A Ilustre Casa de Ramires/I: diferenças entre revisões

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Gonçalo Mendes Ramires (como confessava esse severo genealogista, o morgado de Cidadelhe) era certamente o mais genuíno e antigo Fidalgo de Portugal. Raras famílias, mesmo coevas, poderiam traçar a sua ascendência, por linha varonil e sempre pura, até aos vagos Senhores que entre Douro e Minho mantinham castelo e terra murada quando os barões francos desceram, com pendão e caldeira, na hoste do Borguinhão. E os Ramires entroncavam limpidamente a sua casa, por linha pura e sempre varonil, no filho do Conde Nuno Mendes, aquele agigantado Ordonho Mendes, senhor de Treixedo e de Santa Irenéia, que casou em 967 com Dona Elduara, Condessa de Carrion, filha de Bermudo, o Gotoso, Rei de Leão.
 
Mais antigo na Espanha que o Condado Portucalense, rijamente, como ele, crescera e se afamara o Solar de Santa Irenéia - resistente como ele às fortunas e aos tempos. E depois, em cada lance forte da História de Portugal. sempre um Mendes Ramires avultou grandiosamente pelo heroísmo, pela lealdade, pelos nobres espíritos. Um dos mais esforçados da linhagem, Lourenço, por alcunha o Cortador, colaço dê Afonso Henriques (com quem na mesma noite, para receber a pranchada de Cavaleiro. velara as armas na Sé de Zamora), aparece logo na batalha de Ourique, onde também avista Jesus Cristo sobre finas nuvens de ouro, pregado numa cruz de dez côvados. No cerco de Tavira, Martim Ramires, freire de Santiago, arromba a golpes de acha um postigo da Couraça, rompe por entre as cimitarras que lhe decepam as duas mãos. e surde na quadrela da torre albarrã, com os dois pulsos a esguichar sangue, bradando alegremente ao Mestre: - "D. Payo Peres, Tavira é nossa! Real, Real por Portugal!" O velho Egas Ramires, fechado na sua Torre, com a levadiça erguida, as barbacãs eriçadas de frecheiros, nega acolhida a El-Rei D. Fernando e Leonor Teles que corriam o Norte em folgares e caçadas - para que a presença da adúltera não macule a pureza extrema do seu solar! Em Aljubarrota, Diogo Ramires o Trovador desbarata um troço de besteiros, mata o adiantado-mor de Galiza, e por ele, não por outro, cai derribado pendão real de Castela, em que ao fim da lide seu irmão de armas, D. [[w:Antão Vasques de Almada|Antão de Almada]], se embrulhou para o levar, dançando e cantando, ao Mestre de Avis. Sob os muros de Arzila combatem magnificamente dois Ramires, o idoso Soeiro e seu neto Fernão, e diante do cadáver do velho, trespassado por quatro virotes, estirado no pátio da Alcáçova ao lado do corpo do Conde de Marialva - Afonso V arma juntamente Cavaleiros o Príncipe seu filho e Fernão Ramires, murmurando entre lágrimas: "Deus vos queira tão bons como esses que aí jazem... "Mas eis que Portugal se faz aos mares! E raras são então as armadas e os combates de Oriente em que se não esforce um Ramires - ficando na lenda trágico-marítima aquele nobre capitão do golfo Pérsico, Baltasar Ramires, que, no naufrágio da Santa Bárbara, reveste a sua pesada armadura, e no castelo de proa, hirto, se afunda em silêncio com a nau que se afunda, encostado à sua grande espada. Em Alcácer-Quibir, onde dois Ramires sempre ao lado de El-Rei encontram morte soberba, o mais novo, Paulo Ramires, pajem do Guião, nem leso nem ferido, mas não querendo mais vida pois que El-Rei não vivia, colhe um ginete solto, apanha uma acha de armas, e gritando; - "Vai-te, alma, que já tardas, servir a de teu senhor!" - entra na chusma mourisca e para sempre desaparece. Sob os Filipes, os Ramires, amuados, bebem e caçam nas suas terras. Reaparecendo com os Braganças, um Ramires, Vicente, governador das Armas de Entre-Douro e Minho por D. João IV, mete a Castela, destroça os Espanhóis do Conde de Venavente, e toma Fuente Guinal, a cujo furioso saque preside da varanda de um convento de Franciscanos, em mangas de camisa, comendo talhadas de melancia. Já, porém, como a nação, degenera a nobre raça... Álvaro Ramires, valido de D. Pedro II, brigão façanhudo, atordoa Lisboa com arruaças, furta a mulher de um Vedor da Fazenda que mandara matar a pauladas por pretos, incendeia em Sevilha depois de perder cem dobrões uma casa de tavolagem, e termina por comandar uma urca de piratas na frota de Murad o Maltrapilho. No reinado do Sr. D. João V Nuno Ramires brilha na Corte, ferra as suas mulas de prata, e arruina a casa celebrando suntuosas festas de Igreja, em que canta no coro vestido com o hábito de Irmão Terceiro de S. Francisco. Outro Ramires, Cristóvão, presidente da Mesa de Consciência e Ordem, alcovita os amores de El-Rei D. José I com a filha do Prior de Sacavém. Pedro Ramires, Provedor e Feitor-Mor das Alfândegas, ganha fama em todo o Reino pela sua obesidade, a sua chalaça, as suas proezas de glutão no Paço da Bemposta com o Arcebispo de Tessalônica. Inácio Ramires acompanha D. João VI ao Brasil como Reposteiro-Mor, negocia em negros, volta com um baú carregado de peças de ouro que lhe rouba um Administrador, antigo frade capuchinho, e morre no seu solar da cornada de um boi. O avô de Gonçalo, Damião, doutor liberal dado às Musas, desembarca com D. Pedro no Mindelo, compõe as empoladas proclamações do Partido, funda um jornal, o Anti-Frade, e depois das Guerras Civis arrasta uma existência reumática em Santa Irenéia, embrulhado no seu capotão de briche, traduzindo para vernáculo, com um léxicon e um pacote de simonte, as obras de Valerius Flaccus. O pai de Gonçalo, ora Regenerador, ora Histórico, vivia em Lisboa no Hotel Universal, gastando as solas pelas escadarias do Banco Hipotecário e pelo lajedo da Arcada, até que um Ministro do Reino, cuja concubina, corista de S. Carlos, ele fascinara, o nomeou (para o afastar da Capital) Governador Civil de Oliveira. Gonçalo, esse, era bacharel formado com um R no terceiro ano.
 
E nesse ano justamente se estreou nas Letras Gonçalo Mendes Ramires. Um seu companheiro de casa, José Lúcio Castanheiro, algarvio muito magro, muito macilento, de enormes óculos azuis, a quem Simão Craveiro chamava o "Castanheiro Patriotinheiro", fundara um Semanário, a Pátria - "com o alevantado intento (afirmava sonoramente o Prospecto) de despertar, não só na mocidade Acadêmica. mas em todo o país, do cabo Sileiro ao cabo de Santa Maria, o amor tão arrefecido das belezas, das grandezas e das glórias de Portugal!" Devorado por essa Idéia. "a sua idéia", sentindo nela uma carreira, quase uma missão, Castanheiro incessantemente, com ardor teimoso de Apóstolo, clamava pelos botequins da Sofia, pelos claustros da Universidade, pelos quartos dos amigos entre a fumaça dos cigarros - "a necessidade, caramba, de reatar a tradição! de desatulhar, caramba, Portugal da aluvião do estrangeirismo!" - Como o Semanário apareceu regularmente durante três domingos. e publicou realmente estudos recheados de grifos e citações sobre as Capelas das Batalha, a Tomada de Ormuz, a Embaixada de Tristão da Cunha, começou logo a ser considerado uma aurora. ainda pálida mas segura, de Renascimento Nacional. E alguns bons espíritos da Academia, sobretudo os companheiros de casa do Castanheiro, os três que se ocupavam das coisas do saber e da inteligência (porque dos três restantes um era homem de cacete e forças, o outro guitarrista, e o outro "premiado"), passaram. aquecidos por aquela chama patriótica, a esquadrinhar na Biblioteca, nos grossos tomos nunca dantes visitados de Fernão Lopes, de Rui de Pina, de Azurara, proezas e lendas - "só portuguesas. Só nossas; (como suplicava o Castanheiro), que refizessem à nação abatida uma consciência da sua heroicidade!" Assim crescia o "Cenáculo Patriótico da casa das Severinas. E foi então que Gonçalo Mendes Ramires, moço muito afável, esbelto e loiro, duma brancura sã de porcelana. com uns finos e risonhos olhos que facilmente se enterneciam, sempre elegante e apurado na batina e no verniz dos sapatos - apresentou ao Castanheiro, num domingo depois do almoço, onze tiras de papel intituladas D. Guiomar. Nelas se contava a velhíssima história da castelã, que, enquanto longe nas guerras do Ultramar o castelão barbudo e cingido de ferro atira a acha de armas às portas de Jerusalém, recebe ela na sua câmara, com os braços nus, por noite de maio e de lua, o pajem de anelados cabelos... Depois ruge o inverno, o castelão volta, mais barbudo, com um bordão de romeiro. Pelo vílico do Castelo, homem espreitador e de amargos sorrisos, conhece a traição, a mácula no seu nome tão puro, honrado em todas as Espanhas! E ai do pajem! ai da dama! Logo os sinos tangem a finados. Já no patim da Alcáçova o verdugo, de capuz escarlate, espera, encostado ao machado, entre dois cepos cobertos de panos de dó... E no final choroso da D. Guiomar; como em todas essas histórias do Romanceiro de Amor, também brotavam rente às duas sepulturas, escavadas no ermo, duas roseiras brancas a que o vento enlaçava os aromas e as rosas. De sorte que (como notou José Lúcio Castanheiro, coçando pensativarnente o queixo) não ressaltava nesta D. Guiomar nada que fosse "só português, só nosso, abrolhando do solo e da raça!" Mas esses amores lamentosos passavam num solar de Riba-Coa: os nomes dos Cavaleiros, Remarigues, Ordonho, Froilás, Gutierres tinham um delicioso sabor godo: em cada tira ressoavam bravamente os genuínos: "Bofé... Mentes pela gorja!... Pajem, o meu murzelo! e através de toda esta vernaculidade circulava uma suficiente turba de cavalariços com saios alvadios, beguinos sumidos na sombra das cogulas, ovençais sopesando fartas bolsas de couro, uchões espostejando nédios lombos de cerdo... A Novela portanto marcava um salutar retrocesso ao sentimento nacional.