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Eram iniciais de nomes, que ela tinha no coração ou na memória; e naquele momento de cisma lhe acudiam de envolta com as recordações de sua modesta existência, à qual estavam entrelaçadas.
 
De instante a instante, voltava o rosto para observar Zana, que, já completamente alheia e despercebidadesapercebida de sua presença, continuava a menear a cabeça com a mesma incompreensível surdina; ou arrancava da taipa um torrão de barro, que mastigava com avidez.
 
Nessas ocasiões fitava Berta os olhos em uma réstia de sol, que, penetrando pela fresta praticada no alto da parede exterior, cortava obliquamente o aposento com uma faixa de luz. O raio esbatido na taipa do fundo se inclinava gradualmente com a elevação do sol no horizonte, e descia vertical sobre o canto onde se acocorava habitualmente a louca.
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Olhava a menina assustada para o lado de onde viera o rumor, quando na balsa fronteira lobrigou um vulto pardo que resvalava por detrás do tapigo, e cujo ofego sussurrava entre as folhas.
 
Ligeira escondeu-se Berta na cozinha, e por uma fenda que havia no aposento próximo, outrora dispensadespensa, espreitou o circuito. Mas um incidente a distraiu desse propósito, chamando sua atenção para o interior.
 
A réstia de sol, descendo, batera na cabeça de Zana, que se ergueu esfregando os olhos, e aproximou-se do fogão. Agachada em frente ao bueiro, começou a soprar, como se houvesse ali nas grelhas algum brasido coberto pelo borralho; entretanto o tijolo gretado, que servia de lareira, já não conservava nem restos de cinzas.
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Em meio dessa ocupação, de chofre voltou ela a cabeça, aplicando o ouvido, à guisa de quem escuta um chamado, e para acudir arrancou do peito um grito áspero e gutural:
 
— Inhá!...
 
Imediatamente deixou o fogão, depois de porpôr os testos às panelas, e dirigiu-se pelo corredor à sala da frente, donde passou à alcova próxima. Não havia aí ninguém; as paredes esboroavamesbroavam-se; o teto de fasquias de taquara caía aos pedaços, e as tábuas do soalho rangiam sobre os barrotes carcomidos.
 
Zana tinha parado junto à porta, em atitude de escutar outra pessoa, que por venturaporventura ali estivesse a falar-lhe. Os gestos rudes, mas expressivos; os esgares vivos e rápidos, que lhe cambiavam a móbil fisionomia, indício eram das impressões encontradas que abalavam esse espírito embotado.
 
Seguira Berta com ansiosa atenção os passos da louca, decorando seus menores movimentos, e observando-lhe amiúde a expressão do rosto. Cosida a ela como a sombra ao corpo, roçando-a muitas vezes a seu pesar, ou bafejando-lhe o rosto com o hálito, quando acaso se inclinava para espiar-lhe o semblante, nem assim Zana dava fé de sua presença.
 
Desde algum tempo, em uma de suas visitas, reparou Berta na singular mímica da doida, e de princípio não viu nisso mais do que um efeito natural da loucura. Mais tarde, porém, notando a insistência com que a negra repetia os mesmos movimentos, e ordem em que eles se sucediam, suspeitou a menina um mistério.
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Assim como dizem que a pupila conserva a imagem da última visão, não sucederá o mesmo com o espírito, e não ficará nele gravado, como em estereótipo, o quadro que iluminaram os últimos clarões da razão extinta?
 
Foi este o pensamento de Berta, que, atraída pelo encanto dessedo mistério, empenhou-se em perscrutar esse ermo onde jazia no seio de uma casa e de uma consciência, ambas em ruínas, o arcano impenetrável.
 
De tantas vezes que assistira àquele esboço rude e taciturno de uma tragédia ignota, já conhecia Berta de todos os seus episódios e incidentes, que mais tarde ela reproduzia de memória com o afã de penetrar-lhes o sentido oculto.
 
Até o momento em que Zana entrava na alcova, era fácil de compreender o fato que a reminiscência da doida retraçava tão ao vivo.
 
A preta, que era naturalmente a cozinheira da casa, despertada pelo sol, do costumado cochilo, acendera o fogo, e preparava o almoço, quando ouviu chamarem-na do interior. Deixou a ocupação, e acudiu alguém, que estava na alcova.
 
Aí ouviu assustada e com espanto o que lhe dizia essa pessoa, e, achegando-se à janela na ponta dos pés, enfiou os olhos na direção que lhe fora indicada. Assim permaneceu algum tempo, até que recuou espavorida, com a máscara do terror no semblante, e os ossos dos joelhos a estalarem, batendo um contra o outro.
 
O que vira ela?
 
Não pudera a menina atinar ainda, nem com a explicação desse terror, nem com o resto da história, que de mais em mais se complicava.
 
No meio do súbito pavor, cobrava Zana a vontade, estendia os braços crispados, parecia tomar um objeto que apertava ao seio convulso, como se o quisesse esconder ou sufocar; e atirava-se fora do aposento com um ímpeto de horror que a levava até um cubículo da cozinha, onde fazia sua dormida.
 
Dir-se-ia que deitava o seu fardo no chão, e corria ao fogão para tirar dali alguma coisacousa, que depois de moída espalhava nas palmas das mãos para ir esfregar o objeto escondido no cubículo.
 
Saía então ao terreiro, e passeava de um a outro lado com os modos de uma ama, ninando criancinha de colo. Era nessa ocasião que, balançando o corpo, com os braços arredondados ao peito, ela entoava a monótona cantiga, que Berta conseguira decifrar.
 
De repente transmudava-se completamente a doida, passando daquela extrema volubilidade a uma apatia balorda. Parecia fazer-se um vácuo em suas reminiscências, que fugiam-lhe deixando a alma sepultada em treva espessa. O semblante se intrumesciaintumescia com a expressão do idiotismo.
 
Nesse estado de estupor, vagava a passos trôpegos pela casa, até que parava automaticamente na porta da alcova e estendia o pescoço para dentro. Devia de ser de ser horrível o espetáculo que ali surgira a seus olhos, porque depois de tantos anos, a só imagem a fulminava.
 
ErguiaErigia-se-lhe o corpo hirto; um grito de terror estalava no peito, e vinha estrangular-se nas fauces. Volvia sobre si; e tombava ao chão, como uma pedra.
 
[[Categoria:Til|Primeiro Volume, Capítulo 18]]