O Crime do Padre Amaro/VI: diferenças entre revisões

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Sentada à mesa, costurava com um xale-manta pelos ombros: João Eduardo, ao pé, jogava a bisca com a S. Joaneira.
 
Amaro sentou-se um pouco embaraçado; a presença do escrevente dera-lhe de repente, sem saber por quê, o duro choque duma realidade antipática: e todas as esperanças, que lhe tinham vindo a dançar uma [[wikt:sarabanda|sarabanda]] na imaginação, encolhiam-se uma a uma, murchavam — vendo ali Amélia ao pé do noivo, curvada sobre uma costura honesta, com o seu escuro vestido afogado, junto do candeeiro de família!
E tudo em redor lhe parecia como mais recatado, as paredes com o seu papel de ramagens verdes, o armário cheio de louça luzidia da Vista Alegre, o simpático e bojudo pote de água, o velho piano mal firme nos seus três pés torneados; o paliteiro tão querido de todos — um Cupido rechonchudo com um guarda-chuva aberto eriçado de palitos, e aquela tranqüila bisca jogada com os [[wikt:dichote|dichotes]] clássicos. Tudo tão decente!
 
Afirmava-se então nas grossas [[wikt:rosca|roscas]] do pescoço da S. Joaneira, como para descobrir nelas as marcas das beijocas do cônego: ah! tu, não há dúvida, és "uma [[wikt:barregã|barregã de clérigo]]". Mas Amélia! com aquelas longas pestanas descidas, o beiço tão fresco!... Ignorava decerto as [[wikt:libertinagem|libertinagens]] da mãe; ou, experiente, estava bem resolvida a estabelecer-se solidamente na segurança dum amor legal! — E Amaro, da sombra, examinava-a longamente como para se certificar, na placidez do seu rosto, da virgindade do seu passado.
 
— Cansadinho, senhor pároco, hem? disse a S. Joaneira. E para João Eduardo: — Trunfo, faz favor, seu cabeça no ar!
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Amélia ia cosendo com a cabeça baixa: tinha um pequeno casabeque preto com botões de vidro, que lhe disfarçava a forma do seio.
 
E Amaro irritava-se daqueles olhos fixos na costura, daquele casaco amplo escondendo a beleza que mais [[wikt:apetecer|apetecia]] nela! E nada a esperar. Nada dela lhe pertenceria, nem a luz daquelas pupilas, nem a brancura daqueles peitos! Queria casar — e guardava ''tudo'' para o outro, o idiota, que sorria baboso, jogando paus! Odiou-o então, dum ódio complicado de inveja ao seu bigode negro e ao seu direito de amar...
 
— Está incomodado, senhor pároco? perguntou Amélia, vendo-o mexer-se bruscamente na cadeira.
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— Traz-me luz! gritou Amaro à ''Ruça''.
 
Desceu para o seu quarto, desesperado. Pôs a vela sobre a cômoda; o espelho estava defronte, e a sua imagem apareceu-lhe; sentiu-se feio, ridículo com a sua cara rapada, a volta hirta como uma coleira, e por trás a coroa hedionda. Comparou-se instintivamente com o outro que tinha um bigode, o seu cabelo todo, a sua liberdade! Para que hei-de eu estar a ralar— -me? pensou. O outro era um marido; podia dar-lhe o seu nome, uma casa, a maternidade; ele só poderia dar-lhe sensações criminosas, depois os terrores do pecado! Ela simpatizava talvez com ele, apesar de padre; mas antes de tudo, acima de tudo, queria casar; nada mais natural! Via-se pobre, bonita, só: cobiçava uma situação legitimalegítima e duradoura, o respeito das vizinhas, a consideração dos lojistas, todos os proveitos da honra!
 
Odiou-a então, e o seu vestido afogado e a sua honestidade! A estúpida, que não percebia que ao pé dela, sob uma negra batina, uma paixão devota a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciência! Desejou que ela fosse como a mãe, — ou pior, toda livre, com vestidos garridos, uma [[wikt:cuia|cuia]] [[wikt:impudência|impudente]], traçando a perna e fitando os homens, uma fêmea fácil como uma porta aberta...
 
— Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada! — pensou, recaindo em si um pouco envergonhado. Está claro: não podemos pensar em mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito dogma!