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|obra=Último Capítulo
|autor=Machado de Assis
|notas=Originalmente publicado em ''[[w:Gazeta de Notícias|Gazeta de Notícias]]'' no ano de 1883 e posteriormente recompilado em ''[[Histórias sem data]]''
}}
Há entre os suicidas um excelente costume, que é não deixar a vida sem dizer o motivo e as circunstâncias que os armam contra ela. Os que se vão calados, raramente é por orgulho; na maior parte dos casos ou não têm tempo, ou não sabem escrever. Costume excelente: em primeiro lugar, é um ato de [[wikt:cortesia|cortesia]], não sendo este mundo um baile, de onde um homem possa esgueirar-se antes do [[wikt:cotilhão|cotilhão]]; em segundo lugar, a imprensa recolhe e divulga os bilhetes póstumos, e o morto vive ainda um dia ou dois, às vezes uma semana mais.
 
Pois apesar da [[wikt:excelência|excelência]] do costume, era meu propósito sair calado. A razão é que, tendo sido [[wikt:caipora|caipora]] em minha vida toda, temia que qualquer palavra última pudesse levar-me alguma complicação à eternidade. Mas um incidente de há pouco trocou-me o plano, e retiro-me deixando, não só um escrito, mas dois. O primeiro é o meu testamento, que acabo de compor e fechar, e está aqui em cima da mesa, ao pé da pistola carregada. O segundo é este resumo de autobiografia. E note-se que não dou o segundo escrito senão porque é preciso esclarecer o primeiro, que pareceria absurdo ou ininteligível, sem algum comentário. Disponho ali que, vendidos os meus poucos livros, roupa de uso e um [[wikt:casebre|casebre]] que possuo em [[w:Catumbi (bairro do Rio de Janeiro)|Catumbi]], alugado a um carpinteiro, seja o produto empregado em sapatos e botas novas, que se distribuirão por um modo indicado, e confesso que extraordinário. Não explicada a razão de um tal [[wikt:legado|legado]], arrisco a validade do testamento. Ora, a razão do legado brotou do incidente de há pouco, e o incidente liga-se à minha vida inteira.
 
Chamo-me Matias Deodato de Castro e Melo, filho do [[wikt:sargento-mor|sargento-mor]] Salvador Deodato de Castro e Melo e de D. Maria da Soledade Pereira, ambos falecidos. Sou natural de [[w:Corumbá|Corumbá]], [[w:Mato Grosso|Mato Grosso]]; nasci em 3 de março de 1820; tenho, portanto, cinqüentacinquenta e um anos, hoje, 3 de março de 1871.
 
Repito, sou um grande caipora, o mais caipora de todos os homens. Há uma locução proverbial, que eu literalmente realizei. Era em Corumbá; tinha sete para oito anos, embalava-me na rede, à hora da [[wikt:sesta|sesta]], em um quartinho de telha [[wikt:vã|]]; a rede, ou por estar frouxa a argola, ou por impulso demasiado violento da minha parte, desprendeu-se de uma das paredes, e deu comigo no chão. Caí de costas; mas, assim mesmo de costas, quebrei o nariz, porque um pedaço de telha, mal seguro, que só esperava ocasião de vir abaixo, aproveitou a [[wikt:comoção|comoção]] e caiu também. O ferimento não foi grave nem longo; tanto que meu pai [[wikt:caçoou|caçoou]] muito comigo. O [[wikt:cônego|cônego]] Brito, de tarde, ao ir tomar [[wikt:guaraná|guaraná]] conosco, soube do episódio e citou o [[wikt:rifão|rifão]], dizendo que era eu o primeiro que cumpria exatamente este absurdo de cair de costas e quebrar o nariz. Nem um nem outro imaginava que o caso era um simples início de coisas futuras.
 
Não me demoro em outros [[wikt:reveses|reveses]] da infância e da juventude. Quero morrer ao meio-dia, e passa de onze horas. Além disso, mandei fora o rapaz que me serve, e ele pode vir mais cedo, e interromper-me a execução do projeto mortal. Tivesse eu tempo, e contaria pelo miúdo alguns episódios doloridos, entre eles, o de umas cacetadas que apanhei por engano. Tratava-se do rival de um amigo meu, rival de amores e naturalmente rival derrubado. O meu amigo e a dama indignaram-se com as pancadas quando souberam da [[wikt:aleivosia|aleivosia]] do outro; mas aplaudiram secretamente a ilusão. Também não falo de alguns [[wikt:achaques|achaques]] que padeci. Corro ao ponto em que meu pai, tendo sido pobre toda a vida, morreu [[wikt:pobríssimo|pobríssimo]], e minha mãe não lhe sobreviveu dois meses. O cônego Brito, que acabava de sair eleito [[wikt:deputado|deputado]], propôs então trazer-me ao [[w:Rio de Janeiro|Rio de Janeiro]], e veio comigo, com a idéiaideia de fazer-me padre; mas cinco dias depois de chegar morreu. Vão vendo a ação constante do caiporismo.
 
Fiquei só, sem amigos, nem recursos, com dezesseis anos de idade. Um cônego da [[w:Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo|Capela Imperial]] lembrou-se de fazer-me entrar ali de [[wikt:sacristão|sacristão]]; mas, posto que tivesse ajudado muita missa em Mato Grosso, e possuísse algumas letras latinas, não fui admitido, por falta de vaga. Outras pessoas induziram-me então a estudar direito, e confesso que aceitei com [[wikt:resolução|resolução]]. Tive até alguns auxílios, a princípio; faltando-me eles depois, lutei por mim mesmo; enfim alcancei a carta de [[wikt:bacharel|bacharel]]. Não me digam que isto foi uma exceção na minha vida caipora, porque o diploma acadêmico levou-me justamente a coisas [[wikt:mui|mui]] graves; mas, como o destino tinha de flagelar-me, qualquer que fosse a minha profissão, não atribuo nenhum [[wikt:influxo|influxo]] especial ao grau jurídico. Obtive-o com muito prazer, isso é verdade; a idade moça, e uma certa superstição de melhora, faziam-me do pergaminho uma chave de diamante que iria abrir todas as portas da [[wikt:fortuna|fortuna]].
 
E, para principiar, a carta de bacharel não me encheu sozinha as [[wikt:algibeiras|algibeiras]]. Não, senhor; tinha ao lado dela umas outras, dez ou quinze, fruto de um namoro travado no Rio de Janeiro, pela [[w:Semana Santa|semana santa]] de 1842, com uma viúva mais velha do que eu sete ou oito anos, mas ardente, [[wikt:lépida|lépida]] e [[wikt:abastada|abastada]]. Morava com um irmão cego, na rua do Conde; não posso dar outras indicações. Nenhum dos meus amigos ignorava este namoro; dois deles até liam as cartas, que eu lhes mostrava, com o pretexto de admirar o estilo elegante da viúva, mas realmente para que vissem as finas coisas que ela me dizia. Na opinião de todos, o nosso casamento era certo, mais que certo; a viúva não esperava senão que eu concluísse os estudos. Um desses amigos, quando eu voltei graduado, deu-me os parabéns, acentuando a sua convicção com esta frase definitiva:
 
— O teu casamento é um [[wikt:dogma|dogma]].
 
E, rindo, perguntou-me se por conta do dogma, poderia arranjar-lhe cinqüenta[[w:Réis|cinquenta mil-réis]]; era para uma urgente [[wikt:precisão|precisão]]. Não tinha comigo os cinqüentacinquenta mil-réis; mas o dogma repercutia ainda tão docemente no meu coração, que não descansei em todo esse dia, até arranjar-lhos; fui levá-los eu mesmo, entusiasmado; ele recebeu-os cheio de gratidão. Seis meses depois foi ele quem casou com a viúva.
 
Não digo tudo o que então padeci; digo só que o meu primeiro impulso foi dar um tiro em ambos; e, mentalmente, cheguei a fazê-lo; cheguei a vê-los, moribundos, arquejantes, pedirem-me perdão. Vingança hipotética; na realidade, não fiz nada. Eles casaram-se, e foram ver do alto da [[w:Tijuca|Tijuca]] a ascensão da [[wikt:lua de mel|lua de mel]]. Eu fiquei relendo as cartas da viúva. "Deus, que me ouve (dizia uma delas), sabe que o meu amor é eterno, e que eu sou tua, eternamente tua..." E, no meu atordoamento, blasfemava comigo: — Deus é um grande invejoso; não quer outra eternidade ao pé dele, e por isso desmentiu a viúva; — nem outro dogma além do católico, e por isso desmentiu o meu amigo. Era assim que eu explicava a perda da namorada e dos cinqüentacinquenta mil-réis.
 
Deixei a capital, e fui [[wikt:advogar|advogar]] na roça, mas por pouco tempo. O caiporismo foi comigo, na [[wikt:garupa|garupa]] do burro, e onde eu me [[wikt:apeei|apeei]], apeou-se ele também. Vi-lhe o dedo em tudo, nas demandas que não vinham, nas que vinham e valiam pouco ou nada, e nas que, valendo alguma coisa, eram invariavelmente perdidas. Além de que os constituintes vencedores são em geral mais gratos que os outros, a sucessão de derrotas foi arredando de mim os demandistas. No fim de algum tempo, ano e meio, voltei à Corte, e estabeleci-me com um antigo companheiro de ano: o Gonçalves.
 
Este Gonçalves era o espírito menos jurídico, menos apto para entestar com as questões de direito. Verdadeiramente era um pulha. Comparemos a vida mental a uma casa elegante; o Gonçalves não aturava dez minutos a conversa do salão, esgueirava-se, descia à copa e ia palestrar com os criados. Mas compensava essa qualidade inferior com certa lucidez, com a presteza de compreensão nos assuntos menos árduos ou menos complexos, com a facilidade de expor, e, o que não era pouco para um pobre diabo batido da fortuna, com uma alegria quase sem intermitências. Nos primeiros tempos, como as demandas não vinham, matávamos as horas com excelente palestra, animada e viva, em que a melhor parte era dele, ou falássemos de política, ou de mulheres, assunto que lhe era muito particular.