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|autor=José de Alencar
|seção=Primeiro Volume, Capítulo XXII: O trato
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O tal Gonçalo era um valentão; e tinha-se na conta do mais façanhudo espoleta de toda aquela redondeza.
 
Não acreditava, porém, a gente do lugar nas proezas de arromba que blasonava o pábulo, nem tomava ao sério as roncas e bravatas com que andava sempre a azoinar aos mais.
 
Para dar à sua peça um tom ameaçador e ao mesmo tempo disfarçar o senão do rosto, engendrara o Gonçalo sagazmente o apelido de Suçuarana, que a todo instante atirava à barba dos outros, mostrando as pampas da cara.
 
Mas à exceção dele, ou de algum súcio que lhe filava a pinga, ninguém o chamava pelo tal apelido senão pela alcunha de Pinta, que lhe tinham posto para o distinguir de outro Gonçalo carafuz, também morador no lugar.
 
Não aturava, porém, o valentão esse desaforo; e disparatava com quem o tratasse pela alcunha. Para não se meter em rixas, evitava a gente de o chamar daquele modo na presença, ainda que muitas vezes pelo costume lá escapava a palavra; mas o Gonçalo fingia não ouvir. Também, segundo contavam, já por vezes lhe tinham chimpado com o Pinta de propósito e mesmo na bochecha, sem que ele respingasse.
 
Todavia o que mais amofinava o Gonçalo era a fama de Jão Fera, de quem invejava não só a força e valentia, como o apelido, que lhe granjeara sua malvadeza, o terror que inspirava aquele nome, e até as mortes de que acusavam o outro, eram para ele façanhas de estrondo.
 
Chegava o zelo do valentão a ponto de consumir-se quando ouvia mencionar o Bugre como o maior criminoso de toda a província de São Paulo. Muitas vezes em seu despeito encavacou seriamente; e andava pelas vendas e ranchos com a canseira de provar que ele, Gonçalo Suçuarana, merecia cem vezes mais a forca do que Jão; pois as perversidades cometidas por este eram travessuras de criança comparadas com os seus espalhafatos.
 
O subdelegado sabia disso e fazia como o juiz de paz, a quem a lei o substituíra. Deixava bem descansado de seu o Gonçalo Pinta, que assim podia a salvo gabar-se de ser um fama sem segundo na arte de matar gente.
 
Todavia enquanto vivesse Jão Fera, sabia o valentão que o nome deste havia sempre de ser o mais falado e temido de toda aquela redondeza, e por isso o tinha em grande ojeriza, apesar do serviço, que lhe prestara o Bugre, havia anos, livrando-o de um recruta que o levava preso.
 
Já ele teria dado cabo do rival, se pudesse, mas como não se atrevesse a atacá-lo de frente, espreitava ocasião de atirar-lhe o bote certeiro, e desde muito rondava disfarçadamente pela venda do Chico Tinguá, que suspeitavam de ser o inculca e espia do capanga foragido.
 
Tais eram as disposições do Gonçalo quando chamou o Filipe para dizer-lhe em particular:
 
— O patrício quer mesmo pilhar o Jão Fera? perguntou ele.
 
— Mas decerto, homem!
 
— E não sabe onde ele se encafua?
 
— Que esperança! Pois ainda estava aqui?
 
— E se eu lhe ensinasse a toca do bicho?
 
— Abra o preço, amigo.
 
— Duzentos bicos?
 
— Topado.
 
— Mas há de ser com um ajuste...
 
— Diga lá.
 
— Isto fica entre nós dois só. Negócio de muitos não serve.
 
— É assim mesmo.
 
— Pois então moita. Toca pra dentro, antes que os camaradas aventem. Olhe que o Tinguá é ressabiado, hein! Vá andando por aí afora. Passando este morro, atrás do outro, há um rancho. Eu já me boto pra lá. É só enquanto avio aqui outro negocinho.
 
Este curto diálogo travara-se no canto da casa, junto da cerca, onde havia um grosso toco de árvore, denegrido pelo fogo da coivara que ali passara outrora. Ainda quando menos os preocupasse o assunto, dificilmente distinguiria qualquer dos interlocutores, ali a dois passos dele, o vulto decrépito de um negro, arrimado a uma brecha da cepa carcomida com a qual se confundia, como o escorço de uma sapopema.
 
Seguiu Filipe o aviso de Gonçalo, e, pagando a despesa à Nhanica, mulher do Tinguá, que fazia no balcão as vezes do marido na ausência dele, pôs-se a caminho com os companheiros.
 
Partiam eles por um lado, que do oposto avistava-se um cavaleiro a galope. Era o Barroso que descambando o outeiro, na rápida guinilha do castanho, veio parar à porta da venda.
 
— Já está por cá? perguntou o Gonçalo que o esperava no terreiro.
 
— Ora! O milho que a mula comeu quando cheguei, já teve tempo de gralar! tornou o Gonçalo rindo-se da sua pilhéria.
 
— Pois bom proveito lhe faça a roça!
 
Retorquindo assim ao Pinta, dirigiu-se o Barroso à vendeira:
 
— Quedê este homem?
 
— Ele não está, nhor, não!
 
— Onde foi?
 
— Na vila, nhor, sim.
 
— Quando volta?
 
— Volta logo.
 
— O diabo o leve e mais quem o ature.
 
Saiu o Barroso da venda fumando e a respingar contra o Chico Tinguá que lhe havia pregado um famoso logro; qual fosse, não o dizia ele; mas despicava-se em ferrar o dente no pobre do vendeiro.
 
— Que lhe fez cá o homem? inquiriu Gonçalo.
 
— É um refinado tratante, ele e mais o tranca do Jão Bugre.
 
— O patrão também tem negócio com esse danado? disse Gonçalo.
 
— Pois o negócio era com ele; mas o patife não ata nem desata; e já a coisa me cheira a caçoada.
 
— Que quer? O senhor foi se meter com ele: não tinha que ver!
 
— Então não é o que dizem?
 
— Qual! Gabolice tudo! Não deixava de ser valente. Lá isso é verdade. Mas onde vê, já o encostei, e só com este braço. Não é debalde que me chamam de suçuarana!
 
— Com tanto que me avie o diabo depressa.
 
— Não custa. É só falar; o mais fica por minha conta. Eu cá não sou lerdo como o Bugre. Ainda bem o ajuste não está feito, que eu já ando com a obra em meio.
 
— Pois vamos acabar com isto de uma vez.
 
Cavalgaram os dois de novo e seguiram pela estrada na mesma direção que havia tomado pouco antes o Filipe e sua troça.
 
Neste momento o casco da cabeça do negro, lisa como um quengo, surdia por cima da velha cepa queimada, e dois olhos que pareciam carbúnculos, se alongaram pelo caminho além.
 
— Eh! Branco mesmo!... resmungou uma voz trôpega.
 
[[Categoria:Til|Primeiro Volume, Capítulo 22]]