|obra=[[Os Retirantes]]
|autor=José do Patrocínio
|seção=Terceira Parteparte: Aa Capitalcapital, Capítulo VII
|anterior=[[Os Retirantes/III/VI|Terceira Parteparte: Aa Capitalcapital: Capítulo VI]]
|posterior=[[Os Retirantes/III/VIII|Terceira Parteparte: Aa Capitalcapital: Capítulo VIII]]
|notas=
}}
O homem, depois de concluir a oração, dirigindo-se a um indivíduo que estava encostado a uma das portas laterais da capela-mor, perguntou-lhe quando poderia falar ao bispo.
—— S. Ex.a tem estado incomodado e não recebe ninguém.
—— Está de cama?
—— Não; mas não pode receber ninguém.
—— Ele há de falar-me, tenho certeza.
—— Pode ser; porém outros e de colarinho lavado o têm procurado e ele não os tem recebido.
—— Talvez o senhor não esteja bem informado; é impossível o que me diz.
—— Falo porque, sendo sacristão daqui, dou-me com pessoas da casa, e estas, que têm olhos, vêem o que eu lhe disse. Fale com o senhor padre, que ali está, e saiba, ao certo.
—— É o que já havia resolvido.
Estas palavras foram proferidas com uma entoação de altivez tal, que o sacristão olhou atentamente para o desconhecido. Mediu-o de alto a baixo e, sorrindo desdenhosamente, murmurou:
—— Está bem arranjado; tenho muito de que me rir hoje.
O sacerdote, que estava no confessionário, levantou-se por fim e, erguendo a voz, perguntou se não havia mais ninguém para confessar-se.
—— Se está algum dormindo, acordem-no, porque, em saindo daqui, não estou mais para aturar maçada.
Ninguém respondendo ao apelo, o padre fez um sinal para o sacristão, que enfiou pelo corredor da sacristia, enquanto sua reverendíssima caminhava para a porta em que ele se achava.
Quando o padre, depois da genuflexão diante do altar-mor, ia entrar no mesmo corredor em que o sacristão havia desaparecido, o homem desabusado tomou-lhe o passo:
—— V. Revma. pode dar-me uma palavra?
O padre, reparando no indivíduo que o interrompera, parou bruscamente e interrogou:
—— Há quanto tempo está à minha espera?
—— Há quase uma hora.
—— E não me ouviu perguntar se faltava mais alguém para confessar?
—— Mas eu não quero positivamente confessar-me.
—— Pois eu não posso também conversar agora; tenho de dar sacramento a toda esta súcia que ali está.
O padre apontou para as redes e, dirigindo-se ao sacristão, que acudira todo risonho logo que lhe ouviu a voz, acrescentou:
—— Creio que as hóstias não chegam.
—— Eu enchi hoje a âmbula; temos hóstias a dar com um pau.
O desconhecido, cruzando os braços e meneando a cabeça, reparou por sua vez no padre e no sacristão e ficou a sorrir.
"Isto por aqui não difere muito do resto da província, os costumes não mudaram" —- pensou Paula.
O sacerdote e o sacristão voltaram pouco depois, revestidos, para dar o sacramento, e um tilintar prolongado de campainhas encheu o recinto.
Quando terminou a cerimônia, o desconhecido acercou-se de novo do sacerdote, logo que ele começou a desrevestir-se:
—— Diga-me, V. Revma.: os sacerdotes do sertão não merecem nem uma palavra dos que moram na praça?
O sacerdote parou e encarou com o seu interlocutor. Havia no seu olhar espanto e confusão; na sua mente de tingido do Senhor não passava a simples hipótese de que fosse possível a um indivíduo da sua classe chegar a tão mísero estado. O voto de pobreza para si não passava de uma vã formalidade.
—— Nunca nos negamos a manter boas relações com os colegas —- disse ele.
—— Então leia —- replicou o desconhecido, que tinha levado a mão ao bolso e, tirando dele um papel, apresentou-o ao sacerdote.
—— Tenho, pois, a satisfação de falar com o reverendo vigário de ''B. V. —''- murmurou o sacerdote, estendendo a mão ao recém-chegado.
Paula correspondeu ao cumprimento e, com seu sorriso irônico e incômodo, respondeu:
—— Agradeço muito a bondade de V. Revma.
—— Já vejo que não andam bons os negócios lá pela sua paróquia.
—— Pela minha ex-paróquia; lá não há mais talvez viva alma, porque, se houvesse, não arredaria um passo do meu posto.
—— É desta forma que se deve desempenhar a nossa santa missão, se bem que outros não entendam do mesmo modo.
—— Ah! eu tenho muitos exemplos disto...
—— Estamos com a capital cheia de vigários que abandonaram as suas paróquias.
—— É que hoje não se pode habitar o sertão; não se ganha para o prato.
—— Do mesmo, pouco mais ou menos nos queixamos nós; vive-se, porém muito apertadamente.
—— Numa cidade como esta?!
—— A cidade já deu muito, mas com a afluência de padres não toca uma rua a cada um.
—— É mau isto, homem!
—— É o diabo, Deus me perdoe; estamos quase retirantes.
Paula esperou em vão que o seu colega lhe oferecesse a casa; mas, vendo que a conversação estendia-se, e que ficaria sem pousada, formulou a pergunta já feita ao sacristão:
—— Será possível falar ao sr. bispo?
—— Pois não! Vindo comigo terá entrada; se quiser, estou às ordens.
Atravessaram a igreja e, saindo pela porta principal, Paula chamou a atenção do colega para o grande cruzeiro levantado em frente à igreja, logo ao descer do átrio.
—— Muitas saudades me causa este lenho.
—— Dos tempos de estudante, naturalmente?...
—— E dos primeiros tempos da minha carreira sacerdotal.
—— Não há quem não as tenha.
—— As missas de madrugada, as festas da semana santa. Estas eram então feitas com muito aparato e muito recolhimento.
—— Hoje o aparato é maior.
—— Mas o recolhimento acabou-se, hein?
—— O número de devotos tem diminuído muito.
—— Mas nem por isso o respeito pela religião se perdeu de todo.
—— Já não se pode fazer tudo; o padre já não é o anjo do Senhor.
A medida que iam falando, os dois padres dirigiam-se para o palácio episcopal, ao lado da igreja, e cuja porta principal estava sempre fechada.
Paula, reparando nesta circunstância, ponderou ao colega:
—— Creio que perdemos os passos.
—— Não; a porta conserva-se fechada para que S. Ex.a não seja incomodado pelos retirantes. Se ele não tomasse esta providência, nem todo o dinheiro da mitra chegaria para dar esmolas a essa corja. Vai ver como abrem já.
Tinham parado em frente à porta, e o padre bateu três pancadas fortes por duas vezes, e depois uma isolada.
O bispo, muito amável para o sacerdote, apenas inclinou a cabeça diante do vigário.
—— Venho apresentar-lhe o sr. vigário de ''B. V., ''que chega entre nós neste miserável estado.
—— Oh! —- exclamou o bispo entendendo a mão a Paula —- muito sinto as suas infelicidades e me congratulo com a nossa santa religião, pela coragem que sabe dar aos apóstolos.
—— O mais humilde, o ínfimo dos servos de V. Ex.a Revma. —- respondeu Paula —- e o mais indigno dos ministros do Senhor.
—— Fez toda a viagem a pé, não é verdade? Deve estar cheio de fadiga; esta casa fica desde já ao seu dispor.
—— Eu contava com a grande caridade do meu digno prelado e, como estou em extrema necessidade, aceito a esmola.
O bispo, deveras penalizado com o estado em que via o vigário, apressou-se em alargar o seu obséquio, dando logo ordens para que todos os cuidados da hospedagem lhe fossem dados.
—— Eu calculo quanto sofreu V. Revma.
—— A imaginação de V. Exa. pode imaginar o que quiser, mas nunca chegará à verdade.
—— O cansaço da viagem...
—— Nada é diante das afrontas que sofri...
—— As privações cruéis durante as jornadas...
—— Foram muitas, mas nada valem, comparadas com a dor das ingratidões com que me amarguraram os últimos dias que passei na minha pobre ''B. V.''
—— Foram, pois, sofrimentos físicos e morais, torturas da alma e do corpo.
—— Não me aterraram, porque os suportei para maior glória de Deus.
Paula passou logo a satisfazer a curiosidade do prelado acerca dos negócios da paróquia.
Prosseguindo na narração, acrescentou:
—— Havia na família uma rapariga de 20 anos, a qual criei nos meus joelhos. Era formosa, chamavam-na rainha do lugar.
Fez uma pausa, como se pela mente se lhe erguesse o retrato primitivo de Eulália, com o seu corpo direito e cheio como os estolhos novos do mandacaru; os olhos grandes, negros, de um brilho seco, olhos que se destacavam muito sob as curtas pestanas das pálpebras finas.
—— Dir-se-ia a estátua do pecado —- concluiu Paula.
—— E esta rapariga perdeu-se? —- perguntou o sacerdote.
—— E o que é feito hoje dela? ▼
—— Não sei; porém sobre mim pesa a responsabilidade do seu destino no entender dos paroquianos, que me constituíram seu sedutor. ▼
▲— E o que é feito hoje dela?
▲— Não sei; porém sobre mim pesa a responsabilidade do seu destino no entender dos paroquianos, que me constituíram seu sedutor.
Duas lágrimas tardas e grossas, espremidas com grande esforço, rolaram pelas faces queimadas de Paula.
—— A impiedade vai penetrando até os nossos sertões murmurou o bispo, comovido pela hipocrisia do vigário.
—— Já os ministros de Deus não podem sequer professar a caridade —- ajuntou o sacerdote; —- V. Exa. não se lembra da acusação que me fizeram, a respeito daquela família da rua da Palma?
O bispo meneou a cabeça, e Paula, com a finura que tanto o engrandecera na paróquia, ponderou:
—— Já V. Revma. sabe quanto semelhantes injustiças doem; é preciso muita fé na remuneração da inocência por Nosso Senhor Jesus Cristo, para que se vençam as sugestões da ira.
—— O sr. vigário foi prudente?
—— Tanto quanto se pode ser, apesar da perseguição. A calúnia fez eco, na hora da missa; quando eu recolhia o meu espírito para implorar da misericórdia divina perdão para os meus e para os pecados dos meus paroquianos, estes prorromperam em insultos.
—— Dentro da casa do Senhor?
—— Dentro da casa do Senhor —- repetiu Paula, em cujos olhos as lágrimas continuaram a brotar. —- Romperam até ameaças de morte, e tão tremendas, que me vi constrangido a esconder-me na mesma hora.
—— E não houve na paróquia quem tomasse o partido de V. Revma.?
—— Antes não houvesse; o meu coração não teria um luto perpétuo, luto que só a morte dissipará.
—— Houve então conflito?
—— Os retirantes, esses desgraçados que são órfãos em toda parte, haviam encontrado em mim um defensor natural. Graças à boa vontade que só a nossa eterna fé sabe inspirar para com os que padecem, eu velava por eles na qualidade de membro da comissão de socorros. Como os tratava, pode dizer a vingança bárbara que tomaram espontaneamente. Na mesma noite da injúria a paróquia era acometida alta noite pelos agradecidos retirantes e a casa do outro comissário, do sacristão da paróquia e de um dos potentados do lugar eram assaltadas. Os dois primeiros pagaram com a vida a leviandade de terem tomado parte nas manifestações injustas que me foram feitas.
—— Foi então uma calamidade pública?
—— Não pude evitar. Sentindo-me traído pelo meu sacristão, abandonado, resolvi ocultar-me na sacristia e aí permaneci o dia inteiro. Só consegui sair, quando o clamor do povoado advertiu-me da sua iminente ruína. Então, empunhando um crucifixo, saí e contive ainda os ímpetos dos assaltantes, que se desvairavam cada vez mais com a resistência que encontravam nos paroquianos.
—— É um fato singular —- murmurou o sacerdote pensativo —-, muito singular.
O bispo agitou afirmativamente a cabeça e Paula prosseguiu:
—— Mais lhe admirará a outra circunstância. Um dos poderosos da terra, moço completamente perdido, soberbo, ímpio, tinha amores clandestinos com uma rapariga da paróquia. Ele era Feitosa e ela, Monte.
—— O final há de ser por força uma tragédia.
—— Não chegou a tanto, mas uma noite o rapaz, ao sair da entrevista, foi surpreendido e apunhalado em um dos ombros, ferida que não lhe causou a morte.
—— Não podia ser outro o fim de tais amores.
—— Pois bem; apesar de ser conhecida a rivalidade secular entre Montes e Feitosas, o ódio vivo que eles se permutam, querem saber quem foi o acusado de haver tentado perpetrar crime?
—— V. Revma? —- perguntaram os dois, admirados.
—— Eu —- respondeu submissamente o vigário —-, eu que não tinha relações íntimas com nenhum dos dois e que fui o primeiro a apontar o Monte como o criminoso.
—— Era então uma paróquia de doidos?!
—— De caluniadores e perversos —- observou Paula —- que me odiavam fingindo estimar-me, que me perseguiam, enfim, porque nunca fui condescendente com as suas torpezas e os seus roubos.
—— Tem na minha casa um abrigo; é a casa de um seu afeiçoado.
Paula foi, pouco depois, acompanhado pelo sacerdote, conduzido para os aposentos que lhe eram destinados.
—— Então a rapariga era uma formosura, hein, seu maganão? E você foi acusado injustamente —- disse o sacerdote sorrindo.
—— Falte-me a luz neste ponto —- disse Paula ajoelhando-se diante de um crucifixo —- se eu por acaso tento desculpar-me de um crime por mim cometido.
—— Oh! diabo —- pensou o sacerdote —-, este não é dos nossos, toma as coisas ao pé da letra; mas afinal há de se dar bem com o sistema..."
[[Categoria:Os Retirantes|Terceira Parteparte: Aa Capitalcapital, Capítulo 07]]
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