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|obra=[[Til]]
|autor=José de Alencar
|seção=Primeiro Volume, Capítulo XXIV: A lição
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Àquela hora da manhã, projetava a casa larga sombra para o oitão voltado ao poente.
 
Nessa fresca penumbra, que recatava da estrada uma cerca de estacas de cambuís já enramadas, acomodou-se Berta para passar a sesta, que se aproximava. Daí avistava-se por uma ogiva rendada que abria a folhagem em arabescos, o caudal Piracicaba, adormecido no regaço da campina.
 
Sentara-se a menina em um pedaço de alto pranchão, que aí tinham colocado para servir de banco; e suas mãos sutis e ligeiras tomavam o ponto às meias, ou serziam e remendavam a outra roupa lavada, que precisava de conserto e enchia o balaio posto a seu lado na ponta do tabuão.
 
Adiantando a sua tarefa diária, que pelo hábito já os dedos ágeis faziam às cegas e com uma presteza admirável, escutava com atenção ao Brás, ajoelhado ao outro lado do balaio, na esteira de tábua, que servia de tapete, ou antes de tabuleiro para a roupa já consertada, a fim de não misturar-se com a outra da cesta.
 
Com as mãos postas, e um modo sério, repetia o rapaz de cor a Salve-Rainha, sem titubear. Dir-se-ia que estava lendo no formoso semblante de Berta por mágica influição aquelas palavras ignotas, tal era a fixidez da pupila e a absorção de sua alma no hausto desse olhar.
 
Era sem dúvida a primeira vez que o Brás dizia certa a oração, pois no gesto da menina, onde vislumbrara uma vaga inquietação, derramou-se grande contentamento pelo triunfo obtido sobre a fatalidade que encadeava aquele espírito bronco.
 
— Assim, Brás! disse a gentil mestra desfolhando-se, como uma bonina, em ledos sorrisos.
 
— Til contente? perguntou timidamente o rapaz, com certa brandura de voz, que desvanecia o tom brusco e explosivo.
 
— Muito!...
 
E a menina cingiu com o braço esquerdo a cabeça do rapaz e a estreitou ao seio com efusão. O sentimento de bem- aventurança que difundiu-se pela fisionomia do idiota; o êxtase de felicidade, no qual se embeberam suas feições, sempre transtornadas pela imbecilidade, e agora consertadas por um plácido sopitamento; essa elação ao toque da meiga carícia, não há traços para esboçar.
 
A transição súbita de um informe toro em estátua acabada, somente pode dar uma idéia da transfiguração, que um supremo gozo havia operado nessa infeliz criatura, cujo vulto descomposto e mal-amanhado negava muitas vezes a forma humana.
 
Esteve Berta a espiar-lhe por entre os revoltos cabelos essa expressão inefável de rosto que ela conservava unido ao seio; e de seus olhos um tanto amortecidos e brandos naquele instante, manava uma ternura santa e imensa, na qual ressumbravam extremos da maternidade.
 
— Agora a Ave-Maria! disse Berta afastando a cabeça do rapaz, e tornando à anterior posição.
 
Arrancando ao enlevo, como um galho decepado que rola ao chão, ou como a lasca do penedo que se alteava no píncaro do alcantil e vai sumir-se no abismo, sentiu o idiota romper-se-lhe o coração e estalar com dores cruas e dilacerantes. Era a alma arremessada do céu ao báratro.
 
Foi muda porém essa angústia, que afundou-se pelo íntimo, nos recessos insondáveis dessa consciência vedada ao mundo; e não reçumou um ai dos lábios nem lentejou uma lágrima as pálpebras. Os bolhões, que por ventura levantou lá nos mais escusos refolhos, como a rocha tombando nos pegos e tremedais, só os denunciou a crispação pungente das feições.
 
Reparando naquele espasmo doloroso, quase arrependeu-se Berta de haver quebrado ao pobre idiota o encanto em que o tinha. Mas o seu carinho, ameigado, não embotava contudo as energias d’alma da mais fina têmpera, que semelhante a lâmina de aço, dobrava-se com a flexibilidade de uma fita de seda, mas também, quando brandida, cravaria o bronze, sendo preciso, como o buído fio de um estilete adamascado.
 
Naquele instante ela era sobretudo mestra; ou mais que mestra, pois não ensinava somente, senão que tirava do caos dessa animalidade confusa e revolta o balbuciar de uma razão sopita. Era quase uma criação a obra sublime, a que se dedicava, de plasmar do mostrengo um ser humano.
 
— Reze!... insistiu Berta com autoridade.
 
Engalfinhou o rapaz outra vez as mãos e começou a recitar com a mesma concentração de espírito a Ave-Maria, passando sucessivamente às orações do catecismo. Terminava a reza uma tenção particular, como se usa em muitas casas, e na qual se implora a proteção divina a favor das pessoas da família, dos entes mais queridos.
 
Chegado a este ponto estacou Brás.
 
— Virgem Puríssima... proferiu a voz insinuante de Berta.
 
Vendo pintar-se no semblante do idiota as vacilações da memória prestes a apagar-se, articulava a menina mudamente as palavras que se desenhavam em seus lábios mimosas e fagueiras, donde o Brás as recebia como imagens a se refletirem no espelho da alma.
 
— Virgem Puríssima, Rainha do Céu, Bem-aventurança nossa, Mãe de Jesus e dos aflitos, intercedei...
 
Aqui fez o menino uma reticência, e fechando um instante os olhos para não ver o rosto gentil da moça que servia de página àquela súplica singela, terminou abrupto por um modo teimoso e rebelde:
 
— Intercedei por Til, só, só, só, só!... Til muito feliz! Til muito bonita, muito tudo!...
 
Ressumbrou aos lábios de Berta um meigo sorriso, que ela escondeu sob um gesto severo:
 
— Diga direito!
 
— Ele ruim... ela ruim!... Morde nele... nos outros... Bem eu?... tu só!
 
— Há de querer bem a todos, Brás, que eu mando!
 
A expressão de rancor, derramada na feição do rapaz, sublevou-se em assomos de fúria selvagem. Parecia que desse bolônio informe e labrusco surgira por estranha mutação uma vípera terrível, que um instante subjugada pela fascinação, silvava de raiva e assanhava-se contra o encanto que a entorpecera.
 
Erguera, porém, Berta a mão direita, e com o indicador fez ao rebelde um gesto de ameaça, estendendo a unha rosada quase a cravá-la no meio do sobrolho espesso do idiota.
 
— Diga, senão...
 
O confrangimento de uma vasca estampou-se na figura do infeliz; mas apesar, os dentes rangiam-lhe de cólera.
 
— Não sou mais Til! disse a menina lentamente.
 
Caiu-lhe então aos pés, outra vez humilde e cativo, rojando como um verme, o mísero idiota, de cujo corpo rompia em arquejos e contorções o pranto, que não sabia exprimir como os homens em lágrimas e lamentos.
 
Acalentou-o Berta, amimando-lhe as faces, e depois que o viu calmo, trouxe-o de novo à reza e o fez recitar a prece interrompida.
 
"- Virgem Puríssima, Rainha do Céu, Bem-aventurança nossa, Mãe de Jesus e dos aflitos, intercedei por meu tio, minha tia e meus primos; por mim, por Berta e aqueles a quem ela quer bem, e fazei-nos a todos felizes."
 
— Vamos à lição! Disse Berta.
 
Repetiu então o Brás de cor o abecedário e uma parte da carta de sílabas e nomes.
 
[[Categoria:Til|Primeiro Volume, Capítulo 24]]