A Carne/XIII: diferenças entre revisões

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Linha 38:
— Os pássaros não começarão a vir nem nesta uma hora.
 
— Que venham quando quiserem: nosnós hoje não estamos cá por amor de pássaros.
 
Então por amor de que estamos?
 
— Vai ver. Marciana, você fica aqui. Sente-se, não faça a mínima bulha. Agora D. Lenita venha comigo.
 
— Onde vamos nós?
Linha 60:
— É uma ceva. Agora silêncio, e esperemos.
 
No recinto, fechado pelo tapume espesso de palmas ainda verdes, havia um conchego relativo. Lenita, com as mãos agasalhadas em luvas de lã, envolta eem water-proof de casimira encorpada, sentindo o calor doce de Barbosa, achava-se bem. Hauria o ar puro, fresco, da mata, respirava as emanações de guarirova, essas emanações irritantes de palmeiras, que adormentam o cérebro em uma lubricidade mística. Ouvia coar delícias o pingar manso e monótono de orvalho na camada de folhas secas. E despercebidamente o tempo ia passando. Amanheceu. A luz penetrou na mata, deu tom aos troncos, coloriu a folhagem, alumiou o chão pardecento e varrido da ceva, no qual o amarelo do monte de milho punha uma nota muito clara.
 
De repente Barbosa deu com o joelho em Lenita.
 
Um animaanimal pequeno, esguio, elegante, emergia do mato, e avançava cauteloso, alongando o corpo fino. Chegou ao milho, retraiu-se, encolheu-se, fugiu aos corcovos, sumiu-se, reapareceu e, sempre arisco, sempre desconfiado, principiou a comer. Pouco a pouco perdeu o receio, ergueu as patas dianteiras, sentou-se sobre as traseiras, e, tomando uma espiga entre as mãozinhas, começou a roê-la com apetite, vorazmente.
 
Lenita, com o coração a bater descompassado, descorada, quase sem consciência, como por instinto venatório, aperrou a arma, fez pontaria, desfechou.
Linha 78:
Era uma cutia.
 
Ao vê-la ferida, prostrada, a exalar o derradeiro débil alento, o prazer de Lenita foi tão intenso, que dobraram-se-lhe as pemaspernas, e ela caiu de joelhos, erguendo para Barbosa um olhar repassado de gratidão.
 
Levantou-se, largou a espingarda, tomou o animal, sopesou-o com ambas as mãos, a tremer, dementada pelo triunfo, em arrancos de risos nervosos.
Linha 88:
Instalaram-se de novo na choça. Lenita carregou a espingarda, sentou-se, pôs a cofia diante de si, apoiou as pontas dos pés no seu corpo macio, cravou na ceva olhares vigilantes, cobiçosos, sôfregos.
 
Não esperou muito. Ouviu-se um estalar de ramos quebrados, e, um logo após outro, apresentaram-se dois vultos escuros, grandes, dois enormes porcos de eixo branco. Entraram no limpo da ceva confiados, lentos, mansos, caminharam direito ao milho, trombejando, foçando, fazendo estalar os dentes. Pararam, puseram-se a comer tranqüilamentetranquilamente, descuidosamente.
 
Lenita engatilhou a espingarda, quis metê-la em pontaria. Barbosa impediu-a com um gesto enérgico.
Linha 102:
Barbosa lento, cauteloso, sem fazer o mínimo rumor, como uma sombra, tirou a espingarda de Lenita, e pôs em lugar a sua, uma arma excelente de Pieper, canos shoke-rifled, calibre 12.
 
— Atire com esta, disse em voz baixa que mal Lenita o pôde ouvir, não tenha receio, não dá coice.
 
Lenita armou os dois cães, premendo os gatilhos para que não estalassem os gafanhotos nos dentes das nozes, levou a arma à cara e, quase sem apontar, disparou um tiro e outro imediatamente.
Linha 134:
Lenita, apressada, correu sem se importar com os ramos que lhe açoitavam, que lhe arranhavam o rosto, sem dar fé dos espinhos que lhe rasgavam a roupa. Chegou-se: ao dar com as suas vítimas, perdeu de todo a cabeça, teve uma como vertigem, soltou um grande grito, atirou-se a Barbosa, abraçou-o freneticamente. Depois caiu em si, retraiu-se confusa, desapontadíssima, correu a examinar os queixadas.
 
Baixou-se junto do que estava morto, examinou-lhe detidamente, minuciosamente : os cascos aguçados, as cerdas duras, longas, as orelhas tesas, a tromba lisa, os olhos pequeninos, sangüíneossanguíneos, os colmilhos oblíquos, o queixo branco. Tirou as luvas, premiu-lhe, esvurmou-lhe a glândula tumefata das cadeiras, fez correr o líquido lácteo, catinguento.
 
— Foi feliz, disse Barbosa, risonho. Fez uma proeza de que se não podem gabar muitos caçadores velhos.
Linha 200:
Logo depois do café, ela, Barbosa e a mucama seguiram para a ceva.
 
Muito embora seja quente o dia na mata há sempre frescor. A luz não era crua, mordente, como em uma campina rasa; esbate-se, quebra-se, dá aos contornos dos objetos um aveludado mole, uma languidez suavíssima. Os sons se abrandam, tomam um como timbre murmuroso. Na mata domina a todas as horas o que quer que é de vago mistério.
 
Lenita, nessa atmosfera balsâmica, sadia, achava-se feliz. Ao bem-estar gozoso, indefinível, que gera a boa digestão de um repasto suculento, juntavam-se alegrias de mente, a consciência de que seu amor por Barbosa era correspondido, o triunfo esplêndido, inesperado, incrível sobre duas temerosas feras. Fora por traição que as matara a tiro, escondida... embora! Na luta terrível da vida toda a arma aproveita. A astúcia é uma força. A espingarda de bala explosiva é que equipara o homem ao rinoceronte: para mostrar coragem irá o homem atacar o rinoceronte sem espingarda de bala explosiva? As alimárias da selva não se deixam aproximar, fogem mal farejam a vizinhança do homem; o homem só consegue tê-las em alcance escondendo-se, dissimulando-se: pois, para ser leal, irá o homem avisá-las a gritos de que se acha presente? A força é uma contração da fibra muscular, o pensamento é uma irritação da célula nervosa: por que não empregar uma contra a outra? Na batalha da existência, seja qual for a arma a empregar, o que impor é não ficar vencido: o vencedor tem sempre razão. Os queixadas tinham morrido. Lenita estava triunfante: o cérebro vencera o músculo mais uma vez. O fato era esse, o mais não entrava em linha de conta.
mata domina a todas as horas o que quer que é de vago mistério.
 
Lenita, nessa atmosfera balsâmica, sadia, achava-se feliz. Ao bem-estar gozoso, indefinível, que gera a boa digestão de um repasto suculento, juntavam-se alegrias de mente, a consciência de que seu amor por Barbosa era correspondido, o triunfo esplêndido, inesperado, incrível sobre duas temerosas feras. Fora por traição que as matara a tiro, escondida...embora! Na luta terrível da vida toda a arma aproveita. A astúcia é uma força. A espingarda de bala explosiva é que equipara o homem ao rinoceronte: para mostrar coragem irá o homem atacar o rinoceronte sem espingarda de bala explosiva? As alimárias da selva não se deixam aproximar, fogem mal farejam a vizinhança do homem; o homem só consegue tê-las em alcance escondendo-se, dissimulando-se: pois, para ser leal, irá o homem avisá-las a gritos de que se acha presente? A força é uma contração da fibra muscular, o pensamento é uma irritação da célula nervosa: por que não empregar uma contra a outra? Na batalha da existência, seja qual for a arma a empregar,
 
o que impor é não ficar vencido: o vencedor tem sempre razão. Os queixadas tinham morrido. Lenita estava triunfante: o cérebro vencera o músculo mais uma vez. O fato era esse, o mais não entrava em linha de conta.
 
Barbosa quedou-se ao pé da caneleira, a estudar umas epífitas que descobrira sobre um tranco carcomido.
Linha 266 ⟶ 262:
Dominou-se, porém, logo ajoelhou-se, tomou o pé de Lenita entre as mãos, examinou detidamente.
 
— Não há de ser nada; disse. Nenhuma veia importante foi tocada. A precaução que tomou de atar a perna com esta fita foi excelente. Agora, nada de acanhamento, entregue-se a mim deixe-me fazer o que entendo.
— Não há de ser nada; disse.
 
Nenhuma veia importante foi tocada. A precaução que tomou de atar a perna com esta fita foi excelente. Agora, nada de acanhamento, entregue-se a mim deixe-me fazer o que entendo.
 
Tirou do bolso um charuto, trincou-o nos dentes, mascou-o, encheu a boca de tabaco dissolvido em saliva, tomou de novo o pé de Lenita, com respeito, com adoração quase, chegou-lhe a boca, entrou a sugar-lhe a ferida a sorvos vagarosos, contínuos, fortes.
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Lenita aquiesceu com um gesto triste.
 
Barbosa assentou-se à beira da cama, levantou discretamente uma parte das cobertas, tomou o pé ferido de Lenita, desfez o atilho da perna. Um vinco em circulocírculo afundava-se lívido, um pouco acima do tornozelo. O pé estava inchado.
 
Esfregou por algum tempo a pele, restabelecendo a circulação; tomou depois a pôr a ligadura.
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— Dói-me a cabeça, foge-me de todo a vista, confundem-me as idéias.
 
— Tome mais um cálice de rum, é preciso.
 
— Torno, mas escute, diga-me uma coisa com franqueza, eu vou morrer, não?
Linha 404 ⟶ 398:
— Só?
 
— Só.
 
— Hum! não sei...
Linha 422 ⟶ 416:
— Por certo.
 
Entraram no quarto. Lenita estava sentada na cama, com as pemaspernas encruzadas à chinesa, por debaixo das cobertas. Alegre, radiante, tinha esse ar de triunfo que têm todos os doentes escapos de moléstia grave. Um lenço de cambraia alvíssima, dobrado em tira, cingia-lhe a cabeça como um diadema, fazendo sobressair o brilho dos olhos, o negror dos cabelos, o doirado pálido das faces. Uma camisa de dormir, afogada, de seda crua, mal dissimulava nas pregas largas e moles a linha dura dos seios.
 
— Então, com que, pronta para outra! disse o coronel. Pois escapou de boa! É no que dão as caçadas. Podia estar morta a esta hora!