Rimas (Francisco Álvares de Nóbrega): diferenças entre revisões

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Revisão das 15h15min de 21 de outubro de 2010


==Na fralda de dois íngremes rochedos==


Na fralda de dois íngremes rochedos,
Que levantam aos Céus fronte orgulhosa,
Existe de Machim a Vila idosa
Povoada de escassos arvoredos.


Pelo meio, alisando alvos penedos,
Desce extensa Ribeira preguiçosa,
Porém, tão crespa na estação chuvosa
Que aos íncolas infunde respeito e medo.


Ás margens dela em hora atenuada,
Vi a primeira luz do sol sereno,
Em pobre sim, mas paternal morada.


Aos trabalhos me afiz desde pequeno.
O abrigo deixei da Pátria amada
E vim ser infeliz noutro terreno.


Poema dedicado à sua terra natal: Machico.



==Do vasto Oceano flor, gentil Madeira==


Do vasto Oceano flor, gentil Madeira,
Que murta viçosa o cimo enlaças,
Sóbria a teu seio amamentando as Graças,
Com o vítrio suco da imortal Parreira


Daquele, que em ti viu a luz primeira,
Se acaso é crível que inda apreço faças,
Entre o prazer das brincadeiras taças
Recolhe a minha produção rasteira.


É donativo escasso, eu bem conheço;
Mas o desejo que acompanha a oferenda,
Lhe avulta a estima, lhe engrandece o preço.


Deixa que a roda o meu Destino prenda;
Em cessando estes males, que padeço
Talvez então mais altos dons te renda.


Poema dedicado à Ilha da Madeira.



==Sisudo Ornelas meu, em cujos lares==


Sisudo Ornelas meu, em cujos lares
A tenra flor dos anos meus abriu,
Flor que, ao depois, do tempo a mão cobriu
De hórrido luto, e de fatais pesares.


Transpondo o espaço de alongados ares,
Leve sinal de gratidão te enviu,
Da minha história o entre-cortado fio
Verás, quando este livro folheares.


Ao ler os duros males que lastimo,
Não afogues em mar de novo pranto
Planta nutrida ao teu afago e mimo.


Vingam-me as musas de infortúnio tanto;
Afugento a Desgraça, a dor suprimo
Quando ao toque da Lyra a voz levanto.


Poema dedicado a Marcos de Ornelas, seu protector.



==Caro colega meu, Mendes querido==


Caro colega meu, Mendes querido,
Lenitivo suave a meu cuidado,
Quando em austero asilo aferrolhado
Nos verdes anos meus era oprimido.


Pela mão da verdade aqui tecido
C’as próprias tintas, que moera o fado,
O quadro vê daquele antigo estado,
Em trabalhos fatais reproduzido.


O que é a desventura enfim repara;
Depois que desandou a roda sua,
Oh! como, amigo, raras vezes pára!


Tem sido a minha vida amarga e crua,
De martírios sem fim cadeia rara,
Que de hora em hora sem cessar gradua.


Poema dedicado ao colega de seminário João Mendes da Silva.



==Cícero Funchalense, eu te saúdo==


Cícero funchalense, eu te saúdo,
E grato cá de longe a voz alçando,
Te agradeço as lições que bebi, quando
Comecei a gostar o doce estudo.


Elas escoram o alentado escudo
Com que espanto este mal, que estou passando,
No meio dos trabalhos recordando
Ditames, que te ouvi absorto e mudo.


Tu me dispusestes o loiro que me enrama,
Que nem o raio cresta, nem me consome,
Apesar da desgraça, que me acama.


Com a minha glória a tua glória assome,
Participa também da minha fama,
Ouvido seja, a par do meu, teu Nome.


Poema dedicado ao padre, e seu professor, João Francisco Lopes da Rocha.



==Alvíssaras, Funchal, da opressa frente==


Alvíssaras, Funchal, da opressa frente
Arranca enfim o ramo d’acipreste;
As alvas roupas de alegria veste;
As faces banha de prazer veemente!


O flagelo tenaz da humana gente,
Mais terrível que fome, guerra e peste
Por decreto fatal de Mão celeste
A seu pesar te deixa em paz contente!


Era um «santo» Varão!... Viver devia
Lá no calado horror das mudas selvas,
Onde nem sequer visse a luz do dia;


Brutas feras tratar, manter-se em relvas,
Esse aborto da torpe hipocrisia,
O Bispo do Funchal, eleito d’Elvas.


Poema celebrando a partida do Bispo do Funchal, D. José da Costa Torres.



==Se d’entre as lidas do enredo foro==


Se d'entre as lidas do enredado foro,
Que das Musas louçãs desdenha o mimo,
Do fértil monte ao sempre verde cimo
Vás inda alguma vez, Jardim sonoro.


Se do metro suave o som canoro,
A cujo encanto o gasto alento animo,
Inda sabe em teu seio achar arrimo,
E a Lyra adoras, bem como eu a adoro;


Acolhe brandamente em teu recinto
A escassa produção com que à luz saio,(…)


De mim só fala, lê-lo sem desmaio
Porque eu fiz por tratar do mal que sinto,
Sem me queixar de quem me forja o raio.


Poema enviado ao Dr. Luis António Jardim relatando a sua prisão no Aljube do Funchal.



==Prelado Excelso, o Nóbrega doente==


Prelado Excelso, o Nóbrega doente,
Cá das margens do Tejo, onde o remistes,
Vai, sobre as asas de seus versos tristes,
A beijar-vos humilde a mão clemente.


Ainda se lembra da tenaz corrente,
Que de seu roto pé, Sábio despistes,
Quando em cárcere abjecto em luto o vistes
Dos pais, do bemfeitor, da Pátria ausente.


Só vós o fado meu vencer pudestes,
Só vós os amargos dias me adoçastes,
Do vosso antecessor mimos agrestes.


Conheça o Mundo o quão diverso andastes;
Aquele me espancou, vós me acolhestes;
Aquele me prendeu, vós me soltastes.


Poema dedicado ao Bispo do Funchal D. Luís Rodrigues de Villares, seu protector.



==Se lá de quando em quando, Águia do Sena==


Se lá de quando em quando, Águia do Sena,
Sobre os ditames da moral mais pura,
Não entornasses a letal doçura,
Que teus altos escritos envenena;


Se o Sol da Graça fúlgida, serena,
Iluminasse igual tua escritura:
Quem não te levaria à sepultura
Amplos tributos de saudade e pena!


Que vezes pela noite extensa e fria,
Curvado sobre ti, absorto exclamo:
Oh alma grande! Assim não fora ímpia!


Com teu estro sublime ali m’ inflamo;
E abrasado na luz que o acendia,
Sem teus erros amar, seus vôos amo.


Poema dedicado a Voltaire.



==Ave Real, que a esfera demandando==


Ave Real, que a esfera demandando,
Sobre o Clima Britano o voo erguias,
E de perto a tratar c'os astros ias,
Leis infalíveis a seu giro dando (…)


Sentindo de te ver partir tão cedo,
O carpir os Heróis pertence aos Vates)
De cá teu nome entoarei a medo. (…)


Excerto de um poema dedicado a Isaac Newton.



==Entre desgosto e desgosto==


(…) Entre desgosto e desgosto
Caminho ao meu triste fim,
Como se já para mim
Da vida o Sol fora posto;
As manchas que tem meu rosto,
Da morte são já matizes,
Meu mal tem fundas raízes.
E quer a acerba desgraça
Que eu brilhante época faça
No livro dos infelizes.


Quem deste fatal volume
Quizer combinar os factos,
Em mim os tem mais exactos,
Mais fieis do que presume;
A minha vida resume
Todo o rigor d’impios fados:
Enfim se forem lembrados
Nos tempos mais horrorosos
Se julgarão fabulosos
Os meus dias desgraçados.


Excerto de um poema em que o poeta lamenta o abandono a que foi votado por parte dos seus amigos, tementes do contágio pela doença.



==Um mortal sem valia, um desgraçado==


Um mortal sem valia, um desgraçado,
Que em pobre leito há meses geme aflito,
Que traz na própria face o mal escrito,
Até dos mesmos seus abandonados,


De agudíssimas dores volteado.
Aos céus mandando inconsável grito,
Que desordem, que crime, que delito
Cometer poderia, ou que atentado?


Juízo dos mortais, quanto te iludes!
A menor sombra tuas vozes borra,
Tu confundes os vícios c’o virtudes!


E sentirei em fúnebre masmorra
De parca desumana os golpes rudes,
Sem ter piedosa mão que me socorra?


Poema relatando o seu segundo encarceramento na Cadeia do Limoeiro.



==Sem par Elmano, a quem Pindo a chave==


Sem par Elmano, a quem do Pindo a chave
Franqueara o Pastor do loiro Amfriso,
Quanto mal te apontava ao rosto liso
A sombra, que afugenta o branco ignave;


Mana dos lábios teus néctar suave,
Se copias de Armia o doce riso;
Fala por tua boca um Deus diviso,
Se tratas da Moral sisuda e grave.


Sobre as asas reais, cria inda implume
Águia possante pouco a pouco exalta,
Té que a faça do Phebo o lume:


Assim teu metro, que meu estro esmalta,
Me convida a subir da Glória ao cume,
E o ensino me dá, que inda me falta.


Poema dedicado a Bocage, seu contemporâneo de cárcere na Cadeia do Limoeiro.



==Palinuro Sagrado, oh, como absorto==


Palinuro Sagrado, oh, como absorto
Ao ver-vos fica o meu batel por certo!
Meu náufrago batel, que sábio e esperto
Vindes guiar da salvação ao porto.


De mim se apossa um divinal conforto
Á proporção que vos chegais mais perto;
Vós dourais da existência o fio incerto,
Vós arrancais da fria campa um morto.


Imagem do meu Deus, ministro augusto,
Tanto ímpio quebranta a vossa vinda,
Quanto conforta e fortalece o justo.


Minha interna aflição convosco finda,
Já o transe final me não dá susto;
Graças, graças aos céus! Não morro ainda.


Poema dedicado ao seu Confessor da Inquisição, aquando do seu encarceramento em 1803, na Cadeia do Limoeiro.



==Ah, Príncipe! E será, será possível==


Ah, Príncipe! E será, será possível,
Que não vos causem o menor abalo
Os ais que solta o íntegro vassalo
Neste hediondo cárcere terrível?


Mostrar-vos-eis acaso ainda insensível,
Quando a verdade, vos atesto e falo?
Olhai, Senhor, que de aflição estalo
Olhai que toco a meta impreterível. (…)


Não conheço outro Deus de Jove abaixo;
De vós só é que pende eu ser ditoso,
Seja, qual meu delito, o meu despacho.


Excerto de um dos 15 poemas dedicados ao Regente D. João VI, Príncipe do Brasil, na esperança de que intercedesse favoravelmente na sua libertação da Cadeia do Limoeiro.



==Príncipe Excelso, em lúgubre masmorra==


Príncepe Excelso, em lúgubre masmorra
A que jamais dá luz do Sol o facho,
Geme ao som do grilhão infame e baixo,
Sem ter piedosa mão, que me socorra.


Por mais que pense e que discorra,
Em minha vida um crime só não acho,
Seja qual meu delicto, o meu despacho
Que me soltem, mandai, ou que enfim morra.


Quem culpa cometeu, é bem que pague,
Em cadeia fatal, que o pé lhe oprime
Com lágrimas de dor embora alague.


Porém não consintais que se lastime
Na mesma estância, e em confusão se esmague
A singela inocência a par do crime.


Poema dedicado ao Regente D. João VI, Príncipe do Brasil, onde o poeta proclama a sua inocência.



==Não lastimes, Baptista, a minha sorte==


Não lastimes, Baptista, a minha sorte,
Nenhum abalo o dano meu te faça;
Batem em mim os golpes da desgraça,
Bem como as ondas num rochedo forte.


Ver-me-às tranquilo sujeitar ao corte.
Que da vida a cadeia desenlaça. (…)


Os homens, com tormento agudo e grave,
Podem fazer que desta estância abjecta
Meu sangue, espadanando, os tetos lave;


Podem no coração cravar-me a seta,
Porém não extorquir-me a paz suave,
Com que o Justo transpõe da vida a meta.
Excerto de um poema dedicado ao amigo, e protector, Manuel José Moreira Pinto Baptista.

==Sadias virações da madrugada==
Sadias virações da madrugada,
Que as folhas embalais deste arvoredo,
Entrando neste sítio inda mais cedo
Que a dúbia luz da aurora marchetada.

Agora que repousa a doce Amada
Em bençãos de jasmins seu corpo ledo,
Um pouco respirai mais em segredo,
Sádias virações da madrugada.

Respeitai de Marília o sono brando
Nos ramos destes álamos copados.
As subtis asas plácidas feixando.

Tende em morno silêncio os verdes prados,
Durma a causa do mal que estou passando
Enquanto dorme – dormem meus cuidados.

Poema sobre o amor escrito por Francisco Álvares de Nóbrega, na Cadeia do Limoeiro.

==Se me recordo, meu Camões divino==
Se me recordo, meu Camões divino,
De que em pobre hospital, sórdido, agreste,
O derradeiro adeus ao Mundo deste,
Leio em tua desgraça o meu destino.

O drago da doença, atroz, maligno,
Cospe em meu corpo tragadora peste;
Que meu fatal instante em fim se apreste,
Espero, como tu, em leito indigno.

Com tudo melhor sorte em ti conheço:
Tu do desprezo sofres só o insulto,
Eu entre ferros ao sepulcro desço,

Tu sem nota, eu infame me sepulto;
Porém menos, também, menos mereço,
Porque tu eras sábio, eu sou estulto.

Poema dedicado a Luís Vaz de Camões.

==Preso à rija cadeia, onde inocente==
Preso à rija cadeia, onde inocente
Suporto da calúnia o férreo açoite,
Sem achar outro arrimo, a que me acoite,
Bradava pela morte em pranto ardente. (…)

Quem me diz que entre os ferros da violência,
A cujo peso o meu valor quebranto,
Pode a dor sufocar, conter o pranto,
O que conserva ilesa a consciência;

Ou dos trabalhos tem pouca experiência,
Ou finge esforço inexpugnável, santo;
O delinquente em ferros geme tanto,
Como o herói da cândida inocência. (…)

Como está este dia tão soturno!
Pavoroso negrume o ar enlucta,
Naquele galho a regougar se escuta,
Crendo que é noite, o carpidor nocturno.(…)

O encrespado mar, de negro tinto,
Ostenta em sua túmida voragem
Querer o Orbe aniquilar faminto.

Sucedeu Bóreas torvo à branda aragem;
Da viva inquietação, que n´alma sinto
Ó dia de pavor, tu és a imagem!

Excertos de vários poemas descrevendo o ambiente do cárcere.