Viagens na Minha Terra (1846)/XLIX: diferenças entre revisões
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(Sem diferenças)
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Revisão das 15h08min de 12 de julho de 2009
De como Carlos se fez barão.--Fim da historia de Joanninha.--Georgina abbadessa.--Juizo de Fr. Diniz sôbre a questão dos frades e dos barões.--Que não póde tornar a ser o que foi, mas muito menos póde ser o que é. O que hade ser, Deus o sabe e proverá.--Vai o A. dormir ao Cartaxo.--Sonho que ahi tem.--Volta a Lisboa.--Caminhos de ferro e de papel.--Conclusão da viagem e d'este livro.
Acabei de ler a carta de Carlos, intreguei-a a Fr. Diniz em silencio. Elle tornou-me:
--'Leu?'
--'Li.'
--'Que mais quer saber? Sinto que lhe posso dizer tudo: não o conheço, mas...'
--'Mas deve conhecer-me por um homem que se interessa vivamente...'
--'Em quê? nas eleições, na agiotagem, nos bens nacionaes?'
--'Não senhor. Fui camarada de Carlos, não o vejo ha muitos annos e...'
--'Nem o conhecia se o visse agora: ingordou, inriqueceu, e é barão...'
--'Barão!'
--'É barão, e vai ser deputado qualquer dia.'
--'Que transformação! Como se fez isso, sancto Deus! E Joanninha e Georgina?'
--'Joanninha inlouqueceu e morreu. Georgina é abbadessa de um convento em Inglaterra.'
--'Abbadessa?'
--'Sim. Converteu-se á communhão catholica; era ricca, fundou um convento em ----shire e lá está servindo a Deus.'
--'E ésta pobre senhora, a avó de Joanninha?'
--'Ahi está como a ve, morta de alma para tudo. Não ve, não ouve, não falla, e não conhece ninguem. Joanninha veio morrer aqui n'esta fatal casa do valle, eu estava ausente, expirou nos braços d'ella e de Georgina. Desde esse instante a avó cahiu n'aquelle estado. Está morta, e não espero aqui senão a dissolução do corpo para o interrar, se eu não for primeiro, e Deus queira que não! quem hade tomar conta d'ella, ter charidade com a pobre da demente? Mas depois... oh! depois... espero no Senhor que se compadeça emfim de tanto soffrer e me leve para si.'
--'Mas Carlos?'
--'Carlos é barão: não lh'o disse ja?'
--'Mas por ser barão?..'
--'Não sabe o que é ser barão?'
--'Oh se sei! Tam poucos temos nós?'
--'Pois barão é o succedaneo dos...'
--'Dos frades... Ruim substituição!'
--'Vi um dos taes papeis liberaes em que isso vinha: e é a unica coisa que leio d'essas ha muitos annos. Mas fizeram-m'o ler.'
--'E que lhe pareceu?'
--'Bem escripto e com verdade. Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberaes não tiveram menos.'
--'Errámos ambos.'
--'Errámos e sem remedio. A sociedade ja não é o que foi, não póde tornar a ser o que era;--mas muito menos ainda póde ser o que é. O que hade ser, não sei. Deus proverá.'
Ditto isto, o frade benzeu-se, pegou no seu breviario e poz-se a rezar. A velha dobava sempre, sempre. Eu levantei-me, contemplei-os ambos alguns segundos. Nenhum me deu mais attenção nem pareceu conscio da minha estada alli.
Sentia-me como na presença da morte e atterrei-me.
Fiz um esfôrço sôbre mim, fui deliberadamente ao meu cavallo, montei, piquei desesperado d'esporas, e não parei senão no Cartaxo.
Incontrei alli os meus companheiros; era tarde, fomos ficar fóra da villa á hospedeira casa do Sr. L. S.
Rimos e folgámos até alta noite: o resto dormimos a somno sôlto.
Mas eu sonhei com o frade, com a velha--e com uma enorme constellação de barões que luzia n'um ceu de papel, d'onde choviam, como farrapos de neve, n'uma noite pollar, notas azues, verdes, brancas, amarellas, de todas as côres e matizes possiveis. Eram milhões e milhões e milhões...
Nunca vi tanto milhão, nem ouvi fallar de tanta riqueza senão nas mil e uma noites.
Acordei no outro dia e não vi nada... so uns pobres que pediam esmola á porta.
Metti a mão na algibeira, e não achei senão notas... papeis!
Parti para Lisboa cheio de agoiros, de inguiços e de tristes presentimentos.
O vapor vinha quasi vazio, mas nem por isso andou mais depressa.
Eram boas cinco horas da tarde quando desimbarcámos no Terreiro-do-Paço.
Assim terminou a nossa viagem a Santarem: e assim termina este livro.
Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porêm fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra.
Se assim o pensares, leitor benevolo, quem sabe? póde ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e va perigrinando por esse Portugal fóra, em busca de historias para te contar.
Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar.
Escusada é a jura porêm.
Se as estradas fossem de papel, fa-las-iam, não digo que não.
Mas de metal!
Que tenha o govêrno juizo, que as faça de pedra, que póde, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra.