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|autor=Machado de Assis
|seção=Capítulo XV: "Enfant terrible"
|anterior=[[Ressurreição (Machado de Assis)/XIV|Capítulo XIV]]
|posterior=[[Ressurreição (Machado de Assis)/XVI|Capítulo XVI]]
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No dia seguinte, logo cedo, Viana foi à casa do médico. Não ia almoçar com ele; ia convidá-lo para jantar.
Viana emitiu em seguida algumas idéias a respeito da maneira por que encarava um jantar de anos. Não devia compreender senão amigos íntimos, por ser festa do coração, alegria doméstica, em que tudo o que não falasse a língua da amizade seria estrangeiro ou talvez inimigo. Não bastava gosto para a escolha de tais amigos; era preciso jeito e sagacidade para discernir os que se prendiam pelo afeto dos que
Félix aceitou o convite com sofreguidão; esperava um pretexto para voltar à casa de Lívia. Pungia-o ainda o ciúme, mas a irritação passara, e em lugar dela nascera o desejo de ver restabelecida a harmonia antiga, não por ato de vontade própria, mas por uma completa justificação da amada.
Com tais sentimentos saiu de casa. Lívia estava à janela quando o viu chegar; foi recebê-lo no patamar da escada que dava para o jardim. Ao apertar-lhe a mão, entre triste e risonha
Leu-lhe Félix no rosto tão sincera tranqüilidade, que esteve quase a aceitar a reconciliação. Hesitou algum tempo; deitou os olhos à sala, e viu atravessá-la na direção da escada a figura de Raquel. Então lembrou-lhe a semiconfidência que esta lhe fizera, e amargamente respondeu à viúva:
Lívia empalideceu. Quis responder alguma coisa, e não pôde; Raquel estava com eles.
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Pouco depois chegaram o coronel e D. Matilde; Meneses não tardou muito. Algumas pessoas mais completavam o pessoal da festa. A presença de estranhos constrangia a viúva e o médico; era forçoso ser alegre como os outros, e isso custava a ambos, mais ainda a ela que a ele.
O jantar passou sem novidade de vulto. As pilhérias do coronel, e os brindes repetidos de Viana entretiveram a sociedade. Félix tentou seguir a corrente da alegria e logrou obtê-lo. Não reparava,
No fim do jantar Viana propôs que fossem conversar na chácara. Meneses pediu que a filha do coronel tocasse primeiro uma melodia que lhe ouvira alguns dias antes. Raquel consentiu. A melodia era extremamente melancólica, e Raquel tocava-a com alma. O tom da música influiu nos ânimos; não havia só o simples silêncio da atenção, mas o recolhimento da tristeza.
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Em alguns dos convivas esta impressão era mais natural e foi mais pronta. O médico, entretanto, forcejava, não só por sacudir a estranha influência, como por afetar completa isenção de espírito.
Luís estava em pé diante dele, com os cotovelos fincados nos seus joelhos. Félix brincava-lhe com os cabelos, e ambos sorriam um para o outro, como se fossem os únicos estranhos à comoção geral.
Ora, no meio do absoluto silêncio da sala, apenas interrompido pelas notas soltas e magoadas que os dedos de Raquel tiravam do piano, o filhinho de Lívia fez esta singela pergunta ao médico:
Lívia estremeceu. Raquel cessou de tocar e volveu rapidamente a cabeça para o grupo donde partira a voz. Dos outros convivas uns sorriam da inocente indiscrição do menino, outros observavam a viúva, ninguém reparava em Raquel.
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Lívia não saíra logo. A alguma distância repararam na falta dela, e Raquel propôs-se a ir buscá-la. Achou-a a abraçar e beijar o filho. Conquanto ela fosse mãe extremosa, não havia razão imediata para aquela explosão de ternura. Raquel estacou sem compreender nada.
A viúva olhou para ela
Raquel não respondeu. A pouco e pouco se lhe ia alumiando o espírito. Olhou longo tempo para ela, como se à força quisesse arrancar-lhe a explicação, que o seu coração pressentia. Enfim, pareceu adivinhar tudo.
Se o espírito de Raquel não fosse ainda o regaço da castidade, aquela confissão mentirosa da viúva, porque ela ainda amava, podia fazer-lhe nascer alguma desairosa suspeita. Mas Raquel não viu naquelas palavras mais do que um amor medroso e não compreendido. Sua eloqüente resposta foi apertá-la nos braços.
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Lívia apertou-a com força. Era a primeira vez que o acaso lhe deparava uma confidente. Alteava-se-lhe o seio, túmido de suspiros; duas lágrimas lhe romperam dos olhos e foram morrer na espádua de Raquel. O menino interrompeu essa doce efusão. Lívia respirou largamente, e beijando com ternura a moça, disse:
Mas Raquel não se movia. Tinha os olhos postos nela, os lábios apertados, os braços pendentes. Lívia sacudiu-lhe brandamente os ombros.
Lívia estremeceu. Súbito relâmpago lhe atravessou as sombras do espírito. Interrogou-a de novo, mas foi em vão. Então sentiu em si todas as energias do seu temperamento, e com um grito, que a cólera abafava, exclamou:
Raquel não lhe respondeu. Se a viúva lhe houvera falado com brandura é provável que lhe fizesse plena confissão de seus sentimentos. Mas, às palavras coléricas de Lívia, a pobre moça começou a tremer.
Raquel curvou o corpo, pôs as mãos em atitude de súplica, e murmurou com voz trêmula:
Pairou nos lábios da viúva um sorriso sarcástico. Raquel repetiu ainda muitas vezes a palavra
Depois saiu arrebatada da sala. Raquel, magoada pela violência do gesto da viúva, acompanhou-a com o olhar até à porta. Os olhos da corça ofendida não chamejavam ódio contra a leoa irritada.
[[Categoria:Ressurreição|Capítulo 15]]
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