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Linha 1:
|obra=[[Dom Quixote]]
|autor=Miguel de Cervantes
|anterior=[[Dom Quixote/I/XIX|Capítulo XIX]]
|posterior=[[Dom Quixote/I/XXI|Capítulo XXI]]
|seção=
— Não é possível, senhor meu, que estas ervas deixem de nos estar mostrando haver por aqui perto fonte ou arroio que lhes alimenta o viço. Será logo razão passarmos um pouco adiante, e acharemos com que mitigar esta desesperada sede que nos mortifica, e sem dúvida é pior de sofrer do que a própria fome.
Linha 156:
Já de tanta galhofa se ia dando ao diabo D. Quixote, mormente quando lhe ouviu dizer de chança:
—
E por aqui foi enfiando todas as razões que ao amo ouvira, quando começaram aqueles golpes medonhos.
Linha 171:
— Não nego — respondeu D. Quixote — que o sucesso não fosse merecedor de riso; mas digno de contar-se é que não é, porque nem todas as pessoas são tão discretas, que saibam pôr as coisas em seu lugar.
— Vossa Mercê pelo menos — respondeu Sancho — soube pôr no seu lugar a chuça, apontando-me à cabeça, e dando-me nas costas (graças a Deus, e ao cuidado que eu pus em revirar-me a jeito). Mas vá lá, que tudo afinal há-de ser pelo melhor, que sempre ouvi dizer:
— Tal poderia correr o dado — disse D. Quixote — que isso que dizes chegasse a ser verdade; e perdoa o passado, pois és discreto, e sabes que os primeiros movimentos não estão na mão do homem. Fica porém daqui para o diante advertido duma coisa, para que te abstenhas e coíbas no falar demasiado comigo: que em todos quantos livros de cavalarias tenho lido (e que são inumeráveis) nunca achei escudeiro que palrasse tanto com seu senhor como tu com o teu; e em verdade que o tenho por grande falta da tua e da minha parte; da tua, porque nisso mostras respeitar-me pouco; e da minha, porque me não deixo respeitar como devera. Gandalim, por exemplo, escudeiro de Amadis de Gaula, foi conde da Ilha Firme; e dele se lê que sempre que falava ao seu senhor o fazia de gorra na mão, inclinada a cabeça, e o corpo curvado ''more turquesco''. Pois que diremos de Gazabal, escudeiro de D. Galaor? que foi tão calado, que, para se nos declarar a excelência do seu maravilhoso silêncio, só uma vez se profere o seu nome naquela tão grande como verdadeira história. De tudo que te digo hás-de inferir, Sancho, que é necessário fazer-se diferença de amo a moço, de senhor a criado, e de cavaleiro a escudeiro; portanto de hoje avante devemo-nos tratar mais res­pei­to­sa­men­te, sem nunca nos confundirmos um com o outro, porque, de qualquer modo que eu me enfade convosco, quebrado afinal há-de ser sempre o cântaro. As mercês e benefícios, que vos hei prometido, a seu tempo chegarão; e, se não chegarem, o vosso salário pelo menos nunca o haveis de perder, como já vos disse.
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