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Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria
▲Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria , que o pároco da Sé, José Miguéis , tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sangüíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo ''comilão dos comilões'' . Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica - que o detestava - costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado:
▲- Lá vai a jibóia esmoer . Um dia estoura!
Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe - à hora em que defronte, na casa do doutor Godinho que fazia anos, se polcava com alarido. Ninguém o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca, cabelos nos ouvidos, palavras muito rudes.
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Era ''miguelista'' - e os partidos liberais, as suas opiniões, os seus jornais enchiam-no duma cólera irracionável:
- Cacete ! cacete ! exclamava
Nos últimos anos tomara hábitos sedentários, e vivia isolado - com uma criada velha e um cão, o ''Joli''
O chantre estimava-o. Chamava-lhe ''Frei Hércules''
- ''Hércules'' pela força - explicava sorrindo, ''Frei'' pela gula.
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- É a última pitada que lhe dou!
Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o cônego Campos contou-o à noite ao chá em casa do deputado Novais; foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre
Dias depois do enterro apareceu, errando pela Praça, o cão do pároco, o ''Joli'' . A criada entrara com sezões no hospital; a casa fora fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portais. Era um gozo pequeno, extremamente gordo, - que tinha vagas semelhanças com o pároco. Com o hábito das batinas, ávido dum dono, apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo. Mas nenhum queria o infeliz ''Joli'' ; enxotavam-no com as ponteiras dos guarda-sóis; o cão, repelido como um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manhã apareceu morto ao pé da Misericórdia; a carroça do estrume levou-o e, como ninguém tomou a ver o cão, na Praça, o pároco José Miguéis foi definitivamente esquecido.▼
Dois meses depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro pároco. Dizia-se que era um homem muito novo, saído apenas do seminário. O seu nome era Amaro Vieira. Atribuía-se a sua escolha a influências políticas, e o jornal de Leiria , ''A Voz do Distrito'' , que estava na oposição, falou com amargura, citando o ''Gólgota'' , no ''favoritismo da corte'' e na ''reação clerical'' . Alguns padres tinham-se escandalizado com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor chantre .▼
- Não, não, lá que há favor, há; e que o homem tem padrinhos, tem - disse o chantre . - A mim quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia (Brito Correia era então ministro da Justiça).▼
▲Dias depois do enterro apareceu, errando pela Praça, o cão do pároco, o ''Joli''
▲Dois meses depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro pároco. Dizia-se que era um homem muito novo, saído apenas do seminário. O seu nome era Amaro Vieira. Atribuía-se a sua escolha a influências políticas, e o jornal de Leiria
▲- Não, não, lá que há favor, há; e que o homem tem padrinhos, tem - disse o chantre
Até me diz na carta que o pároco é um belo rapagão. De sorte que - acrescentou sorrindo com satisfação - depois de ''Frei Hércules'' vamos talvez ter ''Frei Apolo''
Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o pároco novo: era o cônego Dias, que fora nos primeiros anos do seminário seu mestre de Moral. No seu tempo, dizia o cônego, o pároco era um rapaz franzino, acanhado, cheio de espinhas carnais...
- Parece que o estou a ver com a batina muito coçada e cara de quem tem lombrigas!... De resto bom rapaz! E espertote
O cônego Dias era muito conhecido em Leiria
O tio Patrício, o ''Antigo''
- Que maroto! Parece mesmo D. João VI!
O cônego vivia só com uma irmã velha, a Sra. D. Josefa Dias, e uma criada, que todos conheciam também em Leiria
O cônego Dias mostrara um grande contentamento com a nomeação de Amaro Vieira. Na botica do Carlos, na Praça, na sacristia da Sé, exaltou os seus bons estudos no seminário, a sua prudência de costumes, a sua obediência: gabava-lhe mesmo a voz: " ''um timbre que é um regalo
- Para um bocado de sentimento nos sermões da Semana Santa, está a calhar!
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E um dia, enfim, mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé, criatura servil e calada, uma carta que recebera de Lisboa de Amaro Vieira.
Era uma tarde de Agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova. Andava então a construir-se a estrada da Figueira: o velho passadiço de pau sobre a ribeira do Lis tinha sido destruído, já se passava sobre a Ponte Nova, muito gabada, com os seus dois largos arcos de pedra, fortes e atarracados. Para diante as obras estavam suspendidas por questões de expropriação; ainda se via o lodoso caminho da freguesia de Marrazes
Em roda da Ponte a paisagem é larga e tranqüila. Para o lado de onde o rio vem são colinas baixas, de formas arredondadas, cobertas da rama verde-negra dos pinheiros novos; embaixo, na espessura dos arvoredos, estão os ''casais'' que dão àqueles lugares melancólicos uma feição mais viva e humana - com as suas alegres paredes caiadas que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela tarde se azulam nos ares sempre claros e lavados. Para o lado do mar, para onde o rio se arrasta nas terras baixas entre dois renques de salgueiros pálidos, estende-se até os primeiros areais o campo de Leiria
Ao pé da Ponte, uma rampa desce para a alameda que se estende um pouco à beira do rio. É um lugar recolhido, coberto de árvores antigas. Chamam-lhe a Alameda Velha. Ali, caminhando devagar, falando baixo, o cônego consultava o coadjutor sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre ''uma idéia que ela lhe dera, que lhe parecia de mestre! De mestre!'' Amaro pedia-lhe com urgência que lhe arranjasse uma casa de aluguel, barata, bem situada, e se fosse possível mobilada ; falava sobretudo de quartos numa casa de hóspedes respeitável. "Bem vê o meu caro padre-mestre, dizia Amaro, que era isto o que verdadeiramente me convinha; eu não quero luxos, está claro: um quarto e uma saleta seria o bastante. O que é necessário é que a casa seja respeitável, sossegada, central, que a patroa tenha bom gênio e que não peça mundos e fundos; deixo tudo isto à sua prudência e capacidade, e creia que todos estes favores não cairão em terreno ingrato. Sobretudo que a patroa seja pessoa acomodada e de boa língua."
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Houve um pequeno silêncio. O coadjutor disse, baixando a voz:
- Sim, vossa senhoria faz muito bem à S. Joaneira
- Faço o que posso, meu caro amigo, faço o que posso, disse o cônego. E com uma entonação terna, risonhamente paternal: - que ela é merecedora! é merecedora. Boa até ali, meu amigo! - Parou, esgazeando os olhos: - Olhe que dia em que eu não lhe apareça pela manhã às nove em ponto, está num frenesi! Oh criatura! digo -lhe eu, a senhora rala-se sem razão. Mas então, é aquilo! Pois quando eu tive a cólica o ano passado! Emagreceu, Sr. Mendes! E depois não há lembrança que não tenha! Agora, pela matança do porco, o melhor do animal é para o ''padre santo''
Falava com os olhos luzidos, uma satisfação babosa.
- Ah, Mendes! acrescentou
- E bonita mulher, disse o coadjutor respeitosamente.
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O coadjutor teve um gesto afirmativo.
- A S. Joaneira é uma pessoa de bem! olhe que é uma pessoa de bem, Mendes! exclamava o cônego batendo no chão fortemente com a ponteira do guarda. sol
- As línguas do mundo são venenosas, senhor cônego, disse o coadjutor com uma voz chorosa. E depois dum silêncio, acrescentou baixo: - Mas aquilo a vossa senhoria deve-lhe sair caro!
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- Pois aí está, meu amigo! Imagine você que desde que o secretário-geral se foi embora a pobre da mulher tem tido a casa vazia: eu é que tenho dado para a panela, Mendes!
- Que ela tem uma fazendita
- Uma ''nesga'' de terra, meu rico senhor, uma nesga de terra! E depois as décimas, os jornais! Por isso digo eu, o pároco é uma mina. Com os seis tostões que ele der, com que eu ajudar, com alguma coisa que ela tire da hortaliça que vende da fazenda, já se governa. E para mim é um alívio, Mendes.
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O cônego bocejou, e fazendo uma cruz sobre o bocejo:
- Vamo-nos chegando às Ave-Marias, hem
Quando, daí a pouco, iam subindo as escadarias da Sé, o cônego parou, e voltando-se para o coadjutor:
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