A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Inferno/IV: diferenças entre revisões
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Por hórrido estampido, estremecendo<br/>
Ergui-me, e, os olhos quietos já volvendo,<br/>
Perscruto por saber onde me achava,<br/>
A verdade é que então na borda estava<br/>
Do vale desse abismo doloroso,<br/>
Tão escuro, profundo e nebuloso<br/>
Era, que a vista lhe inquirindo o fundo,<br/>
“Eia! Baixemos, pois, da treva ao mundo!” —<br/>
O Poeta então disse-me enfiando —<br/>
Tornei-lhe, a palidez sua notando:<br/>
“Como hei-de ir, se és de espanto dominado,<br/>
“Dos que lá são o angustioso estado<br/>
Causa a que vês no rosto meu impressa,<br/>
“Vamos: longa a jornada exige pressa”.<br/>
Entrou, e eu logo, o círculo primeiro<br/>
Escutei: não mais pranto lastimeiro<br/>
Ouvi; suspiros só, que murmuravam,<br/>
Pesares sem martírio os motivavam<br/>
De varões e de infantes, de mulheres<br/>
“Conhecer” — meu bom Mestre diz — “não queres<br/>
Quais são os que assim vês ora sofrendo?<br/>
“Que não pecaram: boas obras tendo<br/>
Acham-se aqui; faltou-lhes o batismo,<br/>
“Na vida antecedendo o Cristianismo,<br/>
Devido culto a Deus nunca prestaram:<br/>
“Por tal defeito — os mais nos não mancharam —<br/>
Perdemo-nos: a pena é desesp’rança,<br/>
Ouvi-lo, em dor o coração me lança,<br/>
Pois muitos conheci de alta valia,<br/>
“Ó Mestre! Ó meu Senhor! diz-me — inquiria,<br/>
Para ter da certeza o firme esteio<br/>
“Por seu merecimento ou pelo alheio<br/>
Daqui alguém ao céu já tem subido?”<br/>
E falou-me: “Des’pouco aqui trazido,<br/>
Descer súbito vi forte guerreiro;<br/>
“Almas levou — do nosso pai primeiro,<br/>
Abel, Noé, Moisés, que legislara,<br/>
“Davi, que sobre o povo hebreu reinara,<br/>
Israel com seu pai e a prole basta,<br/>
“Para a glória outros muitos mais afasta<br/>
Do Limbo; e sabe tu que antes não fora<br/>
Andávamos, enquanto isto memora,<br/>
Sem parar, pela selva penetrando,<br/>
E da entrada não longe ainda estando,<br/>
Eis um clarão brilhante divisamos<br/>
Dali distantes ainda nos achamos<br/>
Não tanto, que eu não discernisse em parte<br/>
“Ó tu, que és honra da ciência e da arte,<br/>
Quem são” — disse — “os que, aos outros preferidos,<br/>
Falou Virgílio: “— Assim são distinguidos<br/>
Do céu, que atende à fama alta e preclara,<br/>
Eis voz escuto sonorosa e clara:<br/>
“Honrai todos o altíssimo poeta!<br/>
Quatro sombras notei, quando aquieta<br/>
O rumor, que a nós vinham: nos semblantes<br/>
E disse o Mestre, após alguns instantes:<br/>
“Aquele vê, que, qual monarca ufano,<br/>
É Homero, o poeta soberano;<br/>
O satírico Horácio é o outro, e ao lado<br/>
Como lhes cabe o nome assinalado<br/>
Que soou nessa voz há pouco ouvida,<br/>
A bela escola assim vi reunida<br/>
Do Mestre egrégio do sublime canto,<br/>
Discursado entre si tendo algum tanto,<br/>
A mim volveram gracioso o gesto:<br/>
Mais foi-me alto conceito manifesto,<br/>
Quando acolher-me ao grêmio seu quiseram,<br/>
Té o clarão comigo se moveram,<br/>
Prática havendo, que omitir é belo,<br/>
Chegamos junto a um fúlgido castelo<br/>
Sete vezes de muro alto cercado:<br/>
Passei-o a pé enxuto; acompanhado<br/>
Entrei por sete portas, caminhando<br/>
Graves, pausados olhos meneando<br/>
Stavam sombras de aspecto majestoso,<br/>
A um lado, sobre viso luminoso<br/>
Subimo-nos: de lá se divisava<br/>
No verde esmalte o Mestre me indicava<br/>
Egrégias sombras: inda me extasia<br/>
Eletra vi de heróis na companhia,<br/>
Enéias com Heitor e guarnecido<br/>
Pentesiléia vi e o rosto ardido<br/>
De Camila, e sentado o rei Latino<br/>
Notei Márcia, Lucrécia e o que Tarquino<br/>
Lançou, Cornélia e Júlia; retirado<br/>
Alçando os olhos, de respeito entrado,<br/>
O Mestre vejo dos que mais se acimam<br/>
Todos com honra e acatamento o estimam.<br/>
Aqui Platão e Sócrates estavam,<br/>
Demócrito, o atomista, acompanhavam<br/>
Tales, Zeno, Heráclito e Anaxagora.<br/>
Dióscoris, o que a natura outrora
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