O Crime do Padre Amaro/III: diferenças entre revisões

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— Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro, que se conservava afastado, com o guarda-sol na mão.
 
— Minha sogra, que era toda devota e uma completa senhora — já não há disso! — fê-lo padre. Houve até um legado, creio eu... Enfim, aqui o temos [[wikt:pároco|pároco]]... Onde, Sr. padre Amaro?
 
— Feirão, excelentíssimo senhor.
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— Feirão?... disse o ministro estranhando o nome.
 
— Na serra[[w:Serra da Gralheira|Serra da Gralheira]], informou logo o outro sujeito, ao lado.
 
Era um homem magro, entalado numa sobrecasaca azul, muito branco de pele, com soberbas [[wikt:suíças|suíças]] dum negro de tinta, e um admirável cabelo lustroso de pomada, apartado até ao cachaço numa risca perfeita.
 
— Enfim, resumiu o conde, um horror! Na serra, uma [[w:freguesia|freguesia]] pobre, sem distrações, com um clima horrível...
 
— Eu meti já requerimento, excelentíssimo senhor, arriscou Amaro timidamente.
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— Perfeitamente, replicou o conde; mas serviços religiosos, profissionais, serviços à Igreja, não serviços aos governos.
 
O homem das soberbas suíças negras teve um gesto de [[wikt:objeção|objeção]].
 
— Não acha? perguntou-lhe o conde.
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— Pois sim. Mas...
 
— Olhe vossa excelência, continuou ele, [[wikt:sôfrego|sôfrego]] da palavra. Olhe vossa excelência em [[w:Tomar|Tomar]]. Por que perdemos? Pela atitude dos párocos. Nada mais.
 
O conde acudiu:
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— Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro, cuspindo películas mascadas de charuto.
 
— Mas descer às intrigas, continuou o conde devagar, aos ''[[wikt:imbróglio|imbróglios]]''... Perdoe-me meu caro amigo, mas não é dum cristão.
 
— Pois sou-o, senhor conde, exclamou o homem das suíças soberbas. Sou-o a valer! Mas também sou liberal. E entendo que no governo representativo... Sim, digo eu... com as garantias mais sólidas...
 
— Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso faz? desacreditaDesacredita o clero, e desacredita a política.
 
— Mas são ou não as maiorias um princípio ''sagrado''? gritavaGritava rubro o das suíças, acentuando o adjetivo.
 
— São um principio ''respeitável''.
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— Minha mulher há-de querer vê-lo, disse-lhe então o conde. E dirigindo-se a um reposteiro que levantou: — Entre. É o Sr. padre Amaro, Joana!
 
Era uma sala forrada de papel branco [[wikt:acetinado|acetinado]], com móveis estofados de [[wikt:casimira|casimira]] clara. Nos vãos das janelas, entre as cortinas de pregas largas duma fazenda adamascada cor de leite, apanhadas quase junto do chão por faixas de seda, arbustos delgados, sem flor, erguiam em vasos brancos a sua folhagem fina. Uma meia-luz fresca dava a todas aquelas [[wikt:alvura|alvuras]] um tom delicado de nuvem. Nas costas duma cadeira uma arara empoleirada, firme num só pé negro, coçava vagarosamente, com contrações [[wikt:adunco|aduncas]], a sua cabeça verde. Amaro, embaraçado, curvou-se logo para um canto do sofá, onde viu os cabelinhos louros e frisados da senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa, e os aros de ouro da sua luneta reluzindo. Um rapaz gordo, de face rechonchuda, sentado diante dela numa cadeira baixa, com os cotovelos sobre os joelhos abertos, ocupava— -se em balançar, como um pêndulo, um ''[[wikt:pince-nez|pince-nez]]'' de tartaruga. A condessa tinha no [[wikt:regaço|regaço]] uma cadelinha, e com a sua mão seca e fina cheia de veias, acamava-lhe o pêlo branco como algodão.
 
— Como está, Sr. Amaro? — A cadela rosnou. — Quieta, ''Jóia''. Sabe que já falei no seu negócio? Quieta, ''Jóia''... O ministro está ali.
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— Que tem feito estes dias, Amaro? disse a condessa. Diga-me uma coisa: sua irmã?
 
— Está em [[w:Coimbra|Coimbra]], casou.
 
— Ah! casou! disse a condessa, fazendo girar os seus anéis.
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— O Sr. padre Liset está para fora? perguntou.
 
— Está em [[w:Nantes|Nantes]]. Tinha uma irmã a morrer, disse a condessa. — Está o mesmo sempre: muito amável, muito doce. É a alma mais virtuosa!...
 
— Eu prefiro o padre Félix, disse o rapaz gordo, estirando as pemaspernas.
 
— Não diga isso, primo! Jesus, brada aos Céus! Pois então, o padre Liset, tão respeitável!... E depois outras maneiras de dizer as coisas, com uma bondade... Vê-se que é um coração delicado... '
 
— Pois sim, mas o padre Félix...
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— Já vou, respondeu Teresa, toda absorvida.
 
Amaro afirmou-se então nela. Pareceu-lhe uma rainha, ou uma deusa, com a sua alta e forte estatura, uma linha de ombros e de seio magnífica; os cabelos pretos um pouco ondeados destacavam sobre a palidez do rosto aquilino semelhante ao perfil dominador de [[w:Maria Antonieta|Maria Antonieta]]; o seu vestido preto, de mangas curtas e decote quadrado, quebrava, com as pregas da cauda muito longa toda adornada de rendas negras, o tom monótono das alvuras da sala; o colo, os braços estavam cobertos por uma [[wikt:gaze|gaze]] preta, que fazia aparecer através da brancura da carne; e sentia-se nas suas formas a firmeza dos mármores antigos, com o calor dum sangue rico.
 
Falava baixo, sorrindo, numa língua áspera que Amaro não compreendia, [[wikt:cerrando|cerrando]] e abrindo o seu leque preto — e o rapaz louro, bonito, escutava-a retorcendo a ponta de um bigode fino, com um quadrado de vidro [[wikt:entalado|entalado]] no olho.
 
— Havia muita devoção na sua paróquia, Sr. Amaro? perguntava, no entanto, a condessa.
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— Muita, muito boa gente.
 
— É onde ainda se encontra alguma fé, é nas aldeias, considerou ela com um tom piedoso. — Queixou-se da obrigação de viver na cidade, nos cativeiros do luxo: desejaria habitar sempre na sua [[wikt:quinta|quinta]] de [[w:Carcavelos|Carcavelos]], rezar na pequena capela antiga, conversar com as boas almas da aldeia! — e a sua voz tornara-se terna.
 
O rapaz rechonchudo ria-se:
 
— Ora, prima! dizia, ora, prima! — Não, ele, se o obrigassem a ouvir missa, numa capelinha de aldeia, até lhe parecia que perdia a fé!... Não compreendia, por exemplo, a religião sem música... Era lá possível uma festa religiosa, sem uma boa voz de [[wikt:contralto|contralto]]?
 
— Sempre é mais bonito, disse Amaro.
 
— Está claro que é. É outra coisa! Tem ''[[wikt:cachet|cachet]]''! Ó prima, lembra-se daquele tenor... como se chamava ele? O Vidalti! Lembra-se do Vidalti, na [[w:Quinta-Feira de Endoenças|quinta-feira de Endoenças]], nos Inglesinhos? O ''tantum ergo''?
 
— Eu preferia-o no ''Baile de Máscaras'', disse a condessa.
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A condessa disse-lhe então:
 
— Sabes que o Sr. padre Amaro foi criado comigo em [[w:Benfica (Lisboa)|Benfica]]?
 
Amaro fez-se vermelho: sentia que Teresa pousava sobre ele os seus belos olhos dum negro úmido como o [[wikt:cetim|cetim]] preto coberto de água.
 
— Está na [[wikt:província|província]] agora? perguntouPerguntou ela, bocejando um pouco.
 
— Sim, minha senhora, vim há dias.
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— A gente aprende no seminário, minha senhora.
 
Ela correu a mão, um momento, sobre o teclado de sonoridades profundas, e tocou a frase do ''[[Rigoletow:Rigoletto|Rigoletto]]'', parecida com o ''[[Minuete de Mozart]]'', que diz Francisco I, despedindo-se, no sarau do primeiro ato, da senhora de Crécy, — e cujo ritmo desolado tem a abandonada tristeza de amores que findam, e de braços que se desenlaçam em despedidas supremas.
 
Amaro estava [[wikt:enlevado|enlevado]]. Aquela sala rica com as suas alvuras de nuvem, o piano apaixonado, o colo de Teresa que ele via sob a negra transparência da gaze, as suas tranças de deusa, os tranqüilostranquilos arvoredos de jardim [[wikt:fidalgo|fidalgo]] davam-lhe vagamente a idéia duma existência superior, de romance, passada sobre [[wikt:alcatifas|alcatifas]] preciosas, em ''coupés'' acolchoados, com árias de óperas, melancolias de bom gosto e amores dum gozo raro. Enterrado na elasticidade da ''causeuse'', sentindo a música chorar aristocraticamente, lembrava-lhe a sala de jantar da tia e o seu cheiro de refogado: e era como o mendigo que prova um creme fino, e, assustado, demora o seu prazer — pensando que vai voltar à dureza das côdeas secas e à poeira dos caminhos.
 
No entanto Teresa, mudando bruscamente de melodia, cantou a antiga ária inglesa de [[w:Joseph Haydn|Haydn]], que diz tão finamente as melancolias da separação:
 
<poem>
''The village seems dead and asleep''
''When Lubin is away!...''
</poem>
 
&mdash; Bravo! bravo! exclamou o ministro da Justiça, aparecendo à porta, batendo docemente as palmas. Muito bem, muito bem! Deliciosamente!
 
&mdash; Tenho um pedido a fazer-lhe, Sr. Correia, disse Teresa erguendo&mdash; -se logo.
 
O ministro veio, com uma pressa [[wikt:galante|galante]]:
 
&mdash; Que é, minha senhora? que é?
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O homem das suíças, que estava de pé fazendo saltar circunspectamente os berloques, adiantou-se, cheio de informações:
 
&mdash; Das vagas, minha senhora, é [[w:Leiria|Leiria]], capital do distrito e sede do bispado.
 
&mdash; Leiria? disse Teresa. Bem sei, é onde há umas ruínas?
Linha 374:
&mdash; Um Castelo, minha senhora, edificado por D. Dinis.
 
&mdash; Leiria é excelente!
 
&mdash; Mas perdão, perdão! disse o ministro, Leiria, sede do bispado, uma cidade... O Sr. padre Amaro é um eclesiástico novo...
Linha 398:
&mdash; Bem, bem, sucumbo, disse o ministro com gesto resignado. Mas é uma tirania!
 
&mdash; ''Thank you'', fez Teresa, estendendo-lhe a mão.
 
&mdash; Mas, minha senhora, estou a estranhá-la, disse o ministro, fixandofitando-a.
 
&mdash; Estou contente hoje, disse ela. Olhou um momento para o chão, distraída, dando pequeninas pancadas no vestido de seda, levantou-se, foi sentar-se ao piano bruscamente, e recomeçou a doce ária inglesa:
 
<poem>
''The village seems dead and asleep''
''When Lubin is away!...''
</poem>
 
Linha 425:
&mdash; Lembre-me nas suas orações, Sr. padre Amaro, disse ela. E continuou, com a sua voz magoada, dizendo ao piano &mdash; as tristezas da aldeia quando Lubin está ausente!
 
Amaro daí a uma semana soube o seu despacho. Mas não tomaratornara a esquecer aquela manhã em casa da Sra. condessa de Ribamar, &mdash; o ministro de calças muito curtas, enterrado na poltrona, prometendo o seu despacho; a luz clara e calma do jardim entrevisto; o rapaz alto e louro que dizia ''yes''... Cantava-lhe sempre no cérebro aquela ária triste do ''Rigoleto'': e perseguia-o a brancura dos braços de Teresa, sob a gaze negra! Instintivamente via-os enlaçarem-se devagar, devagar, em torno do pescoço [[wikt:airoso|airoso]] do rapaz louro: detestava-o então, e a língua bárbara que falava, e a terra herética de onde viera: e latejavam-lhe as fontes à idéia de que um dia pode&mdash; riapoderia confessar aquela mulher divina, e sentir o seu vestido de seda preta roçar pela sua batina de lustrina velha, na escura intimidade do confessionário.
 
Um dia, ao amanhecer, depois de grandes abraços da tia, partiu para Santa Apolônia, com um [[wikt:galego|galego]] que lhe levava o baú. A madrugada rompia. A cidade estava silenciosa, os candeeiros apagavam-se. Às vezes, uma carroça passava rolando, abalando a calçada; as ruas pareciam-lhe intermináveis; saloios começavam a chegar montados nos seus burros, com as pernas balouçadas, cobertas de altas botas enlameadas; numa ou noutra rua uma voz aguda já apregoava os jornais; e os moços dos teatros corriam com o pote da massa, pregando nas esquinas os cartazes.
 
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