Dom Quixote/II/VIII: diferenças entre revisões

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|obra=[[Dom Quixote]]
|autor=Miguel de Cervantes
|anterior=[[Dom Quixote/II/VII|Capítulo VII]]
|posterior=[[Dom Quixote/II/IX|Capítulo IX]]
|seção=titDomCapítulo Quixote/II/VIII}}|| — Onde se conta o qne sucedeu a D. Quixote, indo ver a sua dama Dulcinéia del Toboso.--}}
 
Bendito seja o bondoso Alá! diz Hamete Benengeli no princípio deste oitavo capítulo; bendito seja Alá! repete três vezes, e diz que dá estas bênçãos por ver já em campanha D. Quixote e Sancho, e que os leitores desta agradável história podem contar que deste ponto em diante começam as façanhas e donaires de D. Quixote e do seu escudeiro: persuade-lhes que esqueçam as passadas cavalarias do engenhoso fidalgo, e ponham os olhos nas que estão para vir, que principiam desde agora no caminho de Toboso, como as outras principiaram nos campos de Montiel; e não é muito o que pede para tanto como o que promete; e assim prossegue, dizendo:
 
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— É o que eu digo também — respondeu Sancho — e penso que nessa lenda ou história, que nos disse o bacharel Carrasco que de nós outros vira, há-de andar a minha honra tem-te não caias, e, como diz o outro, ao estricote, varrendo as ruas; pois por minha fé que eu não disse mal de nenhum nigromante, nem tenho tantos haveres que possa ser invejado; é verdade que sou alguma coisa malicioso, e que não deixo de ter a minha velhacaria; mas tudo cobre e esconde a grande capa da minha simpleza, sempre natural e nunca artificiosa; e, quando outra coisa não tivesse que não fosse o crer, como sempre creio firme e verdadeiramente, em Deus, e em tudo o que manda acreditar a Santa Igreja Católica Romana, e ser inimigo mortal, como sou, dos judeus, deviam os historiadores ter misericórdia de mim, e tratar-me bem nos seus escritos; mas digam o que quiserem, que sozinho nasci, sozinho me acho, não perco nem ganho apesar de me ver posto em livro, e andar por esse mundo de mão em mão, e de tudo o mais pouco se me dá.
 
— Isso se assemelha, Sancho — tornou D. Quixote — ao que sucedeu a um famoso poeta do nosso tempo, o qual, tendo feito uma maliciosa sátira contra todas as damas loureiras, nem incluiu nem nomeou uma, de quem se podia duvidar se o era ou não, a qual, vendo que não estava na lista das damas, se queixou ao poeta, perguntando-lhe que motivo tivera para a não meter entre as outras, acrescentando que ampliasse a sátira, e a introduzisse, senão que tivesse tento em si. Obedeceu o poeta, e pô-la pelas ruas da amargura, e ela ficou satisfeita por se ver afamada e infamada. Também vem à coleção o que contam daquele pintor que deitou fogo ao templo de Diana, considerado uma das sete maravilhas do mundo, só para que se imortalizasse nos séculos vindouros, e, ainda que se mandou que ninguém fizesse, de viva voz nem por escrito, menção do seu nome, para que não conseguisse o fim do seu desejo, soube-se todavia que se chamava Eróstrato. Também se parece com isto o que sucedeu ao grande imperador Carlos V com um cavaleiro, em Roma. Quis ver o imperador aquele famoso templo da Rotunda, que na antiguidade se chamou o templo de todos os deuses, e agora com melhor invocação se chama de todos os santos, e é o edifício que mais inteiro ficou dos que foram levantados pela gentilidade em Roma, e o que mais conserva a fama da grandiosa magnificência dos seus fundadores: é do feitio de meia laranja, muitíssimo grande, e muito claro, sem lhe entrar mais luz senão a que lhe concede uma janela, ou, para melhor dizer, clarabóia, que está no teto, donde o imperador contemplou o edifício; tinha ele ao seu lado um cavaleiro romano, que lhe dizia os primores e as sutilezas daquela grande máquina e memorável arquitetura, e, tendo-se tirado enfim dali, disse ao imperador: “Mil“Mil vezes, meu senhor, me veio o desejo de me abraçar com Vossa Sacra Majestade, e atirar-me dali abaixo, para deixar eterna fama no mundo.” “Agradeço“Agradeço-vos, respondeu o imperador, não terdes levado a efeito tão mau pensamento, e daqui por diante não vos porei mais em ocasião de poderdes dar prova da vossa lealdade, e assim vos mando que nunca me faleis, nem estejais onde eu estiver.” E ditas estas palavras, fez-lhe uma grande mercê. Quero dizer com isto, Sancho, que o desejo de alcançar fama é ativíssimo. Quem pensas tu que atirou com Horácio Cocles da ponte abaixo, armado com todas as armas, nas profundidades do Tibre? Quem abrasou a mão e o braço de SœevolaSœevola? Quem impeliu Cúrcio a arrojar-se ao ardente vórtice que apareceu no meio de Roma? Quem, contra todos os agouros, fez passar a Júlio César o Rubicão? E com exemplos mais modernos, quem afundou os navios e deixou em terra e isolados os valorosos espanhóis, que o grande Cortez guiava à conquista do Novo Mundo? Todas estas e outras façanhas são, foram e hão-de ser obras da fama, que os mortais desejam como prêmio e antegosto da imortalidade que os seus feitos merecem, ainda que os católicos e cavaleiros andantes mais havemos de atender à glória dos séculos vindouros, que é eterna nas siderais regiões, do que à vaidade da fama, que neste presente e mortal século se alcança, a qual, por muito que dure, enfim há-de acabar com o próprio mundo, que tem o seu fim marcado. Assim, ó Sancho, não saiam as nossas obras dos limites que nos impõe a religião cristã que professamos. Matando os gigantes, matemos o orgulho; combatamos a inveja, com a generosidade; a ira, com a placidez de um ânimo tranqüilo; a gula e o sono, com as curtas refeições e as longas vigílias; a luxúria e a lascívia, com a lealdade que guardamos às que fizermos senhoras dos nossos pensamentos; a preguiça, com o andar por todas as partes do mundo, procurando as ocasiões que nos possam fazer e nos façam, além de cristãos, gloriosos cavaleiros. Vês aqui, Sancho, os meios por onde se alcançam os extremos de louvor que traz consigo a boa fama?
 
— Entendi muito bem — tornou Sancho — tudo o que Vossa Mercê até aqui me tem dito; mas, com tudo isso, desejaria que Vossa Mercê me ''sorvesse'' uma dúvida, que neste ponto me acudiu.