Quinquim veio acompanhando o cadáver do Machico, e ficou em casa. Soube logo que um boi liso azeitão, muito gordo, dos apanhados na vaquejada, começou a rodar no curral, desde a tarde, a ponto de não poder dar uma passada sem corrupiar. Seu Antônio sangrara o bicho nas ventas, e dera um talho em cada orelha. O boi ficou bom. Amanheceu morta uma vaca amojada.

O gado, encurralado e submetido a jejum, passara um dia de amores que dão crias.

E o Quinquim profundamente triste. Que boa alma! - pensava consigo a mulher. - Como sentiu a morte do pobre Machico! De feito, com os retirantes, na seca, o marido até se revelara homem de coração duro, continuava a Guida. Ela é que sempre fora compadecida...

Entretanto, dois espetáculos, que se desemplicaram em mil caprichosidades da fantasia, perseguiam o taciturno esposo, quer desperto, quer adormecido, naqueles dois primeiros dias de abalo. Um, o corpo do Machico, assim tão moço, tão ruivo, estirado, vaquejando, sob a peneiragem de sol que descia pelas frestas da folhagem, repousando a cabeça na coxa de um companheiro, enquanto os demais lhe deitavam pela boca adentro garapa de rapadura, que ele vomitava em seguida com uma tosse rachada, com sangue pisado; e - os vaqueiros que estavam a abeberar no riacho Ipueirinha, caçoando do coitado do grão Senhor do Poço da Moita!

Que diabo era a vida? Ele ricaço e infamado, o outro pobre e morto de desgraça.

Acabar! E veio logo apresentando-se filauciosamente a idéia do suicídio. Deliberou. À meia-noite, caminhou de espingarda ao ombro para o rio, para jogar-se do olho de uma árvore, com uma pedra nos pés, direitinho ao fundo do poço da Bilinga, ao passar chumbo no próprio crânio pela boca adentro.

E o teria realizado, se não fora Deus, ou o Diabo.

Quem é que não crê em almas do outro mundo?

Lua muito clara. O vulto do marido ultrajado palmilhava soturno e decidido. O caminho ia sempre descendo, descendo, até dar nos almargeais do rio. Aqui eram altos e baixos, rocha nua e espontada, escavada, matos retorcidos, balsedos, toda a muda história secular, e até milenária, das erosões gigantescas, das grandes águas e dos grandes sóis. Malacacheta a formigar à face da rocha e da piçarra; um belo pedaço de noite, com a claridade azulina da lua em forma de foice.

Na beira do poço, que se percebia de longe pelo reflexo, pairava um vulto branco, e gemia, como um galho de árvore roçando em outro.

Arrepiaram-se os cabelos ao Quim.

Avançar?

— Quem está... aí? - perguntou, e em que arrocho!

O som da sua voz lhe dera um animozinho.

— Quem está aí... Não responde?!...

Devia ver se era mesmo alma. O Machico! O Machico! Olha lá cabelos em pé.

— Lá vai bala! Quem é fale da parte de Deus.

— Não fala?

— Eu atiro!...

— Lá vai bala...

— Lá vai bala...

Pum! fogo. O vulto não se moveu. Novo tiro, que a arma tinha dois canos. O estampido incutia coragem. O Quim adiantou-se.

E bem na ribanceira:

— Se não é deste mundo, requeiro em nome do Padre, do Filho...

Não acabou a frase. Um tropel violento passou-lhe por de junto. Ficou a abugalhar, absorto para um ramo que, trepidando ao luar, balançava ainda.

Pernas para que eu te quero!

Chegou em casa pondo os bofes pela boca, e não contou nada, já pela vergonha, já pelo mistério íntimo daquela ida ao rio, assim no meado da noite.

Quem veio a saber disso foi o Miguelzinho do Vavaú tempos depois, que o taxou de pusilânime, pois o que ele devia ter feito era naquela mesma noite disparado, sim, os dois tiros, mas um na Guida e outro no miserável, que do contrário a moral não podia ficar de pé. Bala, Seu Quinco, é só o que lava a honra! E ai! do dia em que se pensar de outro modo. Mas ele cuidou foi em acabar consigo, quando seu dever seria justamente acabar com os outros. Aquilo não foi mais do que alguns animais que estavam bebendo... Quem vira a visagem fora o assombro dele. Se lhe permitia a franqueza, fora a sua cobardia.

E no mistério ficou a visagem. O Quim explicou no dia seguinte em casa, por terem-no visto chegar e ouvido os tiros, que saíra a tocaiar porcos, e disparara três vezes a espingarda.

No primeiro ensejo, com certa surpresa para a Guida, perguntou-lhe o marido se o Secundino não tinha que fazer na Goiabeira, pois passava dia e noite a andejar pelo Poço da Moita.

— Eu sei lá! na verdade - admirou - vocês são homens e não sabem dos trabalhos dos outros? Será preciso vir indagar por isso às mulheres?

Chegou logo o São João. O Quinquim, queixando-se de doente passou a dormir sozinho, no quarto do oratório, que por ser mais abafado menos mal lhe causava ao reumatismo. Não foram para a vila aquele ano pela festa do padroeiro, ainda com o gosto ruim da queda do partido.

A Guida, porém, foi passar por lá o São João. Não voltou senão a 26 do mês. Ai! Que aquilo era fina!

Sua casa na vila era situada ao desembocar da rua Grande, com quatro portas, na frente um frondoso pé de tamarindo, em uma espécie de praça. Fez-se a fogueira de grossos troncos de pau zarolho, com o mamoeiro no vértice da pira, bem no pátio, e para lá se descia por uns degraus de alvenaria acostados à calçada. Às seis horas e tanto acendeu-se a fogueira.

Na mesma rua, nas outras ruas se avistavam fogueiras. Noite já escura, o lugarejo oferecia um espetáculo ardente, com moças, meninos e rapazes a brincarem com pistolas, buscapés, traques, e quanto fogo, ao clarão das labaredas.

A Guida fizera três jarras de aluá. O Secundino esse ano não veio ao povoado porque dera um talho num pé.

Lalinha, todos os dias, escapava da casa do pai, e vinha ter com a poderosa amiga.

A encantadora menina esperava lá consigo que a qualquer instante o Secundino apeasse na porta da Guida, pois, divertido como era, não seria possível que se deixasse ficar nos matos em tempo de festa. Não, não seria. Indagara por ele. A Guida respondera com um muxoxo:

— Aquilo? Minha filha, aquilo depois que se meteu de fazendeiro... Eu chego já a arrepender-me de ter inventado aquele arranjo! Aquilo está um preguiçoso, menina... Olha, uma ocasião deixou de vender não sei quantos bois, por um bom dinheiro, só para não montar a cavalo e caminhar duas léguas, que os homens estavam arranchados no Antônio Curica, acima da Passagem.

A Lalinha fazia uma fisionomia de quem não podia admitir que o rapaz tivesse ou fizesse coisa que não fosse boa e bonita:

— Guidinha, você também?!

— Você também! - repetiu. Aquilo nunca valeu mas foi nada! Você quer saber, Lalinha? Até me admira que uma menina como você perca o seu tempo com... com semelhate vasilha!

— Oh! Dona Guidinha!

Aqui a menina correu para a sala, onde outras donzelas, que a casa da Guida vivia sempre cheia, palravam assuntos, justamente, de namoros. Fulana gosta de Sicrano, Beltrano não quer saber de Chiquinha e ela a teimar... O Tonho um dia quase morreu danado porque Zefinha não dançou com ele todas as quadrilhas. Mais isto, porém aquilo...

O certo é que a Lalinha, no íntimo, ficou saciada no seu egoísmo cioso pelo desprezo com que a outra se referia ao Secundino.

À noite, a fogueira, milho assado na palha, café, bolos, jogos de prenda, violão e modinhas.

Os meninos e os moleques fartavam-se com batatas doces e jerimum de rescaldo. As escravas serviam ao poviléu do bom aluá, que às vezes percorria a roda do moceiro em bandeja e grandes cálices de vidro de cor.

Estavam ali os melhores rapazes da terra, entre os quais, termo médio de todas as classes da localidade, o Conrado Bonfim, secretário da Câmara Municipal, escrivão crônico ad hoc, promotor ad hoc... Por sinal que sabia uma bela acusação decorada, aplicável a todos os casos, e também uma defesa, idem, para quando era advogado por ocasião do júri. Dava-lhes com uns latins, pronunciados rapidamente a fim de salvar as silabadas. Era procurador do Santíssimo, e fora por Frei Serafim escolhido para zelador da capelinha das Almas, que estava em ruínas, como em geral todas as coisas do outro mundo neste vale de lágrimas.

Tinha o Bonfim andado pelo alto sertão, fazendo umas cobranças e chegara com a novidade muito importante de uma Nossa Senhora aparecida. A Guida, que há tempo não vinha à vila, pediu-lhe para a contar perante a roda... Ele tomou a palavra, depois de passar o lenço tabaqueiro pelo nariz de corica:

— História da Santa aparecida na beira do rio Salgado, acima de Lavras - Cheguei na vila de Lavras ali ao toque das Ave-Marias, e me arranchei em casa do Vigário, que foi logo contando pelo miúdo o grande sucesso religioso do aparecimento da Nossa Senhora, a que me reporto. Mandei pear os cavalos na varge, armei a rede na sala, acendi o cachimbo... O Vigário tinha saído para uma confissão, cortando-me assim a conversa a respeito da Santa.

— Não é pela sua viagem, Seu Bonfim, que se pergunta, retorquiu a Guida, é pela história da aparição.

— Pois estou nela! Quando o Vigário voltou, eu já dormia. Tinha ceado bem, coalhada com carne assada na brasa. Ai! Que boa carne! E que café, vindo expressamente de Baturité, que o Vigário da Conceição mandou! Aqui é que eu queria provar dele! Então, Vossa Mercê, Comadre Guidinha, que dá tudo por café... Mas voltando à vaca fria, fiquei logo tentado a ir ver com meus olhos o lugar abençoado, e pela manhã, antes da partir, pedi ao Vigário que me contasse o negócio desno princípio, mó de eu não ir, como lá diz, cos beiços com que mamei, e ele me contou...

Da parte do Vigário nesta narrativa da Aparecida. - Homem! - disse-me o Vigário, que me esqueci de dizer que era o Padre José de Brito, dos Britos com um t só, da Serra dos Cocos, que eu conheci do tempo da aula de latim, quando estudamos nas Russas com o professor Antônio Pimentão Frangoso de Albuquerque Souto Maior, por apelido Remela, grande tomador de simonte, ameno vício que transmitiu aos seu discípulos com o hora, horae...

Disse, porém, o Vigário:

— Seu Bonfim, quer que lhe fale como homem?

Ele às vezes me tratava por tu, ora por você. Ou como padre, se não são separáveis a batina e a ceroula. Verdade seja que estou acostumado a ver a gente ser um em casa, outro na rua, outro no comércio, outro na política... Mas cá comigo é só Conrado Bonfim, para um tudo.

— Pois lá vai como queira. Quando o vi chegar, supus que vinha em romaria, como todos os dias vem gente, e por isso perguntei-lhe se vinha às folhas, isto é, buscar folhas do pé de ingazeira, onde Nossa Senhora apareceu, que são milagrosas como chá, como rapé, e até mascadas. Aproveite o ensejo, e leve daí uma buxa de folhiço, que de uma buxa não passa toda essa lenga-lenga. Já pedi ao Ver. Visitador que me providenciasse a respeito desses descaros da superstição e da especulação de alguns colegas meus... Ele me respondeu mais ao menos que nem com tanta sede ao pote, que de estrumes semelhantes é que assim mesmo ainda se vai nutrindo a vinda do Senhor.

— E que respondeu a esse padre, Seu Conrado?

— Nada, vi que era um falso profeta. Disfarcei, com pena dele, porque fora meu amigo. Lá via agora o fio da meada:

Estando Aninha Quenquem lavando roupa em um poço do rio Salgado - é a história - e tendo conduzido consigo uma filha de treze anos, de nome Berta, deu-se o caso pela seguinte forma: Berta se afastara no intuito de apanhar uns gravetos para fazer fogo, e se demorou bastante. A mãe, dando pela ausência, depois de passado algum tempo, chamou, se levantou, foi procurar, ninguém respondeu, nada viu... Dado um prazo, Aninha aparecia de debaixo de umas ingazeiras tecidas por jitiranas, vermelha, açodada, agitada, assombrada, quase tolhida a fala.

— Que é isso, minha filha?

A menina respondeu só estas palavras:

— U'a muié... que me chamou.

Não disse mais no momento.

— Entrou em êxtases, explicou a Lalinha.

— Assentou-se, repousou, e por fim declarou alto e bom som que uma mulher muito bonita, com feições de estrangeira, de branco, de xale azul, pegou a chamá-la com a mão. E ela foi ao muito insistir, até que ambas entraram nas ingazeiras. A mulher, aí, disse a ela que queria que se cantassem sete terços, em sete sábados... Terços esses que foram cantados, em um altar levantado ali mesmo junto ao rio. Daí a menina pegou a ir todos os dias, e começou o povo a acudir. Ninguém conta nada ao certo, uns dizem que a menina, tendo-se confessado ao Padre Valentim, só a ele, revelou o mais que a Santa disse. O que eu vi foram as ingazeiras todas peladinhas. Sim, mais esta: contam que a Santa ordenou que não queria que lhe chamassem mais Nossa Senhora, porque diz que agora tudo é senhora, mas que seu nome devia ser o de Mãi Santíssima. Falou contra o uso de balão, de bandós, e de vestido decotado, e disse que tinha recomendado muito esse pecado aos seus santos missionários...

— Não podia ser senão Nossa Senhora mesmo! - disse a Guida em tom piedoso.

— Está-se vendo!

Outros diziam que a Santa não passava da alma da mulher do tenente Zózimo, que foi mal casada, morrendo assassinada por ele. Dizem que ela andava penando... O certo é que na casa onde ela morreu, que fica perto, ninguém morou mais, nem entrou bicho nenhum vivo, nem nasceu mato em roda.

— E em que deu isso, Seu Conrado?

— A aparição?

— Sim, a aparição.

— Um dia espalhou-se que a Santa dissera à menina que mandasse mudar os terços para a igreja, que houvera de vir uma grande enchente. A inundação não veio. Por fim ao povo foi cansando a fé. Mas explica-se perfeitamente a suspensão do benefício que a Santa prometia, naqueles tempos de sequidão, e foi porque, tendo ela recomendado que se casassem todos os amancebados nas cercanias de vinte léguas, isto não se cumpriu. Pelo menos o Vigário do Icó continuou com a sua moça...

E será verdade que essa tal de Berta deu à luz tempos depois?

— Isso não sei. Não vi. Mas diz-se que é exato.

— Ai! Lá em casa ainda tem dessas folhas de ingazeira para remédio. Agora é que me lembro! - exclamou a Lalá, que parecia abstrata.

— E tinha mais esta: não se deviam rasgar as folhas com a mão, mas cortar à tesoura, para os chás, etc.

— Ora, aquilo andou por aqui como ovos de pombal, era por cima do tempo, nunca se viu pé de pau dar tanta folha.

— O pai dessa Berta ainda outro dia passou tirando esmolas para essa Santa - disse a Guida. E eu dei-lhe até um patacão!

Vinha se aproximando o Padre João Franco:

— Hem, Dona Guida? Parece que se refere àquele sujeito coxo que passou por aqui fazendo colheita?

— Oh! Seu Vigário! Faça o favor de subir... É mesmo, estávamos aqui conversando...

— Obrigado, eu não subo. Já andei por ái muito tempo. Agora vou ao meu sossego. Porém aquele sujeito não me torna a pisar na freguesia tirando esmolas. Mando agarrá-lo e entregar ao Visitador... Já o preveni. Fiquem certos que nunca vi maior escândalo. Fazem de Nossa Senhora uma brincadeira, senhores, com umas aparições impossíveis, e para quê? Para especular. Sai o pai pelo mundo explorando a fé dos crentes, a pedir esmolas para... para edificar uma igreja! E acha quem dê. Muita gente! Todo o mundo! Entretanto não dão um vintém para consertar-se a matriz...

Assim reclamava o ministro do Deus contra o seu êmulo dos deuses dos matos.

E continuaram a prosar, brincando prenda uns, enquanto outros iam ser compadres na fogueira de São João.

Finda a festa, Margarida esperou que o Quinquim lhe trouxesse a condução, no dia 25, segundo lhe havia dito. E apenas, isto já para a tarde, chegou o cabra Naiú com os cavalos. E por que o Secundino não viera em lugar do Senhor? perguntou a Lalinha.

— Mó do talho, respondeu o escravo, que ainda está muito infuleimado, tendo arrebentado a papoca, abaixo do rejeito.

— E que aconteceu ao Senhor?

— Nada, não, senhora. Mó de coisa que ele estava co romatismo... Foi o que o Silveira dixe, e diz que era nos peito.

— Jucá, D. Guidinha! Dê jucá a seu marido, que para isso não há coisa igual. Papai tem tomado e se dá tão bem!

Guida não fez caso, limitando-se a ordenar que sairias ao quebrar das barras.