A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Inferno/II: diferenças entre revisões

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Linha 13:
As fadigas tolhia; eu só, velando,<br/>
 
Me aparelhava a sustentar a guerra<br/>
Da jornada, assim como da piedade,<br/>
Que vai pintar memória, que não erra.<br/>
 
Ó Musas! Ó do gênio potestade!<br/>
Valei-me! Aqui, ó mente, que guardaste<br/>
Quanto vi, mostra a egrégia qualidade.<br/>
 
“Poeta”, — assim falei, — “que começaste<br/>
A guiar-me, vê bem se em mim persiste<br/>
Calor que, à empresa que me fias, baste.<br/>
 
“Que o pai do Sílvio fora, referiste,<br/>
Corrutível ainda, até o inferno<br/>
Sem perder o que em corpo humano existe.<br/>
 
“Se do mal assim quis o imigo eterno,<br/>
Origem vendo nele do alto efeito,<br/>
O que e o qual, segundo o que discerno,<br/>
 
“Pela razão bem pode ser aceito;<br/>
Que para Roma e o império se fundarem<br/>
Fora no céu por genitor eleito;<br/>
 
“À qual e ao qual cabia aparelharem,<br/>
Dizendo-se a verdade, o lugar santo<br/>
Aos que do maior Pedro o sólio herdaram.<br/>
 
“Nessa empresa, em que o hás louvado tanto,<br/>
Cousas ouviu, de que surgiu motivo<br/>
Ao seu triunfo e ao pontifício manto.<br/>
 
“Lá foi o Vaso Eleito ainda vivo:<br/>
Conforto ia buscar, à fé, que à estrada<br/>
Da salvação princípio é decisivo.<br/>
 
“Por que irei? Quem permite esta jornada?<br/>
Enéias, Paulo sou? Essa ventura<br/>
Nem eu, nem outrem crê ser-me adatada.<br/>
 
“Receio, pois seja ato de loucura,<br/>
Se eu me resigno a cometer a empresa.<br/>
Supre, és sábio, o que digo em frase escura”.<br/>
 
Como quem ora quer, ora despreza,<br/>
Sua alma a idéias novas tem disposta,<br/>
Mostrando aos seus desígnios estranheza,<br/>
 
Assim fiz eu na tenebrosa encosta,<br/>
Porque, pensando, abandonava o intento,<br/>
Formado à pressa, que ora me desgosta.<br/>
 
“Do teu dizer se atinjo o entendimento”<br/>
— Do magnânimo a sombra me tornava, —<br/>
“Eivado estás de ignóbil sentimento,<br/>
 
“Que do homem muita vez faz alma ignava,<br/>
Das honrosas ações o desviando,<br/>
Qual sombra, que o corcel ao medo trava.<br/>
 
“Desse temor livrar-te desejando,<br/>
Por que vim te direi e quanto ouvido<br/>
Hei logo ao ver-te mísero lutando.<br/>
 
“No Limbo era suspenso: eis requerido<br/>
Por Dama fui tão bela, tão donosa,<br/>
Que as ordens suas presto lhe hei pedido.<br/>
 
“Brilhavam mais que a estrela radiosa<br/>
Os seus olhos; suave assim dizia<br/>
De anjo com voz, falando-me piedosa:<br/>
 
— “De Mântua alma cortês, que inda hoje em dia<br/>
No mundo gozas fama tão sonora,<br/>
Que, enquanto existir mundo, mais se amplia,<br/>
 
“Amigo meu, que a sorte desadora,<br/>
Pela deserta falda indo, impedido<br/>
De medo, atrás os passos volta agora.<br/>
 
“Temo que esteja tanto já perdido,<br/>
Que tarde eu tenha vindo a socorrê-lo,<br/>
Pelo que lá no céu dele hei sabido.<br/>
 
“Parte, pois, e com teu discurso belo<br/>
E quanto o salvar possa do perigo<br/>
Lhe acode; e me console o teu desvelo.<br/>
 
“Sou Beatriz, que envia-te ao que digo,<br/>
De lugar venho a que voltar desejo:<br/>
Amor conduz-me e faz-me instar contigo.<br/>
 
“Voltando ao meu Senhor, em todo o ensejo<br/>
Repetirei louvor, que hás merecido”. —<br/>
“Tornei-lhe, quando já calar-se a vejo:<br/>
 
— “Senhora da virtude, a quem tem sido<br/>
Dado só que proceda a espécie humana<br/>
Quanto é no mundo sublunar contido,<br/>
 
“Tanto praz-me a ordem que de ti dimana,<br/>
Que, já cumprida, houvera inda demora:<br/>
Em me abrir teu querer não mais te afana.<br/>
 
“Diz-me, porém, por que razão, Senhora,<br/>
Baixar a este centro hás resolvido<br/>
Do céu, a que ardes por voltar agora”.<br/>
 
— “Se queres tanto ser esclarecido<br/>
Eu te direi” — tornou-me — “frase breve<br/>
Por que sem medo às trevas hei descido.<br/>
 
“Somente as cousas recear se deve<br/>
Que a outrem podem ser causa de dano<br/>
Não das mais: a temor a causa é leve.<br/>
 
“De Deus favor criou-me soberano<br/>
Tal, que a vossa miséria não me empece<br/>
Nem deste incêndio assalta o fogo insano.<br/>
 
“Nobre Dama há no céu, que compadece<br/>
O mal, a que te envio; e tanto implora,<br/>
Que lá decreto austero se enternece.<br/>
 
— “Volvendo-se a Luzia, assim a exora:<br/>
“O teu servo fiel tanto periga,<br/>
Que ao teu amparo o recomendo agora”. —<br/>
 
“Luzia, sempre do que é mau imiga<br/>
Ergue-se e ao lugar foi, em que eu sentada<br/>
Ao lado estava de Raquel antiga.<br/>
 
“De Deus vero louvor!” — diz-me apressada —<br/>
“Por que não socorrer quem te amou tanto,<br/>
Que só por ti deixou do vulgo a estrada?<br/>
 
“Não lhe ouves, Beatriz, o amargo pranto?<br/>
Não vês que junto ao rio é combatido,<br/>
Que ao mar não corre, por mortal espanto?” —<br/>
 
“Os danos, tão veloz, não tem fugido<br/>
Ninguém, nem procurado o que deseja,<br/>
Como eu, em tendo vozes tais ouvido;<br/>
 
“O trono meu deixei, por que te veja,<br/>
Fiada em teus discursos eloqüentes,<br/>
Honra tua e de quem te ouvindo esteja”. —<br/>
 
“Assim falava e os olhos fulgentes<br/>
Com lágrimas a mim ela volvia,<br/>
Para apressar-me a vir assaz potentes.<br/>
 
“A ti vim, pois, como ela requeria;<br/>
Da fera te livrei, que da colina<br/>
Tão perto já, teus passos impedia.<br/>
 
“Que fazes, pois? Por que, por que domina<br/>
Tanta fraqueza o peito espavorido?<br/>
Por que ao valor tua alma não se inclina,<br/>
 
“Quando és pelas três santas protegido,<br/>
Que na corte do céu por ti se esmeram,<br/>
E gozar tanto bem lhe é prometido?” —<br/>
 
Quais flores, que, fechadas, se abateram<br/>
Da noite ao frio, e, quando o sol aquece,<br/>
Erguem-se abertas na hástea, tais como eram,<br/>
 
Tal meu valor renova e fortalece.<br/>
Tanto ardimento o coração me aviva,<br/>
Que exclamei, como quem jamais temesse:<br/>
 
“Ó Dama em socorrer-me compassiva!<br/>
E tu, que a voz lhe ouvindo, obedeceste,<br/>
Cortês ao rogo e com vontade ativa,<br/>
 
“Por teu dizer no peito me acendeste<br/>
Desejo tal de vir, que sou tornado<br/>
Ao propósito, a que antes me trouxeste.<br/>
 
“Vai, pois nosso querer ’stá combinado.<br/>
Serás meu guia, meu senhor, meu mestre!”<br/>
Disse-lhe assim. Moveu-se ele; ao seu lado<br/>
 
Pelo caminho entrei alto e silvestre.<br/>
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