A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Inferno/VIII: diferenças entre revisões

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Linha 76:
Fama de si deixando poluída!” —
 
— “Mestre, grato me fora sobremodo<br>
Vê-lo no ceno mergulhar profundo,<br>
54 Antes de eu ter daqui saído em todo”. —
 
— “Antes que a margem — respondeu jocundo —<br>
Avistes, gozarás dessa alegria,<br>
57 Verás penar o espírito iracundo”. —
 
E logo ao pecador, como à porfia,<br>
Tanta aflição causou a imunda gente,<br>
60 Que ainda louvo a Deus, que o permitia.
 
Gritavam todos: — “A Filipe Argenti!” —<br>
E a florentina sombra, se volvendo<br>
63 Contra si, se mordia insanamente:
 
Lá o deixei, não mais nele entendendo.<br>
Súbito, ouvindo um lamentar amaro,<br>
66 Os olhos fitos para além e atendo.
 
E o bom Mestre me disse: — “Ó filho caro,<br>
Stá perto Dite, de Satã cidade,<br>
69 Que há povo infindo para o bem avaro”. —
 
— “Lá do vale no fundo em quantidade<br>
Mesquitas” — respondi — “rubras discerno<br>
72 De flama, creio, pela intensidade”. —
 
E o Mestre a mim: — “As faz o fogo eterno<br>
Vermelhas, que lá dentro está lavrando<br>
75 Como tens visto neste baixo inferno”. —
 
Já nos profundos fossos penetrando<br>
De que o triste alcáçar é circundado,<br>
78 Me estavam ferro os muros semelhando.
 
Mas, após grande giro, hemos tocado<br>
Na parte, onde o barqueiro com voz forte<br>
81 — “Saí” — gritou — “à entrada haveis chegado!”
 
À porta vi daqueles grã coorte<br>
Que o céu choveu; bramiam de despeito:<br>
84 “Este quem é que, antecipando a morte,
 
“Tem dos mortos no reino sido aceito?” —<br>
Meu sábio Mestre então lhes fez aceno<br>
87 Para, em secreto, expor-lhe seu conceito.
 
Contendo um pouco às sanhas o veneno<br>
Disseram: — “Vem tu só; vá-se o imprudente,<br>
90 Que neste reino entrou, de audácia pleno;
 
“Só deixe a empresa em que embarcou demente;<br>
Tente-o, se sabe; ficarás no entanto;<br>
93 Pois és seu guia à região nocente”. —
 
Imagina, ó leitor, qual fosse o espanto<br>
Meu escutando a horrífica ameaça:<br>
96 Não deixar a mansão temi do pranto.
 
“Ó Mestre meu, que tanta vez a graça<br>
Fizeste de alentar-me o peito aflito<br>
99 No perigo iminente e atroz desgraça,
 
“Não me deixes” — disse eu — “neste conflito!<br>
E, se avante passar é defendido,<br>
102 Ambos voltemos do lugar maldito!” —
 
Quem tão longe me havia conduzido<br>
— “Não temas” — diz — “não pode ser vedado<br>
105 O passo, que por Deus foi permitido.
 
“Aqui me espera e o ânimo prostrado<br>
Fortalece e alimenta de esperança:<br>
108 Não hás de ser no inferno abandonado”. —
 
O doce pai se afasta e à porta avança.<br>
Ficando assim na dúvida e incerteza,<br>
111 No pró, no contra a mente se abalança.
 
Não pude o que propôs ouvir; na empresa<br>
Curta há sido a detença: de repente<br>
114 Esquivam-se os precitos com presteza.
 
De roldão cerra a porta a imiga gente<br>
Do Mestre à face, que, ficando fora,<br>
117 A mim se restitui mui lentamente.
 
De olhos baixos, faltava-lhe a de outrora<br>
Afouteza, e dizia suspirando:<br>
120 “Quem me tolhe da dor a estância agora?” —
 
E logo a minha alteração notando<br>
“Não te aflijas; que os óbices te digo<br>
123 Hei de vencer que a entrada estão vedando.
 
“Não é nova esta audácia do inimigo;<br>
Em mais patente porta há já mostrado,<br>
126 Que sem ferrolho está: viste-a comigo,
 
“E a lúgubre inscrição lhe hás contemplado.<br>
Deixou atrás e desce a penedia,<br>
Pelos círc’los passando não guiado,
 
130 Abrir quem pode esta cidade ímpia”. —
 
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