A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Purgatório/I: diferenças entre revisões
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<[[A Divina Comédia]]
''Saindo do Inferno, Dante respira novamente o ar puro e vê fulgentíssimas estrelas. Encontra-se na ilha do Purgatório.O guardião da ilha, Catão Uticense, pergunta aos dois Poetas qual é o motivo da sua jornada. Ele os instrui, depois, relativamente ao que devem fazer, antes de iniciar a subida do monte.''
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| width="55%"|<b>Tradução brasileira</b>
| width="45%"|<b>Original italiano</b>
|-
| valign="top"|<ul>
Do engenho meu a barca as velas solta<br/>
Para correr agora em mar jucundo,<br/>
E ao despiedoso pego a popa volta.<br/>
Aquele reino cantarei segundo,<br/>
Onde pela alma a dita é merecida<br/>
De ir ao céu livre do pecado imundo.<br/>
Ressurja ora a poesia amortecida,<br/>
Ó Santas Musas, a quem sou votado;<br/>
Unir ao canto meu seja servida<br/>
Calíope o som alto e sublimado,<br/>
Que às Pegas esperar não permitira<br/>
Lhes fosse o atrevimento perdoado.<br/>
Suave cor de oriental safira,<br/>
Que se esparzia no sereno aspeito<br/>
Do ar até onde o céu primeiro gira,<br/>
Recreia a vista; e eu ledo me deleito<br/>
Em surdindo da estância tenebrosa,<br/>
Que tanto os olhos contristara e o peito.<br/>
A bela estrela, a amor auspiciosa<br/>
Sorrir alegre faz todo o Oriente,<br/>
Vela os Peixes, que a seguem, luminosa.<br/>
Ao outro pólo endereçando a mente,<br/>
Volto-me à destra, e os astros quatro vejo,<br/>
Que vira só a primitiva gente.<br/>
Folgar o céu parece ao seu lampejo.<br/>
Do Norte, ó região, viúva hás sido,<br/>
De os contemplar te não foi dado ensejo.<br/>
Depois de os remirar, já dirigido<br/>
Olhos havia para o pólo oposto,<br/>
Donde a Carroça havia-se partido,<br/>
Eis noto um velho, perto de mim posto,<br/>
Que reverência tanta merecia,<br/>
Que mais do pai não deve o filho ao rosto.<br/>
Nas longas barbas nívea cor saía,<br/>
Sendo na coma sua semelhante,<br/>
Que em dupla trança ao peito lhe caía.<br/>
A luz dos santos astros rutilante<br/>
De fulgor tanto lhe aclarava o gesto,<br/>
Que o vi, como se o sol lhe fosse adiante.<br/>
— “Quem sois que em contra o rio escuro e mesto<br/>
Do eterno cárcere heis fugido os laços?” —<br/>
Movendo as nobres plumas, disse presto.<br/>
“Quem vos guiou alumiando os passos<br/>
Para a profunda noite haver deixado,<br/>
Que enluta sempre os infernais espaços?<br/>
“As leis do abismo acaso se hão quebrado?<br/>
O céu dá, seus decretos revogando,<br/>
Que dos maus seja o meu domínio entrado?” —<br/>
Travou de mim Virgílio, me exortando<br/>
Por voz, aceno e mãos: como queria<br/>
Os joelhos curvei, olhos baixando.<br/>
— “De motu meu não vim” — lhe respondia —<br/>
De Dama aos rogos, que do céu descera<br/>
Socorro este homem, sirvo-lhe de guia.<br/>
Pois que é desejo teu que a nossa vera<br/>
Condição definida mais te seja,<br/>
Prestar me cumpro explicação sincera.<br/>
“Aura da vida este home’inda bafeja,<br/>
Mas tanto, de imprudente, se arriscara,<br/>
Que é maravilha vivo ainda esteja.<br/>
“Disse como a salvá-lo me apressara:<br/>
Por onde os passos dirigir pudesse<br/>
Essa vereda só se deparara.<br/>
“Mostrei-lhe a gente, que por má padece;<br/>
Mostrar-lhe intento os que ora estão purgando<br/>
Pecados no lugar, que te obedece.<br/>
“Longo seria como o vou guiando<br/>
Dizer-te: é força do alto a que me impele,<br/>
Para te ver e ouvir o encaminhando,<br/>
Digna-te, pois, bení’no ser com ele:<br/>
A liberdade anela, que é tão cara:<br/>
Sabe-o bem quem por ela a vida expele.<br/>
“Por ela a morte não te há sido amara<br/>
Em Útica, onde a veste foi deixada,<br/>
Que em Juízo há de ser de luz tão clara.<br/>
“Por nós eterna lei não é violada:<br/>
Ele inda vive; Minos não me empece;<br/>
No círc’lo estou, onde acha-se encerrada<br/>
“Tua Márcia, que em casto olhar parece<br/>
Rogar-te ainda que por tua a tenhas:<br/>
Lembrando-a em favor nosso te enternece.<br/>
“Ir deixa aos reinos teus, não nos retenhas;<br/>
Hei de a Márcia dizê-lo agradecido,<br/>
Se lá de ti falar-se não desdenhas.” —<br/>
— “Márcia, a meus olhos tão jucunda há sido<br/>
Que — tornou-lhe Catão — eu de bom grado<br/>
No mundo quanto quis lhe hei concedido.<br/>
“Estando além do rio detestado,<br/>
Mover-me ora não pode: este preceito<br/>
Me foi, deixando o Limbo, decretado.<br/>
“Se por dama celeste hás sido eleito,<br/>
Como disseste, é vã lisonja agora;<br/>
O que requeres em seu nome aceito.<br/>
“Vai, pois: cingindo este homem sem demora<br/>
De liso junco, lava-lhe o semblante;<br/>
Toda a impureza seja posta fora.<br/>
“Cumpre que, quando ele estiver perante<br/>
O anjo, que do céu vier primeiro,<br/>
Névoa nenhuma os olhos lhe quebrante.<br/>
“Lá onde baixa o ponto derradeiro<br/>
Do mar batido, esta ilha tem viçoso<br/>
Juncal que alastra todo o seu nateiro.<br/>
“Não pode vegetal rijo ou frondoso<br/>
Ter vida ali; porque não dobraria<br/>
Ao embate das ondas caprichoso.<br/>
“Aqui tornar inútil vos seria.<br/>
Vereis ao sol, que surge, o melhor passo<br/>
Para subir do monte à penedia.” —<br/>
Sumiu-se. Ergui-me, então, sem mais espaço,<br/>
E em silêncio; olhos fitos no semblante<br/>
De Virgílio, amparei-me com seu braço.<br/>
— “Comigo, ó filho” — diz-me — “segue avante.<br/>
Atrás voltemos; pois daqui se inclina<br/>
O plano para o mar, que jaz distante.” —<br/>
Fugia ante a alva a sombra matutina;<br/>
Já nos ficava aos olhos descoberta,<br/>
Posto remota, a oscilação marina.<br/>
Pela planície andávamos deserta,<br/>
Como quem trilha a estrada, que perdera,<br/>
E teme não achar vereda certa.<br/>
Chegando à parte, onde não pudera<br/>
Do rocio triunfar o sol nascente,<br/>
Porque à sombra o frescor pouco modera,<br/>
Sobre a relva meu Mestre brandamente<br/>
As mãos ambas abriu: o movimento<br/>
Lhe noto e, o compreendo, diligente,<br/>
As lacrimosas faces lhe apresento.<br/>
Virgílio as cores restaurou-me ao gesto,<br/>
Que desbotara o inferno nevoento.<br/>
Vimos à erma praia a passo lesto:<br/>
Nunca sobre águas suas navegara<br/>
Homem que o mundo torne a ver molesto.<br/>
Cingido fui, como Catão mandara.<br/>
Portento! A humilde planta renascida,<br/>
Qual antes vi no solo, onde a arrancara,<br/>
Sem diferença, de súbito crescida.<br/>
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