O Crime do Padre Amaro/VI: diferenças entre revisões

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Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à sala de jantar, onde a S. Joaneira e Amélia costuravam. "Estava aborrecido embaixo, vinha um bocado para o [[wikt:cavaco|cavaco]]", dizia. A S. Joaneira, numa cadeira pequena, ao pé da janela, com o gato aninhado na roda do vestido de [[wikt:merino|merino]], cosia de luneta na ponta do nariz. Amélia, junto da mesa, trabalhava com o cesto da costura ao lado; a cabeça inclinada sobre o trabalho mostrava a sua risca fina, nítida, um pouco afogada na abundância do cabelo; os seus grandes brincos de ouro, em forma de pingos de cera, oscilavam, faziam tremer e crescer sobre a finura do pescoço uma pequenina sombra; as olheiras leves cor de bistre esbatiam-se delicadamente sobre a pele de um trigueiro mimoso, que um sangue forte [[wikt:aviventar|aviventava]]; e o seu peito cheio respirava devagar. Às vezes, cravando a agulha na [[wikt:fazenda|fazenda]], espreguiçava-se devagarinho, sorria, cansada. Então AmareAmaro gracejava:
 
— Ah preguiçosa, preguiçosa! Olha que mulher de casa!
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Ela ria; conversavam. A S. Joaneira sabia as coisas interessantes do dia: o major despedira a criada; ou havia quem oferecesse dez moedas pelo porco do Carlos do correio. De vez em quando a ''Ruça'' vinha ao armário buscar um prato ou uma colher; então falava-se do preço dos gêneros, do que havia para o jantar. A S. Joaneira tirava as lunetas, traçava a perna, e balouçando o pé calçado numa chinela de ourelo, punha-se a dizer os pratos.
 
— Hoje temos [[wikt:grão-de-bico|grão-de-bico]]. Não sei se o senhor pároco gostará, foi para variar...
 
Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas comidas descobria afinidade de gostos com Amélia.
 
Depois, animando-se, [[wikt:bulir|bulia]]-lhe no cesto da costura. Um dia encontrara uma carta; perguntou-lhe pelo ''[[wikt:derriço|derriço]]''; ela respondeu, picando vivamente o [[wikt:pesponto|pesponto]]:
 
— Ai! a mim ninguém me quer, senhor pároco...
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— Não é tanto assim, acudiu ele. Mas suspendeu-se, muito vermelho, afetando tossir.
 
Amélia ásàs vezes fazia-se muito familiar; um dia mesmo, pediu-lhe para sustentar nas mãos uma meadinha de [[wikt:retrós|retrós]] que ela ia dobar.
 
— Deixe falar, senhor pároco! exclamou a S. Joaneira. Ora a tolice! Isto, em se lhe dando confiança!...
 
Mas Amaro prontificou-se, rindo, todo contente: — ele estava ali para o que quisessem, até para dobadoura! Era mandarem, era mandarem!... E as duas mulheres riam, dum riso cálido, enlevadas naquelas maneiras do senhor pároco, "que até tocavam o coração" ! Às vezes Amélia pousava a costura e tomava o gato no colo; Amaro chegava-se, corria a mão pela espinha do [[wikt:maltês|maltês]] que se arredondava, fazendo um ronrom de gozo.
 
— Gostas? dizia ela ao gato, um pouco corada, com os olhos muito ternos.
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— Bichaninho gato! bichaninho gato!
 
Depois a S. Joaneira erguia-se para dar o remédio à idiota ou ir [[wikt:palração|palrar]] à cozinha. Eles ficavam sós; não falavam, mas os seus olhos tinham um longo diálogo mudo, que os ia penetrando da mesma languidez dormente. Então Amélia cantarolava baixo o ''Adeus'' ou o ''Descrente'': Amaro acendia o seu cigarro, e escutava, bamboleando a perna.
 
— É tão bonito isso! dizia.
 
Amélia cantava mais acentuadamente, cosendo depressa; e a espaços, erguendo o busto, [[wikt:mirava|mirava]] o [[wikt:alinhavado|alinhavado]] ou o pesponto, passando-lhe por cima, para o assentar, a sua unha polida e larga.
 
Amaro achava aquelas unhas admiráveis, porque tudo que era ''ela'' ou vinha ''dela'' lhe parecia perfeito: gostava da cor dos seus vestidos, do seu andar, do modo de passar os dedos pelos cabelos, e olhava até com ternura para as saias brancas que ela punha a secar à janela do seu quarto, enfiadas numa cana. Nunca estivera assim na intimidade duma mulher. Quando percebia a porta do quarto dela entreaberta, ia resvalar para dentro olhares gulosos, como para perspectivas dum paraíso: um saiote pendurado, uma meia estendida, uma liga que ficara sobre o baú, eram como revelações da sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo pálido. E não se saciava de a ver falar, rir, andar com as saias muito engomadas que batiam as ombreiras das portas estreitas. Ao pé dela, muito fraco, muito langoroso, não lhe lembrava que era padre; o Sacerdócio, Deus, a Sé, o Pecado ficavam embaixo, longe, via-os muito esbatidos do alto do seu enlevo, como de um monte se vêem as casas desaparecer no nevoeiro dos vales; e só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha.
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— Que diabo, é necessário ter juízo! É necessário ser homem!
 
Descia, ia folhear o seu Breviário; mas a voz de Amélia falava em cima, o tique-tique das suas botinas batia o soalho... Adeus! a devoção caia como uma vela a que falta o vento; as boas resoluções fugiam, e lá voltavam as tentações em bando a apoderar-se do seu cérebro, [[wikt:fremente|frementes]], [[wikt:arrulhar|arrulhando]], roçando-se umas pelas outras como um bando de pombas que recolhem ao pombal. Ficava todo subjugado, sofria. E lamentava então a sua liberdade perdida: como desejaria não a ver, estar longe de Leiria, numa aldeia solitária, entre gente pacificapacífica, com uma criada velha cheia de provérbios e de economia, e passear pela sua horta quando as alfaces verdejam e os galos cacarejam ao sol! Mas Amélia, de cima, chamava-o — e o encanto recomeçava, mais penetrante.
 
A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor do dia. A S. Joaneira trinchava, enquanto Amaro conversava cuspindo os caroços das azeitonas na palma da mão e enfileirando-os sobre a toalha. A ''Ruça'', cada dia mais ética, servia mal, sempre a tossir; Amélia às vezes erguia-se para ir buscar uma faca, um prato ao aparador. Amaro queria levantar-se logo, atencioso.
 
— Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor pároco! dizia ela. E punha— -lhe a mão no ombro, e os seus olhos encontravam-se.
 
Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estômago, sentia-se regalado, gozava muito no bom calor da sala; depois do segundo copo da [[w:Bairrada|Bairrada]] tornava-se expansivo, tinha gracinhas; às vezes mesmo, com um brilho terno no olho, tocava fugitivamente o pé de Amélia debaixo da mesa; ou, fazendo um ar sentido, dizia "que muito lhe pesava não ter uma irmãzinha assim" !
 
Amélia gostava de ensopar o miolo do pão no molho do guisado: a mãe dizia-lhe sempre:
 
— [[wikt:embirrar|Embirro]] que faças isso diante do senhor pároco.
 
E ele então rindo:
 
— Pois olhe, também eu gosto. Simpatia! magnetismoMagnetismo!
 
E molhavam ambos o pão, e sem razão davam grandes risadas. Mas o crepúsculo crescia, a Ruça trazia o candeeiro. O brilho dos copos e das louças alegrava Amaro, enternecia-o mais; chamava à S. Joaneira mamã; Amélia sorria, de olhos baixos, trincando com a ponta dos dentes cascas de tangerina. Daí a pouco vinha o café; e o padre Amaro ficava muito tempo partindo nozes com as costas da faca, e quebrando a cinza do cigarro na borda do pires.
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— Então, como vai cá o seu menino?
 
Riam; vinham as histórias do dia. O cônego costumava trazer no bolso o ''[[w:Diário Popular (Portugal)|Diário Popular]]''; Amélia interessava-se pelo romance, a S. Joaneira pelas correspondências amorosas nos anúncios.
 
— Ora vejam que pouca-vergonha!... dizia ela, deliciando-se.
 
Amaro então falava de Lisboa, de escândalos que lhe contara a tia: dos fidalgos que conhecera "em casa do Sr,. conde de Ribamar". Amélia, enlevada, escutava-o com os cotovelos sobre a mesa, roendo vagarosamente a ponta do palito.
 
Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina esmorecia à cabeceira da cama: e a pobre velha, com uma medonha touca de rendas negras que tornava mais lívida a sua carinha engelhada como uma [[wikt:maça reineta|maçã reineta]], fazendo debaixo da roupa uma saliência quase imperceptível, fixava em todos, com susto, os seus olhinhos côncavos e chorosos.
 
— É o senhor pároco, tia Gertrudes! gritava-lhe Amélia ao ouvido. Vem ver como está.
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— Pobre de Cristo! dizia Amaro. Pobre de Cristo! Deus lhe dê uma boa morte!
 
E voltavam para a sala de jantar onde o cônego Dias, todo enterrado na velha poltrona de [[wikt:chita|chita]] verde, com as mãos cruzadas sobre o ventre, dizia logo:
 
— Ora vá um bocadinho de música, pequena!
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A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro soprando o fumo do cigarro, sentia-se todo [[wikt:enlear|enleado]] num sentimentalismo agradável.
 
Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha-se então a ler os ''Cânticos a Jesus'', tradução do francês publicada pela sociedade das ''Escravas de Jesus''. É uma obrazinha beata, escrita com um [[wikt:lirismo|lirismo]] equívoco, quase [[wikt:torpe|torpe]] &mdash; que dá à oração a linguagem da luxúria: Jesus é invocado, reclamado com as sofreguidões balbuciantes de uma [[wikt:concupiscência|concupiscência]] alucinada: "Oh! vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero! Abrasa-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possui-me! " E um amor divino, ora grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama assim em cem páginas inflamadas onde as palavras ''gozo'', ''delícia'', ''delírio'', ''êxtase'', voltam a cada momento, com uma persistência histérica. E depois de monólogos frenéticos de onde se exala um bafo de [[wikt:cio|cio]] místico, vêm então imbecilidades de sacristia, notazinhas beatas resolvendo casos difíceis de jejuns, e orações para as dores do parto! Um bispo aprovou aquele livrinho bem impresso; as educandas lêem-no no convento. É beato e excitante; tem as eloqüênciaseloquências do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em [[wikt:marroquim|marroquim]] e dá-se às confessadas; é a cantárida canônica!
 
Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aqueles períodos sonoros, [[wikt:túmido|túmidos]] de desejo; e no silêncio, por vezes, sentia em cima ranger o leito de Amélia; o livro escorregava-lhe das mãos, encostava a cabeça às costas da poltrona, cerrava os olhos, e parecia-lhe vê-la em colete diante do toucador desfazendo as tranças; ou, curvada, desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria os dois seios muito brancos.
 
Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal de a possuir.