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|obra=[[No País dos Ianques]]
|autor=Adolfo Caminha
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...Tinha cessado a faina geral de suspender âncora. Os marinheiros estavam todos em seus postos, alerta à primeira voz, silenciosos, enfileirados a bombordo e a boreste, alguns convenientemente distribuídos na popa, na proa e nas cobertas do cruzador.
Noite escura e chuvosa, cheia de nevoeiro e tristeza, fria, sem estrelas, cortada de clarões longínquos. Tão escura que se não distinguia um palmo diante do nariz, tão feia que os bicos de gás da cidade, soturna e quieta, bruxuleavam palidamente com a sua luz trêmula e vacilante...
E contudo estávamos a 19 de fevereiro, em plena estação calmosa, no rigor do verão.
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Um grande silêncio de alto-mar alastrava-se por toda a baía do Rio de Janeiro. Somente ao longe, para os lados da cidade, badalava o sino duma igreja, compassado e lúgubre.
De vez em quando passava rente com a popa do ''Barroso'' o vulto sombrio e largo de uma barca Ferry, com o seu farol de cor, deserta, indistinta, e que desaparecia logo na escuridão.
Seria meia-noite quando o navio começou a mover-se lentamente, caminho da barra, cheio da silenciosa melancolia dos que partiam, e uma hora depois a cidade, as praias, e as montanhas sumiam-se na distância, como se o mar as fosse engolindo com a voracidade de um monstro.
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Restava apenas um ponto luminoso, uma visão microscópica da terra fluminense: era o farol da ilha Rasa tremeluzindo, como pálpebra sonolenta, através da noite.
E todos a bordo, todos silenciosamente, egoístas na sua dor concentrada e incomunicável, mandaram ainda um
Dizem que o homem do mar é insensível aqueles que nunca viram esta realidade: a lágrima da saudade brilhar na face de um marinheiro.
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Pernambuco foi o primeiro porto da nossa escala.
Viagem monótona, sem acidentes notáveis, essa do Rio ao Recife. As horas sucediam-se numa uniformidade tediosa e imperturbável. Sempre o mar, sempre o céu, ora sombrios, ora azuis...
Durante o dia 21 avistamos, e isso nos consolou, uma vela que bordejava, muito branca, triste garça erradia no horizonte luminoso.
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Para quem viaja no mar uma vela que se avista é sempre motivo de inocente alegria. O marinheiro com especialidade gosta de segui-la com o olhar nostálgico até perdê-la completamente. É como ao avistar-se terra depois de longa travessia: sente-se a mesma impressão boa e indefinível.
Na manhã de 26
Impossível entrar nesse dia, por falta de maré: passamos a noite fora, no Lamarão, aos solavancos, vendo, por um óculo, a cidade do Recife, iluminada e bela, ombro a ombro com a legendária Olinda dos holandeses e dos banhos de mar.
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Na falta de outro assunto falou-se de história pátria.
Pela manhã de 27 o ''Barroso'' sulcava as águas do Lamarão, lento e majestoso, crivado de olhares. O povo saudava-o do cais da Lingüeta. Espalhou-se logo que o príncipe
Mais tarde, ao desembarcar a turma de guardas-marinha, de que fazia parte o príncipe, subiu de ponto a curiosidade pública.
O pobre moço viu-se em apuros, e mudava de cores, e fazia-se escarlate, e vociferava contra a plebe, ocultando-se entre os colegas, desapontado. Um preto velho teve a lembrança de ajoelhar-se aos pés de S. A. e suplicar-lhe uma esmola. Aconteceu, porém, que errou o alvo e foi direto a um outro rapaz, louro e rubro, como o príncipe, que se apressou em desfazer o engano.
O imperial senhor achava-se ridículo no meio de toda aquela multidão servil e anônima que o acompanhava,
É assim o povo
Visitamos, em romaria, os principais edifícios públicos: a Penitenciária, a Assembléia Provincial, o Ginásio, o Teatro.
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Um dos nossos companheiros desejou saber a história do seu crime e pediu ao infeliz que lha contasse ele próprio.
Gustavo Adolfo parecia-nos um regenerado, tal o aspecto humilde de sua fisionomia e o tom comovente de sua voz. O isolamento transformara-lhe a alma. A dor tem isto de bom
Vimo-lo na casa dos condenados, entre as quatro paredes de um miserável cubículo, vestido de preto, barba crescida, macilento, arrependido e só.
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Poucos iam incomodá-lo ali, naquela pavorosa solidão, e no entanto ele não odiava ninguém e desejava falar a todos.
Tinha dezenove anos quando a fatalidade o arremessou a Fernando de Noronha. A justiça humana o havia condenado a esta pena infamante
Perdoar a um arrependido nas condições de Gustavo Adolfo, me parece a mais nobre ação de um rei. Todavia ele continuava, mendigo de liberdade, a pedir, a pedir...
Retiramo-nos comentando aquela catástrofe desastrada.
A história trágica desse preso foi-nos contada por um empregado do estabelecimento. Eu podia resumi-la em duas palavras:
Gustavo Adolfo nasceu no Pará onde iniciou seus estudos como seminarista.
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Muito cedo seu espírito mostrou-se refratário à educação eclesiástica, e desviou-se dos livros sagrados para outro gênero de leituras e estudos mais consentâneos com as suas aspirações.
Os pais do núbil seminarista desgostaram-se com o procedimento do filho revolucionário e ardente apologista de Martinho Lutero, que não ocultava-lhes suas tendências anticatólicas. Ele, porém, o apóstata, o herege, sentia-se instintivamente arrebatado pelas idéias do século e tratou de trocar a sotaina de noviço pelo fraque da última moda. Ninguém põe peias à fatalidade. Não contente com ir de encontro à vontade de seus pais e preceptores, o ex-seminarista tomou o primeiro vapor, e, súbito, viu-se na capital do Brasil, sem um amigo que o guiasse nesse labirinto de ruas suspeitas onde o vício assentou praça. A Rua do Ouvidor e os teatros sempre eram mais agradáveis que o claustro e as impertinências do reitor
Pobre Gustavo Adolfo! Salvara-se de um abismo para precipitar-se imprudentemente, como criança inexperta, noutro abismo talvez mais perigoso.
Sem amigos, sem proteção, longe de sua terra e de seus pais
Imbert-Galloix, um italiano, também adolescente e cheio de esperanças, inteligente e trabalhador, morreu de miséria numa rua de Paris, por ter trocado sua pátria natal por um país que só conhecia de nome. Fora em busca de glórias e encontrou a miséria, o frio, a fome, e a morte por fim.
Esses sonhadores como Imbert-Galloix são sempre vítimas da própria imaginação.
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E, parece incrível! quando na primeira noite, após as inefáveis carícias do amor, a mísera Manon, adormecida ao lado do amante, sonhava, talvez nalgum banquete suntuoso, à sombra de álamos frondosos, talvez nalguma de suas passadas orgias, à luz de candelabros deslumbrantes, ele, o mal-aventurado moço, cujo olhar fitava na meia sombra da alcova o rosto sereno desta amante, antepensava um crime e um crime excepcional, monstruoso, inqualificável.
Ei-lo que se levanta de um ímpeto, pisando devagar, sorrateiramente, tão de leve que dir-se-ia uma sombra; ei-lo que se encaminha para a porta da rua, tateando, encostando-se às paredes, pé ante pé, sem respirar, olhando sempre para trás, para o leito da amante (lembra-me a cena da
Meia-noite... Ei-lo ainda que volta e se aproxima do leito onde há pouco boiara em mar de volúpia. Traz na mão um objeto reluzente, uma coisa disforme... uma machadinha.
Que irá ele fazer?!...
Aproxima-se mais, rastejando quase, mansamente, sutilmente.
De repente soa uma pancada surda, e um grito estrangulado:
Obcecado pela idéia do roubo, o assassino arranca brutalmente as jóias do cadáver, e, à luz do combustor de cristal, reconhece que são falsas!
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Foge rua fora, como um possesso, enfia num beco, sai por outra rua, e desaparece na escuridão da noite.
No dia seguinte seu nome lá estava estampado em letras garrafais no livro dos réus:
Mais tarde, anos depois, o jovem criminoso tentou fugir de Fernando de Noronha onde fora recolhido. Prenderam-no em flagrante. E há poucos meses, no ano passado, a princesa Isabel, então regente do Brasil, abriu-lhe as portas da prisão.
Gustavo Adolfo publicou, no degredo, um livro de versos intitulado ''Risos e lágrimas'', uma coleção de poesias sentimentais e amorosas que pouco valem pela forma e onde se acham cristalizadas as dores do infeliz poeta, cuja imaginação cantava entre lágrimas.
Penalizou-nos a sorte desse rapaz simpático e inteligente.
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Havia, além de Gustavo Adolfo, outro preso não menos interessante e que nos excitou a curiosidade. Indigitado autor de não sei que roubo, fora condenado igualmente a galés perpétuas.
Interrogado, disse-nos contar oitenta (!) anos de idade e possuir família numerosa:
O velhinho todo trêmulo, a cabeça muito branca, uma névoa úmida no olhar, sem forças quase para dar um passo, murmurou tristemente:
O edifício da Penitenciária tem, logo à entrada, a seguinte inscrição em mármore:
''No
Contava, portanto, trinta e cinco anos.
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Foi a mais interessante de todas as nossas visitas em Pernambuco.
[[Categoria:No País dos Ianques|Capítulo 01]]
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