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#REDIRECIONAMENTO [[Til/III/XII]]
{{navegar
|obra=[[Til]]
|autor=José de Alencar
|seção=Segundo Volume, Capítulo XII: A cotia
|anterior=[[Til/II/XI|Segundo Volume: Capítulo XI]]
|posterior=[[Til/II/XIII|Segundo Volume: Capítulo XIII]]
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Percebendo que a fadiga abatia as forças de Brás, suspendeu Berta a lição.
 
Descanse agora!
 
Ajoelhado como estava, deixou-se Brás cair sentado sobre os calcanhares; de corpo bambo, os braços pendurados, e o queixo caído, quedou-se o estafermo em pasmatório, com os olhos dormidos no gentil semblante de Berta.
 
Ocupada com sua tarefa, já não lhe dava atenção a menina, cujo pensamento andava agora enleado em outras cismas.
 
Nisso apareceu Miguel, que voltava afinal, e, procurando Inhá pela casa, veio a sair na porta do oitão.
 
— Sempre chegou?... disse Berta a rir.
 
— Não faço falta, respondeu Miguel com um motejo tristonho.
 
— Mecê está hoje tão macambúzio, nhô Miguel! replicou a menina galhofando com a intenção de desanuviar o semblante do moço.
 
— Nem sempre faz bom tempo! Às vezes amanhece a gente com uma cara, que mete medo aos outros, e os obriga a se esconderem! Não é assim?
 
Com a alusão de Miguel atalhou-se Inhá, enrubescendo de leve, pois logo acudiu-lhe a sua graciosa petulância:
 
— Ora que caçador!... exclamou a rir. Não deu com a pista!...
 
— Não quis, e para não agoniá-la.
 
— A mim?
 
— Cuida então que eu não percebi desde muito tempo? Quando você vai ver a Zana, não gosta que ninguém a acompanhe!
 
— Ah! descobriu isso? Está muito adiantado! Berta com um modo agastado e concentrando-se em sua tarefa.
 
— Zangou-se?
 
— Eu não ando espiando o que os outros fazem!
 
— Não faça caso do que eu disse, Inhá! Desculpe!... tornou Miguel enleado e aflito.
 
Berta, de todo absorta no conserto da roupa, parecia ter esquecido a presença do colaço, o qual a contemplava com um enlevo apaixonado, que rompia dentre a expressão abatida de sua figura. Pesaroso por ter ofendido a menina e acanhado com a presença dela, queria falar, e não achava a palavra para desvanecer o enfado, que havia causado.
 
Brás, que desde a chegada de Miguel se agachara sobre as patas como um cão de fila, rosnava surdamente, saltando com o olhar do semblante de Berta ao vulto de Miguel, como se esperasse um gesto da senhora para filar a presa e abocanhá-la.
 
Os agastamentos de Berta eram cóleras do colibri, que tão depressa belisca e arrufa-se, como cintila aos raios do sol, feito um rubi celeste.
 
A cabeça inclinada sobre a costura ocultava-lhe o rosto que Miguel supunha fechado ainda pela zanga, quando já dos cantinhos da boca lhe estava borbulhando um sorriso zombeteiro que lhe salpicava as faces de petulante malícia.
 
Relanceando uma olhadelha de soslaio, percebeu o pesar de Miguel e arrependeu-se de se haver agastado com ele; mas conteve-se para fazer-lhe pirraça e gozar por algum tempo ainda do enleio do moço.
 
Desde alguns instantes ouviam-se uns guinchozinhos, como de preá, mas abafados; e apesar da curiosidade de saber donde partiam, a menina não levantava a cabeça.
 
— Aqui está o que lhe trouxe, Inhá, animou-se a dizer Miguel tristemente.
 
Metendo a mão por baixo do pala, tirou uma linda cotia, que tinha as patas amarradas para não fugir.
 
Berta apenas erguera um canto da pálpebra; mas foi o bastante. De relance pulou junto de Miguel, arrebatou-lhe a cotia, e conchegando-a ao seio, começou a alisar-lhe a pelúcia dourada, animando-a com os dengosos requebros e a garrulice carinhosa em que se expande a inexaurível sensibilidade da mulher por tudo que é frágil, mimoso e delicado como ela.
 
Passado o primeiro afago, a travessa repartiu com Miguel as meiguices, não só por gratidão do mimo que lhe dera, como para mostrar que já mão conservava a menor queixa dele.
 
— Coitadinha! exclamou ao ver que o animal estava com as patas ligadas por uma fita de crautá.
 
— Olhe que foge! disse Miguel impedindo a menina de desdar o laço.
 
— Então você há de fazer uma casinha para ela! Tão bonitinha! Que pelo macio; parece um veludo. E os olhos? Tão lindos! Eu conheço uns olhos ternos assim! Não se lembra?
 
— Se me lembro! atalhou Miguel com um tremor na voz. Pois não os estou vendo?
 
Com sua volubilidade natural, já estava Berta longe da pergunta que fizera, e, toda embebida de novo com a cotia, sentara-se para agasalhá-la ao colo.
 
— Onde apanhou?
 
Teve Miguel de referir então a longa história de como fora o animal apanhando, os incidentes que tinham acompanhado a caçada, e muitas particularidades que Inhá desejava saber; se a linda cotia ainda tinha mãe; se já era casada, e deixara no mato algum filhinho; pois nesse caso queria soltá-la.
 
Tranqüilizou-a Miguel, asseverando que a cotia era solteirinha e vivia só, por terem as raposas acabado toda a família, não tardando que lhe fizessem o mesmo a ela, pelo que era até um benefício retê-la cativa.
 
— Ai, coitadinha! exclamou Berta condoída, e conchegando outra vez o animalzinho ao seio. Veja lá, Miguel, você há de fazer a casinha para ela, com porta e janela, e também um coche com seu bebedouro. E depressa que é para eu dar a Linda!...
 
Ao mesmo tempo voltava Miguel o rosto para esconder a expressão de pesar que o tinha subitamente invadido, um grito de espanto partia dos lábios de Berta.
 
Rápida como uma seta, a cotia fuzilou no ar e sumiu-se pelo mato. O Brás de quem os dois se haviam esquecido, se aproximava rojando pelo chão como um réptil, e sem que o percebessem, acocorado junto à parede, gorgotava um riso sarcástico e manhoso.
 
Precipitou-se Miguel para castigar o idiota, que ele adivinhava ser o autor da pirraça, mas Berta, que lhe viu o ímpeto, se interpôs a tempo.
 
— Deixe, Miguel! exclamou ela; e voltando-se para o alarve, atirou-lhe apenas esta palavra:
 
— Lesma!
 
Como um novilho ferido pelo aguilhão, o idiota arremeteu pelo campo e desapareceu.
 
— Se você não fizesse tão pouco caso do que eu lhe dei, aquele brutinho não se havia de atrever.
 
— Oh! Miguel, pois queria mais?
 
— Dando aos outros em vez de guardar para si?
 
— Mas era para Linda! atalhou Berta com ingenuidade. Ela havia de ficar tão contente, sabendo que vinha de você!
 
Concentrou-se Miguel em um violento esforço, que lhe desmaiou o brilho dos grandes olhos e a cor das faces.
 
É tempo de acabar com este gracejo, Inhá. Além de minha mãe, eu lhe juro, que só a você quero bem; mas você não se importa comigo; portanto já sei o que devo fazer. Não hei de aborrecê-la mais.
 
[[Categoria:Til|Primeiro Volume, Capítulo 27]]