Dom Quixote/I/XXXV: diferenças entre revisões

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|obra=[[Dom Quixote]]
|autor=Miguel de Cervantes
|anterior=[[Dom Quixote/I/XXXIV|Capítulo XXXIV]]
|posterior=[[Dom Quixote/I/XXXVI|Capítulo XXXVI]]
|seção=titDomCapítulo Quixote/I/XXXV}}|| — Em que se trata da grande e descomunal batalha que teve D. Quixote com uns odres de vinho tinto, e se dá fim à novela do curioso impertinente.--}}
 
Pouco faltava por ler da novela, quando do quarto onde jazia D. Quixote adormecido saiu Sancho Pança todo alvoroçado a gritar:
 
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Sossegados todos, quis o cura acabar de ler a novela, porque viu que pouco faltava para concluir a sua leitura. Cardênio, Dorotéia e todos os mais lhe rogavam que assim o fizesse, e ele, por a todos dar gosto, e mesmo também pelo que lhe dava o lê-la, prosseguiu o conto que era como se segue:
 
“Sucedeu“Sucedeu pois que, pela satisfação que a Anselmo dava a bondade de Camila, vivia numa vida contente e sem cuidados, e Camila de propósito tratava secamente a Lotário, para que Anselmo entendesse às avessas o amor que a este ela tinha; e para maior confirmação do engano de Anselmo lhe pediu Lotário licença de não vir a sua casa, porque Camila claramente mostrava o desgosto com que o via sempre que era forçada a recebê-lo; porém o iludido Anselmo disse-lhe que por modo nenhum tal fizesse; e assim por mil maneiras se tornava Anselmo o fabricador da sua desonra, quando cuidava que o era do seu gosto.
 
Destarte corriam as coisas, quando Leonela, vendo-se de alguma sorte autorizada e apoiada nos seus amores, chegou neles a tal ponto que, sem olhar a outra coisa mais que a satisfazê-los, os deixou ir à rédea solta, fiada em que sua ama a encobria, e mesmo a advertia do modo mais fácil que teria para pô-los sempre em execução. Finalmente, em uma noite, sentiu Anselmo passos no aposento de Leonela, e, querendo entrar a ver quem os dava, sentiu que lhe detinham a porta, o que lhe aumentou a vontade de abri-la, e tanto esforço fez, que a abriu, e entrou dentro a tempo ainda de ver que um homem saltava pela janela para a rua; e, acudindo com ligeireza a ver se o alcançava, ou pelo menos o conhecia, nem uma nem outra coisa conseguiu, porque Leonela se abraçou com ele, dizendo-lhe:
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Vendo o dono da casa que se fizera tarde, e que Anselmo não chamava, resolveu-se a entrar no aposento dele a saber se a sua indisposição aumentava, e o achou com metade do corpo sobre a cama, e o rosto e peito debruçado sobre o bufete, em cima do qual estava um papel escrito, e Anselmo conservava ainda na mão a pena. Chegou-se o hóspede a ele, depois de primeiramente o chamar, e vendo que, chamando-o, lhe não respondia, pegou-lhe na mão e o encontrou frio, por onde conheceu que estava morto. Admirou-se e ficou grandemente magoado e aflito, e chamou pela gente da casa para que presenciassem a desgraça a Anselmo acontecida; e por último leu o papel, que conheceu estar escrito por letra do mesmo Anselmo, e nela se liam as razões seguintes:
 
“Um“Um néscio e imprudente desejo é quem me tira a vida: se a notícia da minha morte chegar aos ouvidos de Camila, saiba que eu lhe perdôo, porque ela não estava obrigada a fazer milagres, nem eu tinha necessidade alguma de querer que ela os fizesse: e pois que fui eu o maquinador da minha desonra, não não há para que......”
 
Até este ponto escreveu Anselmo, por onde se conheceu que naquele momento, sem poder acabar o que escrevia, se lhe acabou a vida.
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Disse-se, que, ainda que se viu viúva, nem quis sair do mosteiro, nem tão pouco professar, como religiosa, até que (não dali a muitos dias) soube que Lotário havia sido morto em uma batalha que naquele tempo deu Mr. de Lautrec ao grande capitão Gonçalves Fernandes de Córdova no reino de Nápoles, onde o amigo tão tardiamente arrependido fora ter afinal: sabido isto por Camila, imediatamente professou no mosteiro, e em breves dias acabou a vida, vítima do rigor insuportável da sua melancólica tristeza.
 
Este foi o fim desditoso para todos que lhes veio de um tão desatinado princípio.”
 
— Muito bem — disse o cura — me parece esta novela; mas não posso persuadir-me que seja isto verdade, e, sendo fingido, o autor fingiu mal, porque na verdade não se pode imaginar que tenha havido no mundo um marido tão parvo, que quisesse fazer uma experiência como a que fez Anselmo: se este caso se desse entre um namorado e a sua amante, ainda poderia admitir-se; mas entre marido e mulher coisa é impossível de acreditar; pelo que toca ao estilo, em que se acha escrita, não me descontenta.