O Crime do Padre Amaro/I: diferenças entre revisões

Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Sem resumo de edição
 
clean up utilizando AWB
Linha 7:
}}
 
Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria , que o pároco da Sé, José Miguéis , tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sangüíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo ''comilão dos comilões'' . Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica - que o detestava - costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado:
 
- Lá vai a jibóia esmoer . Um dia estoura!
Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria , que o pároco da Sé, José Miguéis , tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sangüíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo ''comilão dos comilões'' . Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica - que o detestava - costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado:
 
- Lá vai a jibóia esmoer . Um dia estoura!
 
Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe - à hora em que defronte, na casa do doutor Godinho que fazia anos, se polcava com alarido. Ninguém o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca, cabelos nos ouvidos, palavras muito rudes.
Linha 26 ⟶ 25:
Era ''miguelista'' - e os partidos liberais, as suas opiniões, os seus jornais enchiam-no duma cólera irracionável:
 
- Cacete ! cacete ! exclamava , meneando o seu enorme guarda-sol vermelho.
 
Nos últimos anos tomara hábitos sedentários, e vivia isolado - com uma criada velha e um cão, o ''Joli'' . O seu único amigo era o chantre Valadares, que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois anos, o seu reumatismo, numa quinta do Alto Minho . O pároco tinha um grande respeito pelo chantre , homem seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovídio - que falava fazendo sempre boquinhas, e com alusões mitológicas.
 
O chantre estimava-o. Chamava-lhe ''Frei Hércules'' .
 
- ''Hércules'' pela força - explicava sorrindo, ''Frei'' pela gula.
Linha 38 ⟶ 37:
- É a última pitada que lhe dou!
 
Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o cônego Campos contou-o à noite ao chá em casa do deputado Novais; foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre , e afirmou-se com respeito - ''que sua excelência tinha muita pilhéria'' !
 
Dias depois do enterro apareceu, errando pela Praça, o cão do pároco, o ''Joli'' . A criada entrara com sezões no hospital; a casa fora fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portais. Era um gozo pequeno, extremamente gordo, - que tinha vagas semelhanças com o pároco. Com o hábito das batinas, ávido dum dono, apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo. Mas nenhum queria o infeliz ''Joli'' ; enxotavam-no com as ponteiras dos guarda-sóis; o cão, repelido como um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manhã apareceu morto ao pé da Misericórdia; a carroça do estrume levou-o e, como ninguém tomou a ver o cão, na Praça, o pároco José Miguéis foi definitivamente esquecido.
 
Dois meses depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro pároco. Dizia-se que era um homem muito novo, saído apenas do seminário. O seu nome era Amaro Vieira. Atribuía-se a sua escolha a influências políticas, e o jornal de Leiria , ''A Voz do Distrito'' , que estava na oposição, falou com amargura, citando o ''Gólgota'' , no ''favoritismo da corte'' e na ''reação clerical'' . Alguns padres tinham-se escandalizado com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor chantre .
 
- Não, não, lá que há favor, há; e que o homem tem padrinhos, tem - disse o chantre . - A mim quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia (Brito Correia era então ministro da Justiça).
 
 
Dias depois do enterro apareceu, errando pela Praça, o cão do pároco, o ''Joli'' . A criada entrara com sezões no hospital; a casa fora fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portais. Era um gozo pequeno, extremamente gordo, - que tinha vagas semelhanças com o pároco. Com o hábito das batinas, ávido dum dono, apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo. Mas nenhum queria o infeliz ''Joli'' ; enxotavam-no com as ponteiras dos guarda-sóis; o cão, repelido como um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manhã apareceu morto ao pé da Misericórdia; a carroça do estrume levou-o e, como ninguém tomou a ver o cão, na Praça, o pároco José Miguéis foi definitivamente esquecido.
 
Dois meses depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro pároco. Dizia-se que era um homem muito novo, saído apenas do seminário. O seu nome era Amaro Vieira. Atribuía-se a sua escolha a influências políticas, e o jornal de Leiria , ''A Voz do Distrito'' , que estava na oposição, falou com amargura, citando o ''Gólgota'' , no ''favoritismo da corte'' e na ''reação clerical'' . Alguns padres tinham-se escandalizado com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor chantre .
 
- Não, não, lá que há favor, há; e que o homem tem padrinhos, tem - disse o chantre . - A mim quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia (Brito Correia era então ministro da Justiça).
 
Até me diz na carta que o pároco é um belo rapagão. De sorte que - acrescentou sorrindo com satisfação - depois de ''Frei Hércules'' vamos talvez ter ''Frei Apolo'' .
 
Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o pároco novo: era o cônego Dias, que fora nos primeiros anos do seminário seu mestre de Moral. No seu tempo, dizia o cônego, o pároco era um rapaz franzino, acanhado, cheio de espinhas carnais...
 
- Parece que o estou a ver com a batina muito coçada e cara de quem tem lombrigas!... De resto bom rapaz! E espertote ...
 
O cônego Dias era muito conhecido em Leiria . Ultimamente engordara, o ventre saliente enchia-lhe a batina e a sua cabecinha grisalha, as olheiras papudas, o beiço espesso faziam lembrar velhas anedotas de frades lascivos e glutões.
 
O tio Patrício, o ''Antigo'' , negociante da Praça, muito liberal e que quando passava pelos padres rosnava como um velho cão de fila, dizia às vezes ao vê-lo atravessar a Praça, pesado, ruminando a digestão, encostado ao guarda-chuva:
 
- Que maroto! Parece mesmo D. João VI!
 
O cônego vivia só com uma irmã velha, a Sra. D. Josefa Dias, e uma criada, que todos conheciam também em Leiria , sempre na rua, entrouxada num xale tingido de negro, e arrastando pesadamente as suas chinelas de ourelo . O cônego Dias passava por ser rico; trazia ao pé de Leiria propriedades arrendadas, dava jantares com peru, e tinha reputação o seu vinho ''duque'' de 1815. Mas o fato saliente da sua vida - o fato comentado e murmurado - era a sua antiga amizade com a Sra. Augusta Caminha, a quem chamavam a S. Joaneira , por ser natural de S. João da Foz. A S. Joaneira morava na Rua da Misericórdia, e recebia hóspedes . Tinha uma filha, a Ameliazinha , rapariga de vinte e três anos, bonita, forte, muito desejada.
 
O cônego Dias mostrara um grande contentamento com a nomeação de Amaro Vieira. Na botica do Carlos, na Praça, na sacristia da Sé, exaltou os seus bons estudos no seminário, a sua prudência de costumes, a sua obediência: gabava-lhe mesmo a voz: " ''um timbre que é um regalo .'' '"
 
- Para um bocado de sentimento nos sermões da Semana Santa, está a calhar!
Linha 72 ⟶ 67:
E um dia, enfim, mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé, criatura servil e calada, uma carta que recebera de Lisboa de Amaro Vieira.
 
Era uma tarde de Agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova. Andava então a construir-se a estrada da Figueira: o velho passadiço de pau sobre a ribeira do Lis tinha sido destruído, já se passava sobre a Ponte Nova, muito gabada, com os seus dois largos arcos de pedra, fortes e atarracados. Para diante as obras estavam suspendidas por questões de expropriação; ainda se via o lodoso caminho da freguesia de Marrazes , que a estrada nova devia desbastar e incorporar; camadas de cascalho cobriam o chão; e os grossos cilindros de pedra, que acalcam e recamam os macadames, enterravam-se na terra negra e úmida das chuvas.
 
Em roda da Ponte a paisagem é larga e tranqüila. Para o lado de onde o rio vem são colinas baixas, de formas arredondadas, cobertas da rama verde-negra dos pinheiros novos; embaixo, na espessura dos arvoredos, estão os ''casais'' que dão àqueles lugares melancólicos uma feição mais viva e humana - com as suas alegres paredes caiadas que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela tarde se azulam nos ares sempre claros e lavados. Para o lado do mar, para onde o rio se arrasta nas terras baixas entre dois renques de salgueiros pálidos, estende-se até os primeiros areais o campo de Leiria , largo, fecundo, com o aspecto de águas abundantes, cheio de luz. Da Ponte pouco se vê da cidade; apenas uma esquina das cantarias pesadas e jesuíticas da Sé, um canto do muro do cemitério coberto de parietárias , e pontas agudas e negras dos ciprestes; o resto está escondido pelo duro monte ouriçado de vegetações rebeldes, onde destacam as ruínas do Castelo, todas envolvidas à tarde nos largos vôos circulares dos mochos, desmanteladas e com um grande ar histórico.
 
Ao pé da Ponte, uma rampa desce para a alameda que se estende um pouco à beira do rio. É um lugar recolhido, coberto de árvores antigas. Chamam-lhe a Alameda Velha. Ali, caminhando devagar, falando baixo, o cônego consultava o coadjutor sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre ''uma idéia que ela lhe dera, que lhe parecia de mestre! De mestre!'' Amaro pedia-lhe com urgência que lhe arranjasse uma casa de aluguel, barata, bem situada, e se fosse possível mobilada ; falava sobretudo de quartos numa casa de hóspedes respeitável. "Bem vê o meu caro padre-mestre, dizia Amaro, que era isto o que verdadeiramente me convinha; eu não quero luxos, está claro: um quarto e uma saleta seria o bastante. O que é necessário é que a casa seja respeitável, sossegada, central, que a patroa tenha bom gênio e que não peça mundos e fundos; deixo tudo isto à sua prudência e capacidade, e creia que todos estes favores não cairão em terreno ingrato. Sobretudo que a patroa seja pessoa acomodada e de boa língua."
Linha 106 ⟶ 101:
Houve um pequeno silêncio. O coadjutor disse, baixando a voz:
 
- Sim, vossa senhoria faz muito bem à S. Joaneira ...
 
- Faço o que posso, meu caro amigo, faço o que posso, disse o cônego. E com uma entonação terna, risonhamente paternal: - que ela é merecedora! é merecedora. Boa até ali, meu amigo! - Parou, esgazeando os olhos: - Olhe que dia em que eu não lhe apareça pela manhã às nove em ponto, está num frenesi! Oh criatura! digo -lhe eu, a senhora rala-se sem razão. Mas então, é aquilo! Pois quando eu tive a cólica o ano passado! Emagreceu, Sr. Mendes! E depois não há lembrança que não tenha! Agora, pela matança do porco, o melhor do animal é para o ''padre santo'' , você sabe? é como ela me chama.
 
Falava com os olhos luzidos, uma satisfação babosa.
 
- Ah, Mendes! acrescentou , é uma rica mulher!
 
- E bonita mulher, disse o coadjutor respeitosamente.
Linha 124 ⟶ 119:
O coadjutor teve um gesto afirmativo.
 
- A S. Joaneira é uma pessoa de bem! olhe que é uma pessoa de bem, Mendes! exclamava o cônego batendo no chão fortemente com a ponteira do guarda. sol .
 
- As línguas do mundo são venenosas, senhor cônego, disse o coadjutor com uma voz chorosa. E depois dum silêncio, acrescentou baixo: - Mas aquilo a vossa senhoria deve-lhe sair caro!
Linha 130 ⟶ 125:
- Pois aí está, meu amigo! Imagine você que desde que o secretário-geral se foi embora a pobre da mulher tem tido a casa vazia: eu é que tenho dado para a panela, Mendes!
 
- Que ela tem uma fazendita , considerou o coadjutor.
 
- Uma ''nesga'' de terra, meu rico senhor, uma nesga de terra! E depois as décimas, os jornais! Por isso digo eu, o pároco é uma mina. Com os seis tostões que ele der, com que eu ajudar, com alguma coisa que ela tire da hortaliça que vende da fazenda, já se governa. E para mim é um alívio, Mendes.
Linha 144 ⟶ 139:
O cônego bocejou, e fazendo uma cruz sobre o bocejo:
 
- Vamo-nos chegando às Ave-Marias, hem ?
 
Quando, daí a pouco, iam subindo as escadarias da Sé, o cônego parou, e voltando-se para o coadjutor: