncio, à espera que falasse o grande Roque Guinart, o qual perguntou aos cavaleiros quem eram, para onde iam e que dinheiro levavam.

Um deles respondeu:

— Senhor, somos dois capitães de infantaria espanhola, temos as nossas companhias em Nápoles e vamos embarcar numas galés, que se diz que estão em Barcelona, com ordem de passar à Sicília; levamos cerca de duzentos ou trezentos escudos, com que, no nosso entender, vamos ricos e satisfeitos, porque as habituais estreitezas dos soldados não permitem maiores tesouros.

Perguntou Roque aos peregrinos o mesmo que aos capitães; responderam-lhe que iam embarcar para passar a Roma, e que ambos levariam sessenta reais. Quis saber quem ia também no coche e o dinheiro que levava; e um dos de cavalo disse:

— Vão no coche minha ama D. Guiomar de Quiñones, mulher do regedor do vigariado de Nápoles, com uma filha pequena, uma donzela e uma dona; acompanhamo-las seis criados, e o dinheiro eleva-se a seiscentos escudos.

— De modo — disse Roque Guinart — que temos aqui a novecentos escudos e sessenta reais: os meus soldados serão sessenta, pouco mais ou menos: vejam quanto cabe a cada um, que eu sou mau contador.

Ouvindo isto, os salteadores levantaram a voz, bradando:

— Viva Roque Guinart muitos anos, mau grado aos patifes que juraram perdê-lo.

Turbaram-se os capitães, afligiu-se a senhora regedora e não ficaram nada satisfeitos os peregrinos, vendo a confiscação dos seus bens. Teve-os assim Roque um pedaço suspensos, mas não quis que fosse mais adiante a sua tristeza, que já claramente se revelava, e disse, voltando-se para os capitães:

— Emprestem-me Vossas Mercês, por favor, senhores capitães, sessenta escudos, e a senhora regedora oitenta, para contentar esta minha esquadra, porque o abade janta do que canta; e podem seguir depois o seu caminho, livre e desembaraçadamente, com um salvo-conduto, que eu lhes darei, para que, se toparem alguma outra das minhas esquadras, que tenho divididas por estes contornos, elas lhes não façam dano, que não é minha intenção agravar soldados, nem mulher alguma, especialmente as que são principais.

Foram infinitas e bem expressas as razões com que os capitães agradeceram a Roque a sua cortesia e liberalidade, que assim consideraram o deixar-lhes o dinheiro que era deles. A senhora D. Guiomar de Quiñones quis-se apear do coche para beijar os pés e as mãos do grande Roque, mas ele não o consentiu de modo algum, antes lhe pediu perdão do agravo que lhe fizera, por se ver forçado a cumprir as obrigações do seu ofício. Mandou a senhora regedora a um dos seus criados que desse imediatamente os oitenta escudos que lhe tinham distribuído, e já os capitães haviam desembolsado os sessenta. Iam os peregrinos entregar toda a sua mesquinha fazenda, mas Roque disse-lhes que estivessem quedos; e, voltando-se para os seus, disse-lhes:

— Destes escudos cabem dois a cada um de vocês, e sobejam vinte; dêem dez a estes peregrinos e outros dez a este honrado escudeiro, para que possa dizer bem desta aventura.

E, tirando arranjos para escrever, de que sempre andava munido, deu-lhes por escrito um salvo-conduto para os maiorais das suas esquadras e, despedindo-se deles, deixou-os ir livres e admirados da sua nobreza, do seu galhardo porte, do seu estranho proceder, tendo-o por mais Alexandre Magno do que por um ladrão conhecido.

Um dos escudeiros disse na sua língua, meia gascã, meia catalã:

— Este nosso capitão serve mais para frade, que para bandoleiro: se daqui por diante quiser mostrar-se liberal, que seja com a sua fazenda e não com a nossa.

Não o disse tão devagar o desventurado, que Roque deixasse de o ouvir, e este logo, lançando mão à espada, lhe abriu a cabeça quase de meio a meio, dizendo-lhe:

— Assim castigo os desbocados e atrevidos.

Pasmaram todos, e nenhum se atreveu a dizer uma palavra: tanta era a obediência que lhe tinham. Afastou-se Roque para o lado e escreveu uma carta a um seu amigo de Barcelona, avisando-o de que estava com ele o famoso D. Quixote de la Mancha, aquele cavaleiro andante de quem tantas coisas se diziam; e que lhe fazia saber que era o mais engraçado e mais entendido homem do mundo: que daí a quatro dias, dia de S. João Batista, iria pôr-se no meio da praça da cidade, armado com todas as armas, montado no seu cavalo Rocinante, acompanhado pelo seu escudeiro Sancho, montado num burro, e que desse notícia disto aos Niarros seus amigos, para que com ele se divertissem; que ele desejaria que não se regalassem também com isto os Cadeils seus contrários, mas que era impossível evitá-lo, porque as loucuras e discrições de D. Quixote, e os donaires do seu escudeiro Sancho Pança não podiam deixar de servir de passatempo geral a toda a gente.

Despachou esta carta por um dos seus escudeiros, que mudando o trajo de bandoleiro no de lavrador, partiu para Barcelona.