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#REDIRECIONAMENTO [[Til/III/XIII]]
{{navegar
|obra=[[Til]]
|autor=José de Alencar
|seção=Segundo Volume, Capítulo XIII: A bolsa
|anterior=[[Til/II/XII|Segundo Volume: Capítulo XII]]
|posterior=[[Til/II/XIV|Segundo Volume: Capítulo XIV]]
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Naquela manhã Jão Fera saíra das brenhas, onde se acoitava, à mesma hora em que Berta chegava à tapera para ver Zana.
 
Vinha o capanga sombrio e torvo mais que de ordinário, porém sobretudo absorto em funda cogitação, e tão alheio de si, que não se apercebia do lugar por onde passava, nem dos objetos que o cercavam.
 
Devia ser poderosa a preocupação que assim o demovia da habitual desconfiança, bem como das precauções, indispensáveis na sua condição de foragido e reclamadas pela perseguição de que era alvo.
 
Assim não ouviu ele um ruído subterrâneo que ressoou-lhe embaixo dos pés; ou, se ouviu, não fez reparo, atribuindo a algum animal, que estivesse a abrir a toca.
 
Era o Brás, o qual antes de aproximar-se da tapera, onde encontrara Berta, ali andava cavando com a pá, achada no esqueleto de um burro, a terra que tirava com as mãos e o chapéu.
 
Havia nesse lugar uma pequena estiva, feita sobre um socavão pelos antigos moradores do sítio, para serventia da roça. Com a ruína da casa, desapareceram as plantações, e do caminho só restava aquele carreiro e o aterro que aí tinham posto.
 
Aproveitando-se da configuração do terreno, gizara Brás com instinto perverso aluir as ribanceiras do grotão, para que faltando apoio às extremidades da estiva, um dia abatesse ela com o peso de Jão Fera, que rolaria pelo barranco abaixo.
 
Entretanto prosseguia lentamente Jão Fera seu caminho; senão que ao passar perto da tapera, e como subitamente arrancado aos pensamentos que o tomavam, manifestou seu gesto, à vista da casa em ruínas, uma espécie de terror e espanto, que o fez acelerar o passo e afastar-se quase em fuga.
 
Sabia o capanga que àquela hora costumava Berta aparecer na tapera onde tantas vezes a tinha encontrado, e era dela que fugia, dela a quem não se animara a rever desde a cena da azinhaga no dia da tocaia.
 
Quando três dias antes partira espavorido daquele sítio ao ver o relicário de que Berta lhe oferecera o cordão de ouro, correra por algum tempo sem inconsciência de si, mas acossado por uma lembrança que o pungia, como o aguilhão da mutuca no lombo do tapir.
 
Recobrada a calma, achou-se à borda da estrada, que em sua carreira por dentro do mato ele perlongara sem o sentir. Soava perto um tropel de animais, e Luís Galvão apareceu na volta do caminho. Seguido pela batida na orla da estrada, o animal ia passar rente com o capanga, oculto pela cepa de uma gameleira.
 
Foi um momento de colisão para Jão Fera. Aí estava ao alcance do braço, à sua mercê de um movimento seu o cumprimento de sua palavra, que ele não podia doutro modo libertar. Mas o olhar cintilante de Berta e o gesto de seu desprezo se debuxavam ainda ao pensamento do facínora como um anátema.
 
Luís Galvão passou incólume; e Jão Fera encaminhou-se à venda do Tinguá.
 
Esperava-o aí o Barroso, que mal avistou-o no terreiro do rancho, logo saiu-lhe ao encontro, impaciente de receber a nova.
 
— Arrependi-me! disse-lhe o capanga secamente e com um olhar de chumbo.
 
— Hein!... exclamou o outro azoado com a palavra.
 
— Não se faz nada.
 
— Por que?
 
Podia o capanga arranjar uma desculpa; mas repugnava-lhe a mentira.
 
— Não quis! respondeu lacônico.
 
— Está galante a embroma! rascou o Barroso com rinchavelho de cólera. E vem dizer-me isto com toda a frescura! Mas a culpa tenho eu em fiar-me num tratante da sua laia.
 
A última palavra não a acabou de proferir, que dum revés da mão o capanga o lançou chão, calcando-lhe a alpercata ao peito. Viu ele descer ameaçadora a coronha do bacamarte e fechou os olhos. O bugre ia esmigalhar-lhe a cabeça, como se faz com um réptil.
 
— O que te vale é estar eu em dívida contigo. Mas São João não tarda; e até esse dia duma ou doutra forma hei de desempenhar minha palavra. Então ajustaremos minha palavra. Então ajustaremos esta conta.
 
Afastando de si o corpo do miserável com a ponta do pé, entrou na venda para beber um martelinho de cachaça. Debalde o Chico Tinguá quis tirar conversa; o taciturno capanga, na introversão d’alma, nem se apercebia da presença do amigo.
 
Onde e como obter a soma necessária para resgatar sua palavra, ele que só conhecia um meio de ganhar dinheiro, e nunca tivera outra profissão a não ser a de matador?
 
Sem aquela quantia, como livrar-se do empenho que tomara, senão dando conta da tarefa, e incorrendo portanto no desprezo e aversão de Berta, que jamais lhe perdoaria?
 
Eis a ânsia em que se debatia a alma de Jão Fera.
 
Após longa obsessão, ergueu-se impelido por uma idéia, que de repente acudira, e sem despedir-se partiu. Saído ao terreiro, no lugar onde há pouco se encontrara com Barroso, seus olhos baixos deram com um objeto, que lhe causou reparo. Era uma bolsa de couro, e parecia recheada de moedas.
 
— Oh! Chico!
 
Acudindo o vendeiro, Jão empurrou com a coronha do bacamarte a bolsa:
 
— Guarda isto para entregar àquele safado!
 
Não tinha andado cem braças o capanga, quando ouviu os psius do Tinguá a chamá-lo. Era o caso que sentindo o Barroso falta da bolsa, voltara por ela, justamente quando o vendeiro entrava para guardá-la; e, sabendo que a achara o capanga, deixou-lhe uma moeda de alvíssaras, talvez com a esperança de aplacá-lo. Para entregar essa gorjeta correra o Chico ao alcance de Jão.
 
— Toma para ti. Eu não aceito dinheiro de semelhante peste.
 
E sem mais foi-se.
 
Pouco além, ganhando um atalho para desviar-se da estrada, lobrigou ao longe um vulto entre a folhagem.
 
Era um mascate, dos muitos que percorrem a pé os circuitos das cidades do interior, onde se demoram semanas a vender pelas fazendas e arraiais.
 
Descansavam, à sombra de uma árvore, da excursão que já tinha feito naquela manhã, e da qual lhe surtira bom lucro, pois estava ele entretido em contar os miúdos, que tirava da algibeira da borjaca. Colocando-os, uns sobre outros, formava os maços de dez, aos quais ia acomodando em uma grande carteira de marroquim azul, aberta diante dele sobre a grama e já bem fornida de notas.
 
Ao lado, estava a maleta de jóias e miudezas, que ele costumava trazer às costas, presa por uma correia, e um grosso bordão ferrado, que servia ao seu braço musculoso não só de arrimo à fadiga, mas de arma formidável para a defesa.
 
Muito embebido estava o italiano em seus cálculos, pois não percebera a aproximação de Jão Fera, que em pé atrás do tronco, e a dois passos dele, o tinha em seu poder.
 
[[Categoria:Til|Primeiro Volume, Capítulo 28]]