A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Inferno/XXVI: diferenças entre revisões

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O Mestre, ao ver que a mente se embevece,
““Em cada fogo”” — diz-me — ““um condenado,
Como em hábito, envolto, arde e padece””.
 
““Sou, te ouvindo”” — tornei — ““certificado
Do que era, há pouco, em mim simples suspeita.
Pretendia inquirir, maravilhado,
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Que significa o fogo, que endireita
A nós, e se partindo, iguala a pira,
Para imigos irmãos outrora feita””.
 
— ““Estão lá dentro dessa flama dira
Diômedes e Ulisses<ref>''Diômedes e Ulisses'', heróis gregos que combateram juntos no assédio de Tróia. [N. T.]</ref>: em castigo
Sócios são, como outrora hão sido em ira.
 
“&#0147;Lá dentro geme o pérfido inimigo,
Inventor do cavalo, que foi porta,
Por onde a Roma veio o início antigo;
 
“&#0147;Chora-se a fraude, que Deidamia morta,
Ainda exprobra a Aquiles, ressentida;
Pelo Paládio a pena se suporta”&#0148;<ref>O Poeta lembra três façanhas astuciosas de Ulisses: o cavalo de madeira para enganar os troianos; a descoberta de Aquiles disfarçado em mulher entre os companheiros de Deidâmia; e o roubo de uma estátua de Palas que tornava Tróia inexpugnável. [N. T.]</ref>.
 
“&#0147;Se à labareda, ó Mestre, é permitida
A fala”&#0148; &mdash; eu disse &mdash; “&#0147;te suplico e rogo
Com instância, mil vezes repetida,
 
“&#0147;Aguardar me concedas esse fogo,
Que, bipartido para nós caminha.
Vês meu anelo: ah! dá-lhe o desafogo!”&#0148;
 
“&#0147;Merece toda a complacência minha
Teu rogo: eu de bom grado o atendo e aceito.
Mas cala-te; que hás de ser contente asinha.
 
“&#0147;Falar me deixa; sei qual teu conceito,
Talvez que desses Gregos na alma esquiva
Produza o teu dizer ingrato efeito”&#0148;.
 
Propínqua estando a nós a flama viva,
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Nesta linguagem disse persuasiva:
 
“&#0147;Ó vós, que nesse fogo eu juntos vejo,
Se por serviços meus, quando vivia,
Revelei de aprazer-vos o desejo,
 
“&#0147;Nos sonoros versos que escrevia,
Detende-vos: benévolo um nos diga
Onde viu fenecer o extremo dia”&#0148;.
 
A parte superior da flama antiga
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E a um lado e a outro o cimo meneando,
Como se língua fora, que falasse,
Estas vozes profere, e diz-nos: “&#0147;Quando
 
“&#0147;De Circe a encantos me esquivei fugace,
Em que um ano passei junto a Gaeta<ref>Enéias ao fundar a cidade de Gaeta deu-lhe o nome de sua nutriz. [N. T.]</ref>,
Antes que assim Enéias a chamasse,
 
“&#0147;A saudade do filho, a mui dileta
Velhice de meu pai, de alta consorte
Santo amor, em que ardia sempre inquieta,
 
“&#0147;Não dominaram esse anelo forte
Que me impulsava a ser do mundo esperto,
Das manhas das nações, da humana sorte.
 
“&#0147;Lancei-me às vagas do alto mar aberto;
Sobre um só lenho me seguiu companha
De poucos, mas de afouto peito e certo.
 
“&#0147;As ondas perlustrando, hei visto a Espanha,
Marrocos, logo a ínsula dos Sardos
E as outras que o cerúleo pego banha.
 
“&#0147;Já da velhice nos sentidos tardos,
Alfim chegamos ao famoso estreito<ref>Gibraltar, cujos montes (as colunas de Hércules) eram considerados como aviso para que não se passasse além. [N. T.]</ref>,
Onde Alcides aos nautas pôs resguardos,
 
“&#0147;Que devem respeitar por seu proveito.
Deixei Septa, que jaz ao esquerdo lado,
E Sevilha, que ao lado está direito.
 
“&#0147;Perigos mil vencendo e avesso fado”&#0148;
Lhes disse &mdash; “&#0147;irmãos, chegastes ao Ponente!
Da existência este resto, já minguado,
 
“&#0147;Razão não seja, que vos tolha a mente
De além do sol, tentar nobre aventura,
E o mundo ver, que jaz órfão de gente.
 
“&#0147;Da vossa raça refleti na altura!
Viver quais brutos veda-o vossa origem!
De glória vos impele ambição pura!
 
“&#0147;Com tanto esforço os ânimos se erigem,
Falar me ouvindo assim, que ir por diante
De entusiasmo sôfregos, exigem.
 
“&#0147;Já, com popa ao Nascente flamejante,
Asas os remos são na empresa ousada,
E o lenho sempre à esquerda voga avante.
 
“&#0147;Já do outro polo a noite levantada,
Via os astros brilhar: o nosso, entanto,
Na planície imergia-se salgada:
 
“&#0147;Cinco vezes a luz do etéreo manto
A lua difundira e após minguara,
Depois que arrosto do oceano o espanto,
 
“&#0147;Quando imensa montanha se depara:
Envolta em cerração, longe aparece;
Na altiveza outra igual nunca avistara.
 
“&#0147;O prazer nosso em pranto se esvaece:
Da nova terra eis súbito irrompendo
Contra o lenho um tufão medonho cresce.
 
“&#0147;Vezes três em voragens o torcendo,
A quarta a popa levantou-lhe ao alto,
E a proa, ao querer de outrem, foi descendo”&#0148;.
 
Cerrou-se o pego sobre nós de salto.