A Carne/XII: diferenças entre revisões

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Lenita, pálida de emoção, com o seio a arfar, com os nervos frouxos, sentindo dobrarem-se-lhes as pernas, olhava, contemplava extática a ave elegantíssima.
 
Fazendo um esforço de vontade, aperrou a arma, ergueu-a lentamente, molemente, pô-la em mira.
 
em mira.
 
Não desfechou, não teve ânimo: retirou-a da cara, e pôs-se de novo a contemplar o alector.
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No galho fatal um tucano acabava de pousar: virava e revirava, para um e para outro lado, o seu grande bico esponjoso. Era uma maravilha o efeito de suas penas dorsais a contrastarem negras com o alaranjado soberbo da gorja, com o vermelho-vivo do peito: ao vê-lo ostentando ao sol ardente do trópico os esplendores dos seus matizes, dir-se-ia um ente fantástico, uma flor animada, viva, que viera voando de uma região desconhecida, que se fixara naquela árvore.
 
Um tiro certeiro de LenitLenita fê-lo tombar, e depois a outro, mais outro e a araçaris, e a pavôs, e a aves de bico redondo - uma carnificina, uma devastação.
 
Eram quase dez horas: o sol ia em alto, derramando torrentes de luz, enlanguescendo, a beijos de fogo, as folhas largas do caetê, as folhas cordiformes da periparoba. No céu muito azul esgarçavam-se nuvens muito brancas, e nesse festival de cores alegres punha uma nota negra um corvo solitário, perdido na amplidão.
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— Tive um tal susto... murmurou a moça mal recobrada.
 
— Perdoe-me, fui imprudente. O desejo que tinha de vê-la, o prazer de causar-lhe uma surpresa..,. perdoe-me, sim?
 
E tomou-lhe as mãos frias que apertou nas suas.
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E com ares de amador entusiasta examinava as peças de caça.
 
— Diga-me, perguntou-lhe a moça, como se chamam estes pássaros verdes, de bico redondo?
 
— Chamam-se sabiacis.
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— Em São Paulo, pelo menos, são.
 
— Quantas espécies temos de papagaios ?
 
— Ao certo, que eu saiba, seis: tuins, periquitos, cuiús, sabiacis, que são estes, baitacas e papagaios propriamente ditos.
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— Com que então não foi difícil encontrar a Lenita, gritou ele.
 
E atentando na caça: Deixa ver isso, rapariga! Ih! que razouralrazoura! No mato não ficou pássaro! Esta menina! Olhe, você devia ter nascido homem... e quem sabe se você não é mesmo homem?
 
Lenita corou até às orelhas.
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O almoço correu bem, mas terminou desagradavelmente. Quando estavam tomando café com leite, terminação obrigatória do almoço rural paulista, entrou na sala uma preta velha, assustada.
 
— Acuda, sinhô! disse, Maria. Bugra está morrendo!
 
— Onde está ela? Que é que tem? perguntou surpreso o coronel.
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Eh! sinhô moço! Maria estava no paiol, debulhando milho, muito sossegada. De repente entrou a queixar de ansiedade, levantou, andou vira-virando, entrou a gritar, a falar as coisas à toa. Batia com a cabeça, escumava, queria morder gente, parecia mesmo que estava louca. Depois perdeu o sentido, caiu, ficou assim como está. Eu mandei trazer para aqui, fui chamar sinhô.
 
— Sim ! Faz muito tempo?
 
— Não, sinhô moço, foi agora mesmo.
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— Sim, sinhô moço.
 
Barbosa foi ao seu quarto e, após breve demora, voltou com um frasquinho a meio de um líquido claro como água. Pediu uma colher; trouxeram-lha. Chamou ea enferma, junto do ouvido:
 
— Maria!
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— Todo; é uma dose forte de emético; convém fazê-la vomitar. Introduziu com algum custo o cabo da colher entre as arcadas dentárias da doente, e, fazendo dele uma alavanca, descerrou-lhe os queixos.
 
— Agora, meu pai !
 
O coronel vazou dentro da boca, entreaberta à força, o líquido do vidrinho.
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— Exato.
 
— Pois tudo isso, estou convencido, é conseqüênciaconsequência da ingestão de um veneno terrível, infelizmente muito comum entre nós, a atropina.
 
— Muito comum entre nós, a atropina?!
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— E a sua convicção é...
 
— Que Maria Bugra morre envenenada por uma decocção fortíssima de sementes de datura, e, conseqüentementeconsequentemente, por atropina.
 
E tem suspeita de quem tenha sido o propinador do veneno?
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— Em que se estriba você para inculpar o negro velho? perguntou após minutos de meditação.
 
— Em muita coisa. Primeiro, os fatos, os envenenamentos indiscutíveis, e que só começaram de dez anos a esta parte, depois que Joaquim Cambinda veio para a fazenda: eu cá não estava, mas por informações acho-me ao corrente de tudo. Em segundo lugar a fama de mestre feiticeiro que tem ele em todo o município: variasvárias pessoas de critério têm-se interrogado a esse respeito. Depois, surpreendi-o eu mesmo, outro dia, a secar cabeças de cobra, raízes de cicuta e de guiné, sementes de datura. E mais... ele tinha seus agravos de Maria Bugra... E Barbosa acentuou estas palavras, olhando para Lenita.
 
— É verdade, sei, até já tive de tomar providências por causa disso. Mas são presunções apenas...
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À tarde, ao escurecer, depois da revista, o coronel mandou chamar Joaquim Cambinda.
 
O medonho negro veio arrastando os pés, escorando-se em um bordão, a rojar pelo solo a imunda coberta parda, de que sempre usava.
 
imunda coberta parda, de que sempre usava.
 
Chegou, entrou na ante-sala, largou o bordão a um canto. O cadáver de Maria Bugra aí estava, sobre a marquesa, no meio da quadra, inteiriçado, coberto por um lençol fino que lhe desenhava as formas duras, angulosas. Quatro velas de cera alumiavam-no lugubremente, casando os seus clarões aos últimos clarões do dia.
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— Eu não sei, eu não sou doutor.
 
— Então você não sabe, não é doutor? Não sabe Tambémtambém de que morreu a Maria Baiana, o Antônio, o Carlos, o Chico Carreiro?
 
— Como quer sinhô que eu saiba?
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— Ah! Sinhô! Feiticeiro, negro velho, que não tarda a ir dar contas a Deus do feijão que ele comeu!
 
— Deixe-se de histórias, de mamparras, vamos ! Com que matou você a Maria Bugra?
 
— Não matei com coisa alguma, sinhô. Como hei de eu confessar uma coisa que eu não fiz?
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Eu já lá vou. Levem o bacalhau e uma salmoura forte.
 
— Que é que sinhô vai fazer comigo ? inquiriu rápido Joaquim Cambinda.
 
— Você vai ver.
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Operou-se uma revolução medonha em Joaquim Cambinda. Atirou ele para longe de si a coberta esfarrapada, endireitou o busto derreado, ergueu a cabeça, cerrou os punhos e encarou o coronel. Cintilavam-lhe os olhos, os beiços arregaçados deixavam ver os dentes.
 
— AhlAh! você quer saber, eu digo: fui eu mesmo que matei Maria Bugra.
 
— E por que a matou você?
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— Já que principiei a falar, irei até o fim. Sinhô é bom para mim, é verdade, mas sinhô é branco, e obrigação de preto é fazer mal a branco sempre que pode.
 
— Matar-me cinco escravos !
 
— Cinco ! Só crioulinhos mandei eu embora dezessete. Negro grande, nem se fala: Manuel Pedreiro, Tomaz, Simeão, Liberato, Gervásio, Chico Carapina, José Grande, José Pequeno, Quitéria, Jacinta, Margarida, de que é que morreram? Fui eu que matei todos.
 
Ergueu-se grande sussurro de entre o grupo de negros. Ouviam-se gritos, imprecações.
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— Qual cobra! A cobra que o picou não tinha veneno. E ele morreu, mas da beberagem que eu lhe dei para curar.
 
— Mas todos esses pobre diabos eram pretos como você. paraPara que os matou?
 
— Para sinhô ficar pobre: eu queria ver sinhô se servir por suas mãos.
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— E a mim nunca pretendeu você matar?
 
— Matar, não : fazer penar só.
 
— Então sempre me queria fazer alguma coisa?
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O coronel ficou aterrado.
 
— Levem, levem daqui esta serpente ! gritou Barbosa. Metam-no no tronco, não quero mais vê-lo. Vai para a vila amanhã. Os negros apoderaram-se de Joaquim Cambinda, que não ofereceu resistência, rodearam-no, levaram-no a empurrões para o meio do terreiro!
 
vê-lo. Vai para a vila amanhã. Os negros apoderaram-se de Joaquim Cambinda, que não ofereceu resistência, rodearam-no, levaram-no a empurrões para o meio do terreiro!
 
— Então foi você que matou meu pai ! dizia um.
 
— Minha mãe ! bradava outro.
 
— Meus três filhinhos tão bonitos, que entraram a inchar de repente, na cabeça e na barriga, a amarelar e que morreram com as perninhas finas como pernas de rã! lamuriou uma negra e, tomando do chão um caco de telha, bateu com ele na cara do feiticeiro.
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Os negros todos achegaram-se a Joaquim Cambinda, uns davam-lhe punhadas, outros escarravam-lhe, outros atiravam-lhe areia nos olhos.
 
— Peste do diabo ! Coisa ruim !
 
— Feiticeiro do inferno!
 
— Enforque-se já este demônio !
 
— O melhor é queimar!