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|obra=Auto da Barca do Inferno
|autor=Gil Vicente
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''Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome. Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa pera o paraíso e o outro pera o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.''
Representa-se na obra seguinte uma prefiguração sobre a rigorosa acusação que os inimigos fazem a todas as almas humanas, no ponto que por morte de seus terrestres corpos partem. E por trazer desta matéria põe o autor por figura que no dito momento elas chegam a um profundo braço de mar, onde estão dois batéis: um deles passa para a Glória, outro para o Purgatório. É repartida em três partes: a cada embarcação uma cena. Esta primeira é da viagem do inferno.
Esta prefiguração se escreve neste primeiro livro nas obras de devoção, porque a segunda e a terceira partes foram representadas na capela; mas esta primeira foi representada na câmara, para a consolação da muito católica e santa Rainha D. Maria, estando enferma do mal de que faleceu na era do senhor de 1517.
 
==Figuras==
Figuras: Anjo; Diabo; Companheiro do Diabo; Fidalgo; Onzeneiro; Parvo; Sapateiro; Frade; Brísida Vaz, Alcoviteira; Judeu; Corregedor; Procurador; Enforcado e Quatro Cavaleiros.
*Anjo (arrais do Céu)
*Diabo (arrais do Inferno)
*Companheiro do Diabo
*[[Auto da Barca do Inferno/O Fidalgo|Fidalgo]]
*Pajem
*[[Auto da Barca do Inferno/O Onzeneiro|Onzeneiro]]
*[[Auto da Barca do Inferno/O Sapateiro|Sapateiro]]
*[[Auto da Barca do Inferno/O Parvo|Parvo]]
*[[Auto da Barca do Inferno/O Frade|Frade]]
*Florença
*[[Auto da Barca do Inferno/A Alcoviteira|Alcoviteira]]
*[[Auto da Barca do Inferno/O Judeu|Judeu]]
*[[Auto da Barca do Inferno/O Corregedor e o Procurador|Corregedor]]
*[[Auto da Barca do Inferno/O Corregedor e o Procurador|Procurador]]
*[[Auto da Barca do Inferno/O Enforcado|Enforcado]]
*[[Auto da Barca do Inferno/Os Cavaleiros|Quatro Cavaleiros]]
 
[[Categoria:Gil Vicente]]
----
[[Categoria:Teatro português]]
 
[[Categoria:1517]]
''O primeiro interlocutor é um'' FIDALGO ''que chega com um Pajem que lhe leva um rabo muito comprido e uma cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno antes que o'' FIDALGO ''venha:''
[[Categoria:Teatro Vicentino]]
 
[[Categoria:Obras em português antigo]]
<poem>
'''Diabo'''
À barca, à barca, olá,
que temos gentil maré!
- Ora venha o caro a ré!
 
'''Companheiro do Diabo'''
- Feito! Feito!
'''Diabo'''
- Bem está!
Vai tu muitieramá!,
atesa aquele palanco
e despeja aquele banco
para a gente que virá.
 
À barca, à barca, hu-u!
Asinha, que se quer ir!
Oh, que tempo de partir,
louvores a Berzebu!
- Ora, sus! que fazes tu?
Despeja todo esse leito!
'''Companheiro'''
- Em boa hora! Feito, feito!
'''Diabo'''
- Abaixa má-hora esse cu!
 
Faze aquela poja lesta
e alija aquela driça.
'''Companheiro'''
- Ô-ô, caça! Ô-ô, iça! iça!
'''Diabo'''
- Oh, que caravela esta!
Pões bandeiras, que é festa!
Verga alta!Âncora a pique!
- Ó poderoso dom Anrique!
Cá vinde vós? Que cousa é esta?
 
</poem>
 
''Vem o'' FIDALGO ''e, chegando ao batel infernal, diz:''
 
<poem>
'''Fidalgo'''
- Esta barca onde vai ora,
que assim está apercebida?
'''Diabo'''
- Vai para a ilha perdida
e há-de partir logo ess'ora.
'''Fidalgo'''
- Para lá vai a senhora?
'''Diabo'''
- Senhor, a vosso serviço.
'''Fidalgo'''
- Parece-me isso cortiço...
'''Diabo'''
- Porque a vedes lá de fora.
 
'''Fidalgo'''
- Porém, a que terra passais?
'''Diabo'''
- Para o Inferno, senhor.
'''Fidalgo'''
- Terra é bem sem-sabor.
'''Diabo'''
- Quê? E também cá zombais?
'''Fidalgo'''
- E passageiros achais
para tal habitação?
'''Diabo'''
- Vejo-vos eu em feição
para ir ao nosso cais...
 
'''Fidalgo'''
- Parece-te a ti assim.
'''Diabo'''
- Em que esperas ter guarida?
'''Fidalgo'''
- Que deixo na outra vida
quem reze sempre por mim.
'''Diabo'''
- Quem reze sempre por ti?...
Hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi!...
E tu viveste a teu prazer,
cuidado cá guarecer
por que rezam lá por ti?!
Embarcai!Hou!Embarcai,
que haveis de ir à derradeira.
Mandai meter a cadeira,
que assim passou vosso pai.
'''Fidalgo'''
- Quê? Quê? Quê? Assim lhe vai?
'''Diabo'''
- Vai ou vem, embarcai prestes!
Segundo lá escolhestes,
assim cá vos contentai.
 
Pois que já a morte passastes,
haveis de passar o rio.
'''Fidalgo'''
- Não há aqui outro navio?
'''Diabo'''
- Não, senhor, que este fretastes,
e primeiro que expirastes
me destes logo sinal.
'''Fidalgo'''
- Que sinal foi esse tal?
'''Diabo'''
- Do que vós vos contentastes.
 
'''Fidalgo'''
- A estoutra barca me vou.
- Hou da barca! Para onde is?
Ah, barqueiros! Não me ouvis?
Respondei-me! Houlá! Hou!
- Pardeus, aviado estou!
Quanto a isto é já pior...
Que gericocins, salvanor!
Cuidam cá que sou eu grou?
 
'''Anjo'''
- Que quereis?
'''Fidalgo'''
- Que me digais,
pois parti tão sem aviso,
se a barca do Paraíso
é esta em que navegais.
'''Anjo'''
- Esta é; que demandais?
'''Fidalgo'''
- Que me deixeis embarcar.
Sou fidalgo de solar,
é bem que me recolhais.
 
'''Anjo'''
- Não se embarca tirania
neste batel divinal.
'''Fidalgo'''
- Não sei por que haveis por mal
que entre minha senhoria...
'''Anjo'''
- Para vossa fantasia
mui estreita é esta barca.
'''Fidalgo'''
- Para senhor de tal marca
não há aqui mais cortesia?
 
Venha a prancha e atavio!
Levai-me desta ribeira!
'''Anjo'''
- Não vinde vós de maneira
para ir neste navio.
Essoutro vai mais vazio:
a cadeira entrará,
e o rabo caberá,
e todo vosso senhorio.
 
Vós ireis mais espaçoso
com fumosa senhoria,
cuidando na tirania
do pobre povo queixoso.
E porque, de generoso,
desprezastes os pequenos,
achar-vos-eis tanto menos
quanto mais fostes fumoso.
 
'''Diabo'''
- À barca, à barca, senhores!
Oh! que maré tão de prata!
Um ventosinho que mata
e valentes remadores!
 
</poem>
 
''Diz cantando:''
 
<poem>
"Vos me venirés a la mano,
a la mano me veniredes...
e vos veredes
peixes nas redes."
 
'''Fidalgo'''
- Ao inferno todavia!
Inferno há aí para mim?
Ó triste! Enquanto vivi
não cuidei que o í havia.
Tive que era fantasia;
folgava ser adorado;
confiei em meu estado
e não vi que me perdia.
 
</poem>