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Poupão, metódico, temente a Deus, o casal Góis
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Tinha, Deus louvado, bem segura
Esta vida presente e a futura.
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Fabiana de Góis aspirava, entretanto, participando das aversões do
Meu Jesus! quanta arenga não teve ela com o marido por amor disso! No partido, o mais que havia eram comendadores, e estes, casados. Nem um barão, nem um visconde!
Com esta última interrogação, Maria Fabiana largava uma cotovelada no marido e virava-se para o outro lado.
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Balbuciou consigo entre zangada e chorosa:
E dormiram.
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Nesse rojão o desembargador ia adiando o propósito de virar casaca.
O caráter político, efetivamente, estava em sustentar a idéia do partido; ora, nem uma das facções arvorava idéias: logo, estar num ou noutro era o mesmo. Aparecia, porém, uma forte objeção
Habituou-se a resingar com a consorte, empregando agora o raciocínio, agora a frase brutal, agora a risada, até que, por fim, apesar das disputas, da divergência aparente, respiravam ambos as mesmas convicções.
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Continuava em estudos clássicos com professores que vinham lecionar em casa, e os conhecidos possuíam-se de um certo respeito pela sua simplicidade, riqueza, formosura, instrução. Espalhavam que ela sabia como um doutor, e exageravam os possuídos do pai, que não eram lá essas coisas.
Para Maria das Dores, quando ia ao colégio, a palavra ungida do padre reitor, se aconselhando, dispunha para a contrição; se gracejando, fazia abrir-se sutil o riso, como as bobinas com a fresca da noite; ralhando, apertava o coração, como a rama da malícia. Ela estremecia de íntima saudade quando, entre as antigas companheiras, pregava nos ombros os alfinetes que seguravam a fita azul das ''filhas de Maria'', cuja medalha caía no regaço, por sobre o vestido afogado, na altura onde se cochichavam apertados pelo corpinho os dois seios adormecidos na noite aluarada da virgindade; aspirava, como um aroma antinevrálgico o ar da capelinha, cuja influição especial agora é que ela sentia, acidulado pelas emanações das carnes inocentes, amornentado pelas chamas das velas, penumbreado pela vidraçaria gótica à luz do sol oblíquo.
Sentia um quê de estranho, de comovente, dessas impressões que nos trazem silenciosamente o pranto num riso, quando passavam as irmãs para os seus genuflexórios, metidas em grosso burel, as mãos desaparecidas nas mangas encruzadas, e da carne só aparecendo o rosto com os olhos para a terra, o cérebro circundado pelo chapeirão alvo, gelando as ruminações das bocas mundanas e batendo pausadamente as duas abas em ponta, como a marcar vôo para o alto céu. E quando por detrás das duas colunas do santuário, douradinhas e leves, o padre reitor vinha subindo da sacristia, na capa de asperges, e lançava um manso olhar pela capela, o sol, que batia em caprichos do alto da parede, alumiava mais, e parecia que até a lâmpada estremecia. Depois o padre subia para o tapete onde roçava o frontal e abria o sacrário. Nossa Senhora estava lá em cima, com o manto azul, a coroa de rainha, e as mãos abertas em graças para o globo celeste que ela pisava adornado de estrelas. As flores artificiais do altar orvalhavam-se e tinham seiva e aroma, com as frases do ''Tantum ergo'', cantadads pelas órfãs, ao gemido da ''serafina''. E ao ''Genitore genitoque'', quando o acólito apresentava o turíbulo e a naveta, e o incenso caindo nas brasas subia em palpitantes nuvenzinhas, a
Depois do ''Tantum'' ''ergo'' o padre reitor ajoelhava, recebia o véu d'ombros, a capela num silêncio espectante.
Abatiam-se diante dele todas as frontes. Era a benção do
Suspirações, quantas naquele momento! Quantos segredos que as meninas contavam suplicativas ao bom Jesus Sacramentado!
Maria das Dores não dizia coisa nenhuma. Sentia lágrimas nos olhos, prostrada, e, mãos abertas no coração, em asa de borboleta que repousa. Adorável. Via-se-lhe o colo, metido no espartilho (que começara a usar depois que saíra do colégio), agitado como se fora exalar o último
E tinha-se vontade de encostar a face eternamente naquele ombro como o discípulo amado para com o Mestre puríssimo.
Ao ''Laudate'', esse canto que alivia o coração e parece reboar pela face da natureza, pausado, crescente, ondulado, estabelecia-se o equilíbrio entre céu e terra, e Maria, sentada no meio das outras, patenteava agora a sua fisionomia limpa e sorridente, de um moreno às vezes pálido, às vezes corado, segundo o que lhe ia no físico.
Viveu assim aquela boa criatura durante mais de ano; o seu prazer circunscrito ao colégio. Verdade é que sentia um tal ou qual pendor pelos rapazes, e não deixou de ser tentada pelo demônio, mas era senhora deste sujeito e olhava-o com desdém, pela grande confiança que depositava em Nossa Senhora. Algumas pessoas diziam-na antipática, e outras orgulhosa pela sua reserva ou acanhamento.
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Entretanto, ia-lhe, sobrevindo o mesmo tédio de que sofreu no último ano de classe. Passou, finalmente, a novidade dos passeios ao colégio, e das lições do professor que vinha a casa. Quando o pai mandava aprontar o carro, e dizia-lhe que se vestisse, ela surpreendia-se agora de não sentir a mesma agitação, o mesmo sustozinho grato.
Uma semana que foi passar com as Irmãs, ao Meireles, tempo de caju, admirou-se de não sentir o mesmo arrepio delicioso quando chegou lá. Descia ao banho de mar, um tanto afastada da gritaria das outras, buscando antes a companhia
Deixava constrangida o mar. A última a sair, e depois da Irmã chamar por três vezes. Então vinha correndo, possuída de um pudor súbito, com a camisola pregadinha ao corpo, as mãos apertando o seio.
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Uma tarde largaram-se até pertinho do Mucuripe. Uma légua pouco menos. Iam descalças, de chinelos na mão, com a mais sedutora liberdade deste mundo. Os vestidinhos de chita contra o vento. O sol que se estendia quase horizontalmente por detrás delas, recebia-as de longe,adiante, pondo luminárias no mar e nos coqueiros dos sítios.
O vento, eriçando pela cútis das areias, traçava ligeiras sombras de uma alvura de flor de cáctus. O vasto corpo arenoso, encrespadinho como a epiderme, apresentava empolamentos de seios, fundos recônditos setinosos de sovacos e grossa macieza de ventres.
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A terra parecia findar-se na duna enorme da ponta do Mucuripe,de onde descia uma alvura vagamente corada pelos tons das nuvens.
Sob o fundo de coqueiros da povoação, via-se branquejarem as velas das jangadas empoleiradas no seco e saídas da pesca: um acampamento de alvas barracas pontudas no poeiramento do crepúsculo. A praia vinha acompanhada, longe, de uma linha escura de matos e de sítios, aqui fugindo para trás de um morro de pó, ali aparecendo como os
belos de uma calva incompleta. E uma duna, de cimácio quase reto, encostando no escuro anil do Sul, era como o dorso de um oceano de leite.
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Da areia porejava uma frescura confortativa. Porém, as educandas não chegaram à povoação. A Irmã disse que já estavam muito afastadas do Meireles, e que era preciso voltar. Descansaram nuns botes, jangadinhas a remo para um só tripulante. Maria das Dores, com a Irmã, sentaram-se no banco do remeiro. Veio-lhe de súbito um desejo de ir-se naquela jangadinha pelo mar adentro, e puxou a sua ex-preceptora a conversar sobre viagens. A francesa tomou bondosamente a palavra.
Maria nem enxergava um peixeiro que passava para a cidade, ao acostumado trotezinho, de calão carregado ao ombro, e passou-lhe
Quando voltavam, entretanto, a Das Dores, como lhe chamavam no colégio, quase chorou de dó, ao encontrar com uns pequenos que vinham da lenha.
As fêmeas com o cabelinho embaraçado e um pedaço de coberta encardida ao ombro, e os meninos, em camisão, com as canelinhas ao vento. Atrás, uma já moça, com um enorme feixe de garranchos, que inclinou propositalmente para cima dos olhos. Via-se que a rapariga trazia a saia em cima da pele, e que o pudor dos peitos era apenas aquecido por um cabeção de algodãozinho. Maria teve um
Adiante as colegiais encontraram uma preta, sumida num molho de ramos com que ia remendar as paredes da sua tapera; a preta olhou para uma das meninas, de quem tinha sido escrava, com uma frase de satisfação, mostrando sua dentadura de hiena. Quando a pupila subia, porque o peso forçava o corpo a curvar para diante, clareava muito o branco dos olhos. Aquela rigidez de homem fazia medo, e a maneira com que a negra mudava as pernas, e a tensão dos braços estendidos para trás. E fez bater o coraçãozinho das Das Dores, como o peito de uma rolinha inexperta.
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Assistiu à cerimônia, que antes lhe era um fim, como a um simples episódio da existência diária.
No banho de mar, no rebuliço da onda,
E durante o dia preferia andar pelos cajueiros, a ficar debruçada sobre o bastidor do bordado. A tarde fez-lhe muito bem contemplar o curral, cujas emanações a confortavam, e guardou na memória a poesia bucólica de uma vaca azeitã que de pescoço estirado se deixava lamberpela bezerra já crescida, de formas carnudas e virginais, douradinha de sol, e com uns grandes olhos de filha.
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Gostava de avistar os caminhantes, lá por longe, pela beira da praia, meio ocultos pela ribanceira do areal, e fitava agudamente o ponto branco das jangadas na risca azul do mar. O grito dos maçaricos produzia-lhe arrepiamentos, quando à noite ela tinha insônias e punha-se a olhar para os buraquinhos luminosos do telhado, ouvindo a ventania arrastar, a luz da lua, por sobre o arvoredo como que um vestido de sedas. O rolo do mar lhe despertava na imaginação um canhoneio longínquo.
Rezava-se o ''Angelus'' ali mesmo no terraço, depois da ceia, que ainda era com dia. Era esta a última noitinha que a Das Dores assistia no Meireles. Quis chorar, proferindo aquela oração tão simples, que principiava dizendo: ''O Anjo do Senhor anunciou à Maria''. O sussurro quase hilariante da voz das meninas respondendo em coro parecia um ruflo de asas que iam em bando no amortecimento do sol, que não aparecia mais.
A areia foi a pouco e pouco empardecendo, e as folhas das árvores unindo-se na sombra. Apenas o extremo das palhas dos coqueiros balançavam, quando por entre eles, com o mesmo alaranjado que ainda retocava as nuvens, subia a lua, de um ninho de vapores indecisos, ligeira, grande, gorducha como um recém-nascido de boas carnes. Pestanejando apressadamente acendia-se o farol do Mucuripe, uma enorme estrela avermelhada, e foi abrandando, até que entrou a desaparecer e reaparecer vagarosamente e por medida.
As meninas ficaram no terraço até bater a campainha para a oração da noite. Ali mesmo fizeram o recreio. Delas, um grupo numeroso, sentadas em círculo no solo, brincava o ''limão'', e cantavam compassadamente para a do meio: ''lesa, menina, lesa''... A claridade da lua projetava sombras densas, e vinha já descendo meia parede. Os recortes da bandeirola, na porta do lado, iam desenhar-se no tijolo da saleta escura.
Isolada no parapeito a Das Dores cochichava as frescas ave-marias e os longos padre-nossos do seu terço de marfim, e o ar frio, brandamente agitado, fazia aparecer de vez em quando entre os seus lábios a pontinha da língua para umedecê-los.
A claridade, a princípio muito forte por debaixo das árvores, por modos a luzirem as folhas caídas, penetrava deslumbrantemente nas copas e ramadas, e em breve o disco da lua foi sobranceiro à tona do arvoredo. Por fora do cercado, para o mar, as pequenas dunas salpicadas de moitas de capim, na encosta interior, mostravam o lombo nitente, ou a cava escura dos pequenos vales, e em frente à porteira estendia-se um alagado em cuja face trêmula boiava em ''i'' brilhantíssimo, de margem a margem, a luz da lua.
O areal da praia aparecia como umas camadas de algodão, e a
A areia do caminho, trilhada pelos pés, traçava uma zona estreita, esbatida, irregular. De uma jaqueira isolada via-se deliciosamente a copa florida, nas menores minudências de volume, desde a linha acesa até a parte indecisa que se enxergava através da sombra. E era belo aquele jogo de sombras diversamente graduadas, sem a monótona igualdade das do sol.
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O pó entrava a fazer-se luz. A imaginação fazia-se realidade no mundo interior.
Da altura do parapeito a Das Dores, a sonhar acordada, como que se debruçava de um castelo fortificado, a desoras, para um cavaleiro de capa e largo sombreiro desabado. Brincara muito com uma figura assim, da tampa de um bocetão oblongo onde mamãe guardava a chapelina. O bigode e a pera do conversado, que parecia ter entrado pela porteira como o padre reitor, eram ver o tipo do primo Vicente. A Das Dores esqueceu desta vez de esconjurar a tentação de Satã. Chegou ao fim do terço e recomeçou. Proferia as santas palavras suspirando. Era com efeito o primo Vicente, um oficial de artilharia, que a imaginação fizera entrar, a cavalo, no ''russinho'' do padre reitor. A Das Dores admirava-se de ter guardado tão bem as feições dele, por modos a sentir-lhe até a respiração, a ouvir-lhe o timbre da fala, e a sofrer no rosto uma forte impressão de choro, de saudade, de amor, talvez!
Ali, no impalpável do ideal, na fantasmagoria, da natureza, ao aroma penetrante das árvores, pensara coisas, de que, no dia seguinte, quando a brutalidade do sol com a sua grande risada universal de luz e de calor penetrasse tudo, ela pasmaria e teria vergonha. Pois a Das Dores era lá rapariga para apertar um mancebo a dizer-lhe
Entretanto era tão inocente aquela paixão pelo primo! Ela não procurara, não fizera cavilações. Viu-o, gostou de olhar. Um moço de estudos. Tornou a ver, e ambos gostaram de olhar-se. Mais nada. Sonhou. E veio logo a idéia natural, o casamento, com todo o adorável cortejo das encantadoras ingenuidades do primeiro amor.
Como era esperado, de manhãzinha o pai veio buscá-la. Acordou mais cedo porque era preciso fazer um ramilhete de flores silvestres para pôr num jarrozinho de búzios que ela fizera para presentear a mamãe no dia de seus anos. O carro parou lá fora, no chão duro. Depois da missa, o pai foi cumprimentar ao padre reitor, com quem trocou uma pitada, e beijar a mão às irmãs. Das Dores abraçou as companheiras, tomou café, e desceu muito alegre os degraus do terraço, abrindo a sua sombrinha de seda, e de vez em quando deitando para trás um riso de amorosa con-fraternidade, como quem diz:
E a sua antiga preceptora, de pé, no último degrau da escadaria exterior, ainda a olhava, quando ela pisou no estribo; e pelo movimento das asas da cornette via-se que a boa senhora balançara a cabeça como afugentando a mosca importuna de um pensamento mau ou de desgosto. O sol batia fortemente na caixa azul do carro, ao arranco da parelha, e ouvia-se o estalo do chicote agitado no ar. O veículo navegava mansamente procurando a areia menos frouxa, até desaparecer por detrás de uma ribanceira. A Irmã teve uma forte recordação da lenda do rei de Thule, cuja taça, jogada ao mar, virou e revirou e desapareceu.
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Entrou, apertando os beiços.
''C'en est fait, mon père''
Com toda certeza a Das Dores não podia ser Irmã de Caridade. Entrava pelos olhos. As provas mentiram. O seu amor pelo Colégio viera desmaiando até dar num esbatido que fazia transição para outro género de afeições. Por isso é que a Irmã dizia penalizada ao reitor:
O padre era um homem sábio nisso de vocações. Incumbido da acerbissima e delicada missão de preparar os moços para as ordens sacras, quanta desilusão não tinha sofrido! Acontecera muito o seminarista ser um predestinado, e o padre um réprobo. Assim, o seu proceder cifrava-se em uma negativa constante. Salvo rarissimos casos em que dizia ao ordenando:
Quanto à Das Dores, disse-lhe francamente:
Estas palavras a menina recebeu-as de peito cheio. Um alívio.
Ao lado do pai, ao corredio deslizar das rodas por sobre o tapete luzente das areias batidas pelo mar, o corpo, desaparecido na seda preta, agitava-se de molécula em molécula, como se a faculdade imaginativa estivesse nele todo, desde as veiazinhas invisíveis da unha até aos ignotos do espírito. O dia cerrava-lhe as pálpebras a meio. Pendia para o fundo do carro. A odorante carnadura dos seios pulsava levemente. No regaço, entre os joelhos, pousava, ou antes boiava, o jarrozinho de conchas, feito pelas suas bentas mãos, tripulado por umas flores silvestres amarelas, violetas e azuis, com umas folhinhas muito verdes, agitadas de manso pelo ferver daquelas artérias extravasantes de sensação e de sentimento. As mãozinhas gorduchas, metidas na luva de retrós, caíam sobre as dobras do vestido. A seus pés sumia-se uma cestinha de vime. Na boléia, ao lado do cocheiro, faiscava ao sol matutino um pequeno baú de folhas. A direita, o mar, e à esquerda, a praia, avançavam. O pai fazia eternamente algumas perguntas, que ela respondia mais com o sorriso do que com as palavras. Era preciso falar alto, por causa do vento. "Se ia contente, se ainda tinha precisão dos banhos de mar, se tivera saudades deles, isto é, dos pais..."
O bom homem sentia-se bem, com aquela preciosidade a seu lado, que não cederia por todas as riquezas de mar e terra. Caidinho pela filha. Bastante feliz para distinguir, avaliar, e prezar a nova espécie de sensações que lhe nasceram desde que foi pai, era de uma grande avidez por estes haustos inefáveis que sofre uma pessoa quando
O cocheiro não quis passar por debaixo do trapiche, cujo conjunto roxo-terra aninhava-se na areia e metia pelo mar uma ponte suspensa por grossa e longa estacada, muito nua e alta com aquela maré tão seca. Subia um frescor salgado dos poços que a maré deixara, e o arrecife, com uma parte no seco, abrolhava negro e áspero entre espumas e verdes ondas.
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A Dorzinha avisou mesmo ao cocheiro que não fosse por lá. Os trabalhadores que entravam mar adentro com fardos para os lanchões andavam como o pai Adão, apenas com uma guisa de tanga em vez de folha de parreira.
Os telhados gigantescos dos armazéns que formavam a ala avançada das edificações da cidade, sobre as frentes caiadas de ocre, iam-se praia além, presidindo àquela balbúrdia afastada, a que a Das Dores era indiferente, e de que apenas conservou na lembrança uns montes de sacas de algodão, loirejando ao sol. Entraram na Praça da Alfândega,
A Alfândega inda estava fechada, e o trilho, que sobre um estreito viaduto de madeira, corta o pântano coberto de salsedo, que forma a área da praça, tinha apenas um vagão, e vazio, como à espera que se abrisse a grande porta da entrada. No canto, um pé de mongubeira sacudiu para dentro do carro um punhado do aroma doce das suas grandes flores, e o sol acendia uma fita de alvíssima luz no sabre calado da sentinela. Na passagem das sarjetas era preciso prevenir contra o balanço violento. O jarrozinho de búzios, levava-o ela agora seguro contra o peito, como se quisesse salvar de um naufrágio uma lembrança querida. A Rua do Chafariz foi a melhor, porque o calçamento estava muito coberto de capim e de terra molhada, e era pitoresco ir-se beirando uma série de sítios por trás dos quais ia-se avistando a encosta barrenta e arenosa do bairro do Outeiro entreaparecendo aqui e acolá o topete das casinhas de palha, e a gente sentindo-se como próximo a coisas que nunca viu.
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Assim, de um modo ou de outro, aquela criatura que desejava muito e satisfazia-se com o que havia, estava sempre em equilíbrio com o que a cercava. Nisto é que os pais a distinguiam.
O carro deu um vascolejo muito forte, que o velho pendeu um tanto sobre a moça, ao dobrar para a Rua de Baixo. Havia um atropelo de carroças que desciam pejadas de fardos de algodão, de couros, de sacas de café, e de outras que subiam com bagagens de pouco desembarcadas. Em conseqüência, apesar da largura da rua, o cocheiro teve de botar mais pelo brando. Parecia, à donzela, que em vez do ''pai'', quem ia ali era o ''marido''. E isto não era um disparate para a sua índole. Alma simples, não compreendia senão afetos santificados pelo dever. Marido, pai, irmão, filho, amores igualmente sagrados pela natureza e pela religião.
Ia experimentando o consolo suave de uma criança cujo choro
Chegados à Praça da Sé, de onde se desfrutava uma bela vista para a banda de Leste, pararam ao pé do Santo Cruzeiro, porque o Santíssimo ia saindo. Apearam, e abateram-se ante os homens de opa encarnada, três dos quais, iam na frente com a cruz e os lampiões prateados. Quem dera que fosse ali de opa o primo Vicente! Maria, protegida pela sombrada sege, espalmava as duas mãos sobre o peito, e pedia ao bom Jesus proteção para o seu ferido peito. O velho ajoelhava com os olhos na pedra, segurando com as duas mãos adiante o seu chapéu alto. O cocheiro dobrava a perna militarmente, além da sarjeta, e puxava a opa do rapazito que ia atroando a campainha, bem na avançada e perguntava-lhe para donde era.
O rapazinho, que ia caminhando, não podia responder mais. Repetiu-se a pergunta ao sacristão, que vinha com o turíbulo, uma bolsa de baeta e uma toalha a tiracolo:
Das Dores que ouviu isso ficou escandalizada como se lhe fizesse uma desfeita.
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A Rua de Baixo, vista do patamar, para o interior da cidade, descambava para o sul com uma largura de praça; atapeçada aqui e ali por grandes manchas de capim rasteiro.
No ponto onde a rua desaparecia em cotovelo, apresentava-se o terraço exterior do paço da Presidência, um bastião encimado por um gradeamento, em cuja rechã forrada pela relva madura esboçava-se uma arborização, magra e insuficiente para ocultar de todo a fachada. O teto do velho palácio era para a frente assim como uma fronte gigantesca e avermelhada, sobre uma carita miúda e alvaçã; um velho casarão de
O desembargador havia entrado na igreja, acompanhando a filha, que ia fazer oração.
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O cocheiro, enquanto o velho e a sinhazinha demoravam na igreja passeava no adro, pernóstico, fumando o seu cigarro. Dirigiu-se de súbito a uma mulher maltrapilha, que pedia esmola:
Deu à taramela, até achar ensejo de dizer em voz comprida e confidenciosa "que lhe desse a sua esmolinha".
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O Santo Cruzeiro ia a pouco e pouco emergindo ao sol. Um peixeiro que passava carregado para a Feira, parou em frente ao gradil sagrado, de chapéu na mão, aproximou-se, beijou uma das cruzes de ferro cravadas no meio de um círculo no ponto donde sai cada lampião, meteu a mão no uru, tirou um vintém e sacudiu para dentro. O disco de cobre foi tinir no ladrilho, junto à enorme peanha adornada de assuntos religiosos em meio-relevo de barro nas faces do prisma.
As cercanias, à distância, por trás do templo, alçavam os seus coqueiros, as suas mangueiras e plantações, uma povoação de folhagens por trás da de casarias. Para além desses blocos unidos de verdura, adivinhava-se o aspecto desolador do extenso bairro do Outeiro. Uma zona irregular e caprichosa de alegrias da vegetação, entre o mundo da cidade e o vasto aldeamento dos pescadores, dos lancheiros, dos trabalhadores da praia, dos homens do ganho, dos operários, e de uma numerosa população decaída, uns habitando cabanas, verdadeiras covas de palha
Para a cidade, os tetos se destendiam esquentando sol. Na Rua de Baixo, ali pertinho, o Mercado, com as suas paredes cor de sangue de boi, produzia uma zoada alegre, e era assim a modo de uma grande colméia de gente. Defronte dele, ao meio da rua, estacionavam animais devolutos, quase a dormir em pé, sob as cangalhas. Nos armazéns, carroaças carregavam açúcar. Espalhava-se um odor de aguardente, da destilação próxima, de par com o assobio da máquina a vapor.
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O primo não partirá para o Rio Madeira, naquela maldita comissão de engenharia! Mas que lembrança agora!... Pois seria possível que ele abandonasse uma terra assim tão boa como a Fortaleza, onde tudo ama e ri? Que pretensão extravagante a de ir meter-se pelos pântanos infindos da Amazônia! E morrer! A procura de quê? De fama? Ora a fama valia muito menos que o amor que ela sentia rebentar com todo o esplendor e franqueza do sol e do céu da sua terra. E depois... Devia esperar que fossem ambos, casadinhos, porque ela por si era bastante para salvá-lo do Inferno, quanto mais de doença e de flecha do índio! Se os ingleses ainda não haviam conquistado o Pólo do Norte, era porque não se haviam lembrado ainda de ir com as suas mulheres.
Quer em caminho para a Relação, onde ia desobrigar-se da papelada dos processos, quer jogando gamão na roda da botica, ou dando seu girozinho pelos arrabaldes na companhia seleta de uns três íntimos; quer à noite, de papo para o ar, cruciado pela insônia, Osório, a seu
Uma tarde, ainda palitando os dentes, ia calçada acima, em demanda da Feira Nova, com as mãos para trás segurando a bengala ao meio, o rosto para o ar, o sobrecasaco desabotoado como para receber no estômago a frescura vespertina, as costas das mãos aderindo sobre o roliço das nádegas, indo para um lado e para o outro as abas da vestimenta ao impulso das passadas, quando, na esquina, quase abalroou no guapo oficial sobrinho da sua mulher. Fez uma cara fechara para aquele sujeito que não previra que o seu dever seria tomar imediatamente para o cordão do passeio. Ambos, porém, buscaram desvio pelo mesmo lado, uma vez para dentro e outra para fora, terminando pelo oficial, que ia à paisana, safar-se rapidamente pela coxia, e seguir caminho.
Contrariadíssimo ficou o pobre do Centu, porque sentiu-se tão
Continuando a demanda a botica, o apetecido provável sogro punha na pontinha de um silogismo a sua seguinte frase habitual:
E acrescentava:
Principiara a ler Física, depois de maduro, com o açodamento que por último havia por essas leituras; e o seu tiquinho de Química e Biologia, e outros saberes frescais no país, tudo por junto e atacado.
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O boticário respondia-lhe com o seguinte rasgo, saído como das suas barbas impregnadas de cheiro típico da farmácia:
Ficava de queixo caído. Disfarçava,
E gramaticava:
O desembargador de si já era uma dúvida. Que fora magro, alto e envergado, poderia apelidar-se
Deixando o azougado boticário, vinha para a roda da calçada, onde as discussões ebuliam e a tesoura das murmurações tosava, e trabalhava à catana no lombo alheio, os dados se desatando constantemente pelo tabuleiro do gamão ao esfuziar das pedras de ponto em ponto, ao destro manusear dos parceiros.
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Por entre a arborização, as outras faces da praça, esmaeciam ao sol. Ao pé dos troncos, alteavam-se os feixes do marcado de capim.
Os moleques e as crioulas agrupavam-se em torno ao liso cacimbão de pedra lioz, no meio da área, e enchiam os potes e canecões no chafariz da ''Water Company'', um quiosque de ferro, miudinho e bem acabado. Algumas cavalgaduras cochilavam, presas pelo cabresto aos frades de pedra, no perímetro. E mais uma porção de minuciosidades na harmonia do quadro, que o bom homem soía destacar, como geralmente acontece, somente naqueles instantes de atribulação íntima, quando os nervos se tornam aptos acidentalmente para mil variadas sugestões.
Nessa noite queixou-se de nevralgia. Menos verdade; queria evitar dialogações com a mulher, é o que era, convencido de que a sua cara-metade fosse vítima de um quer que seja de doentio na cachola, e por ser um tanto chegado a ''frouxidão'', que outros chamavam ''bondade'', ele, que se tinha a si por cabeça que regula, ia no recavém como o boi cansado, e ela no varal. Resolvido a contemporizar na batalha. O tal nobre sujeito que Fabiana queria incrustar na família era do partido contrário e seria o que se chama uma vileza um integro magistrado virar casaca. A filha não havia de desposar um inimigo político, bem se vê. A ''velha'' objetava, porém:
Mas a ignorância alheia é útil à gente hábil. O finório concluía:
No sábado seguinte foi-lhe apresentado aquele mancebo do encontrão, que o deixara impressionado. Fabiana é que pedia ao sobrinho que fosse lá, ele bem sabia que abaixo de Deus era ela quem mais o prezava neste mundo. O Centu, porém, não era um rapaz influído para certas coisas. Chegado de pouco à sua província, para convalescer de uma pneumonia, de volta da conclusão de seus estudos, evitou sobretudo ir à casa da tia, ele que já não tinha mãe nem pai. Fatalmente inclinado para a prima, receava que a assoberbação de um mal de amores viesse atropelar-lhe, ou antes, cortar-lhe o veio das suas justíssimas ambições. Deveria ser um herói para a humanidade, ou uma vítima, assim pensava ele na sua ingenuidade acadêmica.
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Estava o gás aceso na sala, quando ele entrou com Lucas Pinto, uma espécie de ave de arribação, cultor antigo da afeição dos Góis de Oliveira. Era este Lucas um velho de boca funda, magricela, baixinho, profuso em ademanes e rapapés, e ao subir os três degraus da entrada ia logo exclamando:
Mas encontrando a sala vazia:
E sumiu-se lá para dentro. O mancebo ficou a sós.
Acima do sofá inclinavam-se os retratos do casal Góis de Oliveira,em grandes molduras, e as bolas de torçal verde caíam de cada quadro,nos ângulos superiores, como duas melenas. O papel cor-de-rosa com floreios de veludo e avivamentos doirados, na parede, ia bem com as sensações de um amante. As bandeirolas e as portas, muito alvinhas, coma indiferença da matéria inerte, e o botão azul dos trincos, pareciam prestes a dar entrada a ''alguém'', e esse alguém o oficial temia que fosse a prima.
O assoalho ocultava-se aqui pelo tapete, e ali aplainava-se com asua alternativa aurinegra de tábuas de pau-cetim e de acapu. Um soprozinho de ar fazia tinirem ao de leve os pingentes do candelabro que descia do florão do estuque. Encaixilhados em jacarandá subiam dois espelhos rente à parede, bilateralmente à porta do corredor, reproduzindo porções da quadra. Uma mesa octogonal aparava a luz cheia, dos bicos de gás, no centro, e por sobre os bordados a lã, da coberta que a forrava,
diversas preciosidades jaziam, como fossem o álbum de retratos, uma corbelha de cartões, duas brochuras, e, bem de frente para o oficial, que se empertigava no sofá, o retrato de Maria das Dores, num quadrozinho de metal. O boné ele o havia posto ao pé de si; mas começou a entender que isto era matutice. Depó-lo sobre a mesa. De pé, no meio da sala,
Antes de abrir o fecho do álbum pegou no quadrinho da fotografia que alevantava-se quase à beira da mesa.
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O primeiro encontro deles, pois quando embarcou para o Rio ela "ainda não era nada", havia cerca de dous meses. Foi logo ao chegar. De carruagem ela, e ele puxando a guarda da Cadeia, no ordinário, ao berro da corneta. Olharam-se forte, de longe, fito.
Depois que ela voltou do Meireles, encontrou-a na Sé. Estava Mariinha em uma tribuna. Tentaram-se à vontade com o demo dos olhos. Ao sair, não pôde se dominar, e foi beijar a mão da tia,
Logo nessa tarde passou pela janela da prima.
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O papai não tardava, tinha ido visitar o conselheiro Sucupira, que chegara do Rio. A mamãe estava no oratório acabando uma promessa. E dizendo, ela puxava uma cadeira para a mesa do centro, fazendo por estar muito familiarizada. As mulheres! Ele afastara-se para o sofá.
Maninha lançava um olhar para a rua deserta. Os lampiões não seriam acesos senão ao pôr da lua, e um nevoeiro desde pela tardinha fechava o alto firmamento. Um desejo romanesco atormentava-a para que fosse debruçar na janela, e de lá chamasse a atenção do moço para alguma nonada, e que este fosse a aproximar-se dela, e ambos
A luz do candelabro deveria estar mais à surdina... A fina claridade do gás não frisava com a nublada sensação que eles sofriam.
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E a menina, com o cotovelo à beira da mesa, recostada na mão a face direita, como alheada. O mancebo poisava-lhe no todo o seu olhar de sol. Coitados! Separados, tinham um livro inteiro a dizer-se; aproximados, o anjo com a espada de fogo, fria na sua incandescência cruel, cortava-lhes não a volta, mas a entrada para o paraíso entre real e ideal dos assuntos de amor.
De repente a donzela feriu o silêncio com um estouvamento de ave:
Ela riu do timbre com que ele respondeu.
Ela não soube o que replicar.
E calaram-se.
A menina arrepiou carreira no assunto, porque receou denunciar-se mais, com a exaltação do momento. Aquelas palavras seriam sementes bastantes para plantar no cérebro de Centu mais um pezinho de cogitações. Estava entrançado o fio daquela inclinação recíproca. Ambos verificaram que se queriam por um ímpeto orgânico. Tiveram por felicíssimos aqueles instantes, bem pode que os pode ser os melhores da sua vida.
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Como fugindo não sei a que, ela precipitou-se para a cadeira de balanço.
Horrível para ele, horrivelmente atormentadores aqueles dois pés que apareciam agora na fimbria da saia, ora tocando no tapete, ora
A barulhar com a sua prodigiosidade de língua, veio o Lucas, e
As brochuras eram ''O Guarani'', de José de Alencar, e ''O Seminarista'', de Bernardo Guimarães.
O engenheiro, positivamente, não podia deitar opiniões, devido à sua ignorância e animadversão por isso de letras e artes. O nome de Alencar lhe soava mal. Havia a fama deste eminente escritor em conta de cavilosidades dos brasileiros. Diga-se o certo: o Centu falou menos verdade quando assegurou à Das Dores que amava o Ceará. Como escrupuloso, todavia, em questões intelectuais, e não querendo passar pela vergonha de dizer que ainda não lera aqueles livros, pronunciou um juízo, fiado na reputação popular e universal dos dous escritores brasileiros. E para se tornar agradável à prima:
Foram interrompidos por uma voz da porta da rua:
Agora sim, o primo estava de dentro. Expandiu-se com o velho, que era homem lido. Casaram as simpatias. Fabiana veio com a sua volumosa corporatura de barco ronceiro. Trazia vestido com decote, à antiga, pulseiras, colares e transelins de um ouro brutalmente precioso e trabalhado, e um grande e cravejado pente, no cocó grisalho, que parecia um astro nascendo detrás da cabeça, dentre as névoas do cabelo idoso. O rosto, ainda liso. A dentadura imprimia na voz um sotaque esquisito, como se tivesse uma coisa no céu da boca. Excelentes maneiras, linguagem muitíssimo pinturesca e errada, onde cada palavra ela soltava como se
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Senhor, que nobreza era aquela no Ceará moleque?! Enfim, como não conhecia aquilo bem...
O ''velho'' obrigou a filha a ir para o piano, o que foi para esta uma doce violência. Estava desafinado, pretextava a menina. E depois, era um piano tão ruim...
Aprumada no tamborete, a cintura da donzela vinculava-se nitidamente disfarçando para o suave piramidal do tronco jungido no espartilho; as duas tranças negras, desprendendo-se pelo piloso e pelo nu do cangote, escorregavam pelo dorso e beijavam finalmente o alcantil das ancas luxuosas. Cantou:
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em voz pouco forte, ressoante, e timbrada. Nem uma vez a altura da nota foi mais do que a do sentimento. Quando dizia:
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acolchoava o som, como se tapasse as válvulas da alma. Arrancar do coração o teu nome! Nem por morte! E se às vezes gemia, ou se cantava, não é certo.
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O engenheiro, em alívio da forte carga de sensações que pejava-Ihe o organismo, dirigira-se à prima, efusivamente. Que o piano era excelente sob as suas mãos, que não ouvira ainda magias assim, que até aquele momento desconhecia que o som tivesse tamanhos poderes...
O estudioso mancebo começava, conquanto longinquamente, a acreditar na Arte, e na sua necessidade. Imaginava agora o homem uma ave
Chovia, quando entrou em casa. Por coincidência, habitava uma república, ao lado da botica da Feira Nova, cuja roda entendeu útil freqüentar dali por diante.
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Não tornou no dia seguinte à casa da tia; ao contrário, ia raramente, o que não obstava que visse muito a Mariinha. O que receava, como homem não feito ao trato diário com o sexo oposto, era estar juntinho dela, principalmente a sós, porque julgava então apoucar-se, parecer seco, sem espírito, desmantelado, e feio. Vê-la, bastava. Na igreja, no teatro, nas reuniões, na janela. Quando ia lá, trocavam flores, não muito às claras. Os pais tinham os olhos vendados; e depois, havia a confiança do parentesco.
Mãe Zefa, uma preta alforriada que vivia do seu tabuleiro de arroz à noite, e de hortaliças pela manhã, servia-lhes para certas embaixadas, e contava a cada um, coisas do outro. Entrava sem cerimônia na república, chalaçando com os companheiros de Centu que lhe batiam nas nádegas e faziam-na dizer palavrões, e semelhantemente, furava pela
Maria das Dores tinha notícia dos lugares por onde o Centu andava, e sabia quando estava de serviço, a que horas tomava banho e lia os jornais e estudava. De uma às duas da tarde era certo ele passar do quartel fazendo o caminho mais longe; e ela, se acontecia não aparecer, havia motivo; pelo menos, via-o pela rótula. Deu para trabalhar na sala todos os dias àquela hora. Era morta e viva ali.
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negras que eram o ladrilho, assentava um ligeiro armário cujo mostrador expunha preparados estrangeiros encapotados em lindo papel pomposamente impresso; quando se abria este móvel, espalhava-se um capitoso aroma de toucador e de especiarias. Nestas ocasiões o desembargador levantava a questão de ser necessário ou não o luxo nos remédios. O boticário acabava a contenda por dizer-lhe uma aspereza. O oficial achava que sim, que era preciso iludir os delicados sentidos de uma moça, disfarçar a brutalidade do medicamento puro, enganar, como se faz aos bebês. E então o boticário, curvado no seu paletó de seda cor de palha, continuava a triturar, no almofariz, e batendo com o pé em sinal de apoio, dizia encolhendo os ombros:
E depois de uma pausa triunfante, levando a palavra com a espátula às ventas dos circunstantes:
Era este o meio óbvio de Osório se descartar.
Entretanto essas boas cenas eram raras hoje em dia, depois da tal história do Visconde. Não sei que frieza ia pelo desembargador. O boticário, que o prezava imenso, proferia encolhendo os ombros:
Foram escasseando, com efeito, na botica liberal os passeios do Desembargador Osório de Góis. Ora, isto era justamente quando o Centu acabava de ter entrada em tão escolhido círculo. Seria que o velho desconfiasse da coisa? Pegaria o magistrado algum indício veemente do crime d'amor por parte de alguns dos co-réus? E começava o coitado de notar diversas passagens. Em tal dia deu-se isto assim, assim, e ele fez isto, quando devia fazer aquilo. Deixou de cumprimentá-lo tantas vezes, não respondeu a tantas perguntas, falou áspero com a filha em sua presença...
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Voltava de um baile no Clube, onde valsou com a prima. Dera-lhe a mão para subir ao carro, que viu desaparecer no escuro da primeira esquina como um pirilampo gigantesco. Ainda esteve a bebericar com uma troça, por meia hora, os outros gargalhando da sua taciturnidade de coração ferido, e ele sem fazer conta. Pretextou qualquer coisa, mordeu a ponta de um charuto, e saiu, com um forçado ar de riso.
Seguia pelas calçadas desertas. A sua sombra estampava-se nítida na parede, ia crescendo, duplicava, obscurecia, apagava-se na eqüidistância dos lampiões, renascia tênue, desdobrando, pintava-se outra vez ao vivo, e tornava a repetir o mesmo, por aquela atonia das desoras,rua acima, onde só as suas passadas feriam o soturno da noite. Caminhava pelo brando, mão no bolso, tanto pela fadiga, como pela dormência do pensamento. la feliz, la de todo entregue ao seu maior inimigo, o amor; porém o amor imediato, o amor de rabo-
Na entrada da Feira Nova sai-lhe ao encontro um vulto enfronhado em véstia de vaqueiro. Trazia esporas de grande roseta e um par de peias como rebenque. O largo chapéu de couro cobria-o pacatamente como um sombreiro de aldeão que tange o seu burreco; as alpercatas batiam-lhe contra a sola dos pés; o gibão vinha apenas abotoado em cima, e a camisa oculta pelo guarda-peito. Saía-lhe do canto da boca um cachimbo de sertanejo. Pronúncia um tanto arrastada e aspirada por amor desse corpo estranho. Corta o caminho ao mancebo e estirando a mão, como quem vai dar um tiro de revólver, tira o chapéu:
Palavra em como o oficial estivera pronto a fazer uma proeza. E ainda atarantado, rompia o envoltório, sempre com o rabo do olho no desconhecido, cujos cabelos cacheados se mostravam ao gás, e cujo olhar ingênuo punha-se curiosamente no moço.
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O Centu leu. E dobrando o papel:
E voaram os pedacinhos da breve epístola, à luz do combustor, como um enxame de mariposas. O mensageiro repetiu:
O pai da sua Maninha empenhar-se para que ele fosse o comandante do destacamento que ia para as eleições de Baturité, a pedido do Visconde de São Galo!
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Dizia a carta:
▲''"Os governistas, por não terem mais no batalhão, senão oficiais desafetos, indicaram o seu nome ao Presidente, porque ao menos você é de todo alheio às intrigas locais. Disse-nos o major fiscal que não lhe cabe destacamento e que você é adido, e que é de artilharia, e que poderia dar parte de doente, pois que realmente está. Não faça isto. Peço-lhe encarecidamente, como amigo e como parente, que vá. O Visconde, que encontrei em nossa casa, agora mesmo ao voltar do baile, com alguns amigos, também lhe pede por minha intercessão.''
O palavreado ia mais adiante.
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Nem antes nem depois de chegar o dono da casa, as portas estavam abertas. Cerradas, como se houvera alguém adoecido. Era aquilo a graça da maçonaria política, no que a Fabiana sentia um prazer de raça, inato, indígena, dos seus sertões. Quando saiu o portador com a carta para o sobrinho, foi ela quem o trouxe à porta da rua, e quem segredou que o Visconde mandava que rasgasse-a depois de ler.
Mariinha fingia-se despercebida. Quando, porém, de lá do quarto ouviu pronunciar o nome do primo, estremeceu. Parte? Vai fazer eleições?... O seu ímpeto era largar-se na carreira e atirar-se aos braços do pai implorando que por vida de seus olhos não deixasse o Centu
Antônia entrou sorrindo, no quarto, com muitas momices, seca por achar companhia. Uma sagita, como lhe gritava a madrinha Fabiana, que passava o dia a ralhar com ela por mor dos trejeitos, correrias e cavilações.
A outra caiu-lhe profusamente no seio, ela sentada na esteira. Soluçava sentida como a criança que desafoga em sua mãe um choro longamente retido.
Maria se entregava completamente àquela descarga de humores. As idéias ruins, os desesperos, os sentimentos venenosos, saíram, entretanto, pela mor parte, com as lágrimas profusas, como arrasta aos cardumes de peixe o grosso da água de um açude que arrombou. O pior é que a Antônia entrou a fazer duo. Choravam ambas e assoavam à surdina, para que não as ouvisse a velha, que então seria um Deus nos acuda.
A vela, no castiçal de latão, assente no mármore do toucador, duplicava-se ao espelho, semelhante a umas lágrimas.
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Antônia invejava o seu coração não tê-la obrigado ainda a sofrimentos daquela ordem. Com o seu belo donaire de rapariga loira, com uns olhos verdes e uns lábios de carne viva, era toda um desejo. Quase não acreditava que aquilo da Mariinha fosse deveras! Mas a curiosidade a fazia cada vez mais confidenciosa para com a sua morena amiga.
Estava de luto, a madrasta era falecida, no Outeiro, onde habitava mísero casebre. la-lhe bem lindo o vestido preto, que lhe dava uma aparência mais adelgaçada, punha-lhe mais oval o rosto, tornava-a mais séria, acentuava as linhas, e gerava uns fluidos simpáticos. O ouro dos cabelos ondeava no negrume do dorso, e se usasse corpinho decotado, o colo e espádua desbrochariam como pétalas de magnólia, ou como nívea flor do cardeiro no denso da noite. Ansias tinha ela disto! Mas a condição inferior, de filha de um pobre cego, mantinha ainda sua alma deserta das ambições a que lhe dava direito a sua carne. Um alçapão sem engodo e sem chama. Queriam-se, ela e Maria das Dores. Tinha uns arrancos de estupidez, denominado
Ambas sentadas na rede, mãos sobre os ombros, balançavam de manso, com o ouvido atento aos ruídos da sala. Conversavam homens lá fora: a fala, elas desconheciam. Sabiam que estava ali o Afrodísio, Visconde de São Galo, com outras personagens. Maria esperava que o Centu viesse logo ao chamado da carta.
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Uma idéia! teve a capeta da Antônia: passarem para o outro quarto, e treparem na porta, espiar pelas bandeirolas.
Que o Centu estivesse aí, isso sim!
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A Tonha instava:
O corpo lhe pedia, à morena apaixonada, quietação, como exaurido, como surrado. Vinha-lhe uma prostração, e ceder a este convite da natureza, e ao sono, para uma cabeça repleta de imaginárias, era viver. Dê-se que o Centu viesse; inda bem, um moço como ele não havia de
Largou-se a estabanada, num rodopio de saias.
O corredor, apenas alumiado por um bico de gás, e a grade do
Antônia escorregou para o quarto dos padrinhos; uma peça folgada, cheia daquele ressonar de carnes já sem aroma e sem brilho. O guarda-roupa alteava-se de um lado, e de outro avultava a cama do casal, aberta ao ar, sem cortinados, com os cobertores estendidinhos e com um montão de travesseiros. A rapariga estribou na cabeceira da cama, de madeira enflorada, alta cerca de um metro, e segurando a corda que pendia do armador, onde enfiava o punho de uma rede, içou-se até botar o rosto na altura dos entalhes da bandeirola.
Aconteceu bater com um joelho na porta, o que a fez estática um momento, espreitando se ouviram a pancada; precisou morder o vestido para não rir, que aquilo achava graça em tudo. Ouvia o ganir quase impercebido dos armadores da rede em que a ''Bem Bem'' ficara embalançando. O gritito do ferro ia a menos, degradativamente, sinal de que a morena adormecia, porque mesmo ela ficara muito pesada de sono. Mexiam em louças na sala de jantar, havia de ser a Honorata lavando as xícaras da ceia, para aproveitar tempo,
Da sala ninguém via a espiona. À mesa do centro, com umas garrafas de cerveja e copos cheios, sentavam-se o Lucas, que se julgava a si mesmo de um tino político admirável; o Capitão Desidério, da Guarda Nacional, chefe de uma localidade próxima, que viria votar na Sé à frente de um enorme cabroeiro; e o João Batista, caixeiro de escritório da casa Afrodísio Pimenta & Cia., a escrever cartas, por ordem do patrão
Lá num ponto, o desembargador estava dizendo:
Faltavam ali muitas pessoas do estado maior do generalíssimo. O advogado Cunegundes, eloqüente e coraçudo, redator d'A ''Oportunidade'', rábula; vários negociantes, coronéis e comendadores; o cura da Sé; o vigário-geral; uns professores do Liceu; uns juízes de diversas varas; uns chefes de repartição, etc. Donde se vê, pelo número e qualidade, que a honra política do Dr. Osório estava da cor das tábuas do teto, alva.
Continuava, como toda a gente, a militar nas fileiras liberais; adido, porém, aos conservadores; que era preferível pedir pão aos inimigos a dar o beijo de paz nos irmãos. Neste quanto, conversassem com a Fabiana, que aquilo sim, era pessoa de opinião. Quando esta senhora soltava de viés a palavra ''canalha'', era com a limpeza de um asno que sacode um coice para a banda. A gente deve procurar sempre as pessoas de representação.
O conciliábulo não foi muito longe. Era questão de arranjar o oficial para Baturité, que iria ao mesmo tempo revestido das funções de delegado policial.
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Nada mais havendo a tratar, retiraram-se todos. A Fabiana, que segundo as praxes da sua educação, fora para dentro uma vez que os homens iam discutir os seus negócios, que ao menos em aparência não têm que ver com mulheres, compareceu à saída do Visconde, prazenteira, apresentada, ancha.
Sua Excelência continuasse a visitar aquela pobre choupana, que era pobre, mas o coração muito. Se quisesse vir um dia passar mal,
O desembargador nisto era zero. O principiozinho de admiração que lhe ia nascendo pela arguta inteligência do titular, acanhava-o; e tinha que não saberia haver-se em civilidades de mesa, com um homem viajado, e de hábitos, com devia ser aquele. Todavia, fez coro com a mulher.
E até dobrarem eles na esquina, o casal Góis ficou na porta.
Mas diz que amor é uma coisa que faz uma pessoa pensar
Introduzido naquela casa, todas as vezes que a Antônia vinha à sua presença, achava-se ele confortado, feliz, pelo que, entrou a desconfiar que viria a querê-la, e muito.
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Quanto ao seu negócio, o Visconde voltava-se novamente para a luta política.
Como dizia o Osório, convencendo-se a si mesmo que deveria politicar em regra, a política havia rendido muito ao Visconde. Tornara-o nobre. Se ele não se tivesse encarapitado no trono de uma facção, não teria passado de um burguês apenas rico e obscuro. Assim, a tudo dominava. Agora, porém, que já era conhecido na Corte pelos a pedidos do ''Jornal do Comércio'', queria uma luta clara, de idéias, bonita, que satisfizesse a sua momentânea e intermitente aspiração para o bem. Entretanto, meditava ainda o Osório, arrastavam o homem a combater o outro ramo do partido, para o que, era preciso fazer uma liga incongruente com uma facção contrária!!! Ingratos cearenses, não deixarem o Afrodísio subir a grande homem!
Uma coisa era ver o Osório dantes, e outra vê-lo agora. O que olhos não vêem, o coração não sente. Longe do magnata, era como os liberais republicanizados quando os conservadores estão no poder. Uma vez que Sua Excelência dignou-se a respirar o mesmo ar que ele, servir-se da sua cerveja e do seu café, o Osório sentiu-se mais alto. O homem, também, não era tão ruim. Que força de argúcia, de inteligência, que senso
E viu logo todas as possibilidades de chegar a Senador do Império.
Naquela noite a velhusca Senhora Góis de Oliveira voltou aos bons tempos em que a Maninha, em embrião, crepusculava para o dia da vida. A camarinha aromatizou-se de flores de laranjeira. Aquela cama, onde pousara pouco antes o pé sensual da Antônia que deixara ali como que o rastro dos seus doidos pensamentos, rejuvenescia, como se a loira tivera soltado um demônio dos muitos que turbilhonavam nas suas saias. Não abriu-se o oratório, fizeram as orações da noite à beira do leito, num pelo-sinal garatujado e numas ave-marias aferventadas. Contentaram-se com a luz mortiça da lamparina, que através do copo espargia na toalha um círculo cor de rosa. A Fabiana deitou-se primeiro. E entrou numa confusão de amor e de sonhos. Transportava-se aos seus dias do sertão. A modo que ouvia o chorar do carro ao longe, a vida dos currais, e o
Acontecia sempre, à Fabiana, nos momentos felizes, sentir uma forte ressurreição dos seus dias de moça, e ao Osório uma certa fixidez pensativa no olhar. Para Fabiana o real era o passado, que deveria reconstruir-se; para o marido o amanhã. Foram encerradas as discussões acerca do casamento da Maria das Dores. Estavam de relações travadas com o titular, e agora iam de vento em popa. O Osório não tinha fé. A ação deste homem era não agir. A sua filosofia prática, e a sua religião cifravam-se no dogma dos ociosos
A habitação do casal Góis mudou, como o ar quando o inverno fecha. Rebenta a babugem, o grão de areia sente a pressão da água e da raiz, o pêlo do gado aveluda-se, as borboletas ressuscitam, os anfíbios se desenterram; passou a grande síncope da seca, a estiação da natureza.
É verdade que o desembargador continuava a pôr-se de pé às cinco e meia, vestir a calça, às vezes sem botar de todo a camisa para dentro, e em seguida ir para o gabinete ler os jornais que achava metidos pela rótula. Era entretanto nova a impressão que lhe fazia agora a leitura.
Daí, Angela trazia-lhe o café, ele virava a xícara, devagarzinho, fungava uma pitada, e ia estudar o seu pouco. Banhava o rosto, ou banhava-se todo, perto do almoço. A amofinação dos trabalhos do cargo era para as onze, ou para a noite. As tardes continuavam para a prosa.
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Com a mulher, ainda rezava, quando não podia pretextar sono. Dizia-se católico, porém os outros o tinham por livre-pensador.
A Fabiana ficou muito maçada porque o sobrinho não veio tomar-lhe a benção antes de partir para o Baturité. Perguntou ao marido a razão, este respondeu que, naturalmente, a pressa da viagem. Maria das Dores, porém, não admitia isto. Sentiu-se muito, mas não deu mostras. O que pareceu é que Centu estava esfriando. Já havia deixado de passar de tarde, a horas certas. Ora, ela não fizera coisa alguma que motivasse esse desprezo. Mãe Zefa, pelo seu lado, jurava que o rapaz não tinha namoros por aí. Mas a menina duvidava ainda, afiançando que onde quer que fosse existia alguma tipa que o estava a seduzir. Tinha raiva dele, muita, e
Uma dificuldade surgiu desde o princípio, o disfarce. Conhecia o gênio. da mãe, e teve de inventar quanta doençazinha galante existe, quando, estando ela sob o domínio de tredas impressões ou de brandas cismas, a carnuda senhora inquiria:
Não gostava de sair tanto. Para ver o quê? Em casa figurava-se num convento. Fazia de conta que tinha ido ser Irmã de Caridade, como desejou em menina. Lia tudo que dizia com amores, que quase sempre acabava em desgraça. E um certo quê de imaterial que as mulheres costumam ter levava-a a conceber o amor infinito, a idéia de noivado no sepulcro, de casamentos no céu. A beleza, que se lhe viera desabrochando pelo manso e progressivamente, parou o seu curso, e a par de uma deliciosa expressão dolorida nos olhos negros, a face era menos acentuada, como se todos os dias se lhe pisassem as feições com o choro.
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Logo naquele tempo, haviam de os pais introduzir pessoas estranhas em casa, e forçavam-na a comparecer! De quando em vez estava por lá o Senhor Visconde, um bichão, como ela dizia, sem jeito para nada, que parecia primo do bodegueiro da esquina. A menina olhava admirada para a mãe, quando esta disparava, em quanto elogio há, para com ele:
O Lucas entoava pela mesma cartilha. Maria comparecia, de propósito, mal penteada, à mesa, e com uma cara de enjôo. Queria ter o prazer de desagradar. Ao piano é que não podia resistir, nem fingir; mesmo que fosse tocar para o maldito Visconde e sua comitiva. Não podia: o sentimento fervilhava nas teclas, daqueles dedos que tantas vezes retorciam-se no desespero, e o som das cordas, de dentro, só falavam no Centu, daquele rapaz franzino que lhe parecia forte como um gigante, da sua fala virgulada, do seu riso parco e caçoador, e do seu coração rico de segredos e de surpresas. Também, pensava ela, mal ou perfeitamente que tocasse, equivalia, para aquele troço de homens sensaborões.
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E então, ajustaremos conta! ameaçava ela como se fora de fato sua mulher.
Uma tarde, no quintal, colhendo ela umas rosas para os santos, chega-lhe a Antônia devagar, quebrando uma folha entre os dedos:
Esfregava as mãos, de contentamento. Maria fez um ar de escandalizada. Havia algumas semanas que aquele homem entrara ali. Pela insistência da mãe, percebera que desejavam-na para noiva dele, e mais ainda, que ele é que queria casar com ela, que uma poderosa paixão o fizera angariar a difícil amizade do pai. Havia estudado até a resposta a dar à mãe: que se decidira a morrer solteira.
E largou a rir irresistivelmente.
Maria calou-se. Olhava para o sol espalhando-se por cima dos teIhados do quarteirão. Tocaram na corda sensível. Entretanto, artificiosa e vingativa quando ferida, a vaidade natural do sexo comungou consigo um
Ângela atravessava o quintal, carregando água, com o pote aprumado na cabeça. Ouvia-se a ralhação biliosa da Fabiana, com a crioula Honorata. Maria lembrou-se de interrogar a cabrocha, e foi. Entraram pela sombra do tamarindeiro, por cuja folhagem renascida, miudinha e basta, não era fácil descer o sol, tendo sido preciso, até, mutilar uma linda ramada para a luz ter franquia com o seu cortejo de ar e de aromas até as profundezas da cacimba, ao pé da árvore, por modos que quando a crioula Honorata vinha puxar água a desoras via lá dentro os olhos arregalados das estrelas. Ali o chão era fresco, entulhado para o pé do muro do fundo, e no canto do galinheiro, por fora, entre as brechas de um montão de caliça antiga, nasciam urtigas e camapuns, entressachados por uma primavera.
E a cabrocha, com os seus braços ainda não recheados pela puberdade, puxava a corda, ao ganir intermitente do carretel. As abelhas zuniam no tamarindeiro em flores, que exalavam um perfume ácido.
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Uma réstia, pela telha de vidro, rolava-lhe por cima a sua muda cascata de sol; e com a lentidão do ponteiro das horas umas pequeninas ovais incandescentes estampavam-se pela esteira. As mãos da menina tremiam, como o pestanejamento das estrelas em véspera de chuva. Sombra de uma ave que passa, fendia o cimo da carta a seguinte invocação:
:"Minha adorada prima"
Como no engenho a cana, que uma vez apontando entre os cilindros, vai-se toda, ela não pôde parar na leitura, e no espírito, pela calha invisível das sensações, derramava-se o sumo das palavras, que havia de fermentar. Deslizavam, as linhas, palavra por palavra, e vírgula por vírgula, tudo, vividas, animadas, fonógrafo a repetir a voz cativadora do namorado, que as pronunciara, que as sentira, que as escrevera. O papel cheirava a mais! Era cor de rosa. Dobrava em cruz; e no canto superior, em caprichoso monograma um V e um M, Vicente Moura, que a menina lia
:"Primeiro que tudo peço-lhe desculpa de uma grande falta, que espero você me há de perdoar no seu coração. Eu sei o que se passa em mim, só eu sei o que sofro. Se nãd fosse para fazer os gostos a seu pai, eu tinha recusado o serviço deste destacamento. Não me aconteceria nada, porque vim para o Ceará por doente, e qualquer doutor me dava um atestado.
:"A minha vontade, querida Maria, era implorar-te que te esquecesses de mim para todo sempre, porque... Ora, enfim perdoa-me isto, que a minha cabeça não está regulando.
:"Abri os livros e não pude estudar; aborreci a meticulosa calma, o processo fatigante e absortivo dos estudos; aquilo que era o meu maior prazer neste mundo! Desde que afastei-me daí, o meu amor cresceu desbragadamente. Só acho graça, só compreendo mesmo os livros que me emprestaste; ''O Guarani'' e ''O Seminarista''. Que incompatibilidade haverá entre o amor e o estudo, entre a arte e a ciência? Estas questões não estarão talvez ao alcance da tua feliz organizaçãode mulher, eu escrevo-as, todavia, porque não posso escrever senão isto. Eu vivo numa tristeza, num "spleen", macambúzio, que já me envergonho. Felizmente o meu sargento é muito brioso e inteligente, e me supre em presença dos soldados. Ah, minha pobre vida, eu que me supunha votado ao sacerdócio da ciência, como os Newton, os Galileu, os Lavoisier, me achar agora cego de espírito! Será possível, Maria, que sejas tu um sol, um relâmpago, que me paralisasse as funções da vida intelectual? Pelo amor de Deus, esquece-me! O meu caminho é diverso. Fica, o amor não é dado a mim, porque aniquila-me; o amor me é morte!
:"''Eppure si muove''. Entretanto eu te amo! Ah eu te amo ainda e sempre!
:Teu
{{d|V.”}}
A menina ficava perplexa.
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Mas como se entendia aquilo? Ele a amava; ele não queria o seu amor, pedia que o esquecesse, e amava eternamente! Então, só ele queria ter o direito de amar? Não quer ser compensado? Ah!? Era bonzinho, meu caro, havia de ser amado, grandíssimo canalha; quer quisesse, quer não!
Foi ao toucador, que ficava por baixo da imagem do bom velho São Vicente de Paulo, no seu eterno sorriso bem-aventurado. Passou o pente no cabelo, assoou-se, imaginou um defluxo nasal para disfarçar os
Entrou no gabinete, estava deserto, era meio-dia, papai estava na Relação.
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A imaginação, de braço dado com o amor, açudava-Ihe no coração os rios do sangue. Pegou na pena e escreveu no alto de uma folha de papel amizade:
:"Ilmo Sr. Tenente Vicente."D.
Não pode mais. Os caracteres saíam tremidos como sombras de varas na água corrente. Indignada consigo, passou o dedo, e borrou. Ficou inerte, debruçada sobre a pasta, julgando-se muito estúpida a si mesma. Queria desabusá-lo, mostrar para quanto presta a filha do Desembargador Osório! Figurava ter o primo junto a si, em uma daquelas cadeiras onde
E tornava, em outro papel:
:"IImo Sr. Meu Primo Vic..."
Agora a pena cortava à guisa de bisturi, e a linha saía da pauta. Com certeza era aquele irônico IP'° Sr. que estava fazendo mal. Venha mais papel.
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As duas tranças, como duas cobras negras, amornentavam-se nas suas espáduas ofegantes, mordendo o cerebelo; e os lindos braços morenos faziam coxim à fronte pendida! O pés, nas sandálias de marroquim, cruzavam, apertavam-se no pano sala, debaixo da cadeira. Um cálido aroma de carnes virgens subia com a umidade daquele suor de agonia e de salvação.
Mansamente veio-lhe o receio de que o pai entrasse, e, disfarçando quanto podia, tornou à camarinha. Fez o que fazem as mulheres em caso semelhante
Em caso parelho, se algum namorado escrevesse à Antônia declarando que agradecia o seu amor; que o esquecesse; apesar de ele conservar o dito amor pela sua parte eternamente, ela dava uma rabanada de traíra, deixando, ao lume da água, numa borbulha, a seguinte
Mas com esta sujeita acontecia justamente o contrário.
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O pobre, com um mês, sem trocar palavra (pois se ia à casa do Osório a recados do patrão, a beldade o evitava de instinto) pespegou-lhe uma carta. A portadora foi a Mãe Zefa. Antônia ficou toda uma alegria: supunha que era do Visconde. O Senhor Visconde escrever-lhe!.., que achado, que fortunão.
E agora, onde ler aquilo bem de seu, com a maior segurança? Ocorreu-lhe a camarinha das regras. Entrou, escondidinha. Uma claridade, encardida, um cheiro de àmoníaco e bodum; a telha escurecida pelas fumaradas da cozinha. Estendeu-se na cama de couro de boi, ao canto, onde dormia, à noite, a penca de moleques. Foi logo à assinatura: ''João Batista do Nascimento!''
Desapontou! Batia-lhe o coração, de insultada. Sentia um buraco no peito esquerdo, como se estivera com três dias de fome. Esmorecia miseravelmente. Quase teve um faniquito.
João Batista do Nascimento!
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O escrevente pedia licença para ofertar-lhe um vestido. Que pediria a sua mão, quando ela quisesse. Que só ia naquela casa por amor dela, etc. etc.
:"Sei que seu pai é um pobre cego, e que você é quase só no mundo. Seu pai não precisará pedir esmolas, quando nós nos casarmos."
Isto irritou-a. Falar assim naquela mancha negra da mendicância, que era como umas sardas na pele rósea do seu rosto! Lembrou-se de quando o vira pela primeira vez. Que olhar impertinente! Dias depois, vindo a mandado do Visconde, saudou-a muito sem vergonha, deslambido, e daí, continuou.
O pobre não sabia disfarçar. Gostou da rapariga. Desconhecendo, porém, completamente a vaidade e suscetibilidades femininas, julgou que o maior agrado seria pedi-la chatamente,
De bruços, no couro cru, Antônia, meio pasma e meio enraivecida, erguia os olhos de bichano para o altar das crioulas. Diria que sim? Mas antipatizava horrivelmente com aquele rapaz, sobretudo ao ver que ele, vinha com isso de amor. Ante ele, depois dessa idéia de fundirem-se os corpos e a vida de ambos, tinha sensações de um sezonático ao pôr a vista em carne crua. Quando ele apertava-lhe teimosamente a mão, sentia ela uma impressão fria e pegajosa, e se lhe revoltavam as entranhas.
E repetia a frase instintiva, dolorosa:
O João de Paula, estava ali, pelo poder sugestivo que se obrava nela, naquele raro momento. A filha escutava, no tijolo, as pancadinhas do seu bastão, guiando os passos, e sentia-o passar a mão pela parede, como fazem os cegos na rua. Mirava, sem rumo, os santos do oratório das escravas, destas cuja fé era assaz vidente para não descobrir as disformidades de uma Santa Rita de venta chata e de um São José de pernas de beribérico, desde que eram imagens benzidas. Sim, aos pobres negros tanto rendia um Cristo pançudo como um de barriga no espinhaço; era o mesmo Bom Jesus dos Aflitos; o mesmo cujo sangue era tão rútilo como o do Dr. Afrodísio, ou como o do preto velho Mané Corre que fedia a cachaça e a masca de fumo.
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Antônia procurava como que uma resposta inspirada, no pedaço de parede reverenda. Olhava para aqueles trapos de papel pintado, um pouco acima das malas incrustadas de remelas de cera de carnaúba, salpicadas de sangue de pulga e empoeiradas. Parecia estar no terço das Almas, a que vinham os crioulos, tirado por ela, que se fazia muito rogada para isso, lido num caderno antigo distribuído por Frei Serafim. Com certeza a cantoria instintiva dessas mulheres degradadas era supinamente mais comovedora, expressiva, incomparavelmente mais rica e cheia de alma, do que a das meninas do Colégio. De um ritmo saudoso, bastava entoarem o primeiro trecho:
<poem>
"Abrirei meus lábios, em tristes assuntos
Para sufragar os fiéis defuntos..."
</poem>
e transfigurava-se aquela camarinha imunda, em fantasiosos compartimentos do Purgatório. A corda de roupa, que lhes era o guarda-vestidos; as redes amarelentas entrouxadas entre os cordões do punho do armador; o vão do telhado, fusco pelas fumaradas do fogão vizinho; o tijolo catingoso do mijo dos molecotes; o bodum que recendia com um enjôo de panos abafados: a triste indecência daquelas mulheres sem direito de amar; os cafundós de sob o vasto leito de couro cru; os velhos trastes imprestáveis que os senhores botavam pr'aí; desaparecia tudo na íntegra da impressão auricular. Duas velinhas de vintém, pregadas no tampo das malas, alumiavam parcamente a caixa de cedro, feita pelo cabra Teodoro, suspensa na parede forrada, apinhada de santos, entre os quais pompeava o S. Benedito de beiço vermelho e grandes olhos limpos, com um resplendor de níquel.
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E Antônia, estirada na cama de couro, de vestido preto, com a sua tez, cujas imperfeições apagavam-se na penumbra, e aqueles cabelos dourados, estava mesmo uma pintura. Entrasse ali agora o Afrodísio! Aquele para quem ela se sentia de todo inclinada! Sonhava desposá-lo.
Teve um susto com esta idéia... O painel de madapolão, que, na parede, acima do nicho, com abundâncias de tinta azul e amarela, ex-bandeira das novenas do Rosário, seguro com preguinhos, abria-se como um pássaro de grandes asas, a modo que agitou-se como se ainda
Enfim, foi-se o mau pensamento. O pano continuava estendido, com a sua rígida pintura estraladinha como o vidrado de louça velha, e a imagem de Nossa Senhora, a virgem das virgens, na sua pureza imaculada.
Na sala, aproveitando uma discussão que os pais travavam no gabinete, Maria das Dores lia a segunda carta do Centu. Parecendo-lhe um olhar em cada poro de parede, balançava-se na cadeira de vime, junto à mesa do centro, muito aplicada com um livro que abria ante si, com as duas mãos: ''Lições de História Natural'', muito recomendado pelo velho.
Assim, podia vir quem quisesse. Não estava para aflições: uma página, intercalada, era a preciosa cartinha, que dizia assim, com uma letra demorada e rabiscada:
:"Querida Maniinha:
:Me deste uma lição de mestre! Não me confiaste uma palavrinha sequer. Oh! crueldade! Uma folha de independência metida num envoltório de papel avermelhado, com o meu endereço, eis aí a
:E eu acrescentarei: Antes de partir para o Rio, sem conhecer-te, já eu te adorava em ideal. Entretanto, nunca eu me achei como agora. Tenho um pressentimento de que a minha carreira será cortada, se me casar! Que situação dolorosa a minha! Não sei o que será de mim. Por isso é que o meu desejo era isolar-me, pronto para naufragar, mas sozinho! Bem vês que o meu amor é muito maior do que julgavas. Estou doido de amor, mas é dura em mim a pertinácia do bom senso. Eu não estou doido inteiramente, antes o estivesse.
:Desde que resolvi entregar-me simplesmente às forças naturais, tirar à minha vontade o direito de imiscuir-se em tudo que não seja o estudo e o trabalho, passo melhor, leio, rio, faço caminhadas de recreio. É verdade que me dizem melancólico, e me chamam filósofo; e eu me sinto muito sensível. Isto, porém, é o amor que me gravaste, que me aguçou a percepção externa, me afinou os nervos e os sentidos.
:Bendito amor...
:Eu ia pondo aqui uma adversativa, ia dizendo um mas... que te faria muito mal. Não quero, porém, agravar a tua ferida.
:Teu
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Se com a outra carta a menina desapontou, com esta muito mais.
Esta frase veio num turbilhão histérico; a menina largou o livro e levou as mãos ao rosto, sacudida pelos soluços.
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Melhor não se importar mais com aquilo. Abafar, com subido heroísmo e frio disfarce, o sentimento; fazer como à baleia fisgada, dar linha, até o cetáceo cansar ou desaparecer. Mas, se começasse a ficar magra e amarela! e ele viesse de repente, vendo-a desfigurada... Que jeito? Dieut le veut. Seguiu o conselho que lhe dera o padre reitor, para as atribulações:
E depois que o pai saiu para a rua, foi ao gabinete, tomou uma folha de papel de carta, escreveu transversalmente, em grandes e frisantes caracteres: ''DIEU LE VEUT ''Dobrou, meteu no envoltório e subscritou ao primo.
A tarde esteve bonita. Ela saiu de carro com o pai.
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Fez-se um crepúsculo quase nu. O Poente empastou-se por uma nuvem parda e lisa, por entre as brechas da qual saíam vislumbres fulvos que iam colorir as ligeiras névoas salpicadas aqui e ali pelo firmamento.
A Das Dores fora à capela de Lourdes com o pai fazer umas orações. Mandada pela Fabiana. As Irmãs entraram, ao bater da sineta, para a ceia, depois de no parlatório entregarem à antiga educanda a chave da capelinha. A porteira seguiu os visitantes com o seu paletó quadrado e o seu beato andar de leigo fervoroso, conversando piedosamente, narrando os últimos milagres da Senhora de Lourdes. Atravessaram uma área de jardim. O desembargador meteu a chave na porta. Abriu. Dentro era escuro, apenas no ar, ao fundo, a lâmpada arroxeada. Puseram-se às escâncaras três janelas. Então se podia admirar a gruta. A mica brilhava nos papos da rocha; e, numa cavidade alta, aparecia Nossa Senhora, de alvo, mãos postas, pisando em rosas silvestres, faixa azul, os olhos no céu, e em torno um letreiro: "''JE SUIS L'IMMACULÉE CONCEPTION
Prostrou-se profundamente a Das Dores. Ah! dias, que foram! sentimentos escoados para sempre que não há invocar! Do chão ao telhado, até um terço da extensão da capela, amontanhava-se a gruta, que parecia conter as mais ricas pedrarias. A estátua da pequena Bernadete, a quem a Santa apareceu, ajoelhava por dentro da grade, de vela e rosário, olhando para a Imagem. A esquerda aplainava-se na rocha fingida, uma ara para a celebração da missa. Um Cristo e castiçais de prata aí repousavam no morno silêncio. Ao meio da gruta cavava-se um depósito da água milagrosa, vinda de França.
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Estava-se como numa sepultura subterrânea.
Pelas paredes sombrias, quadros do ''Juízo Final'', da ''Morte do Justo'', da horrenda ''Morte do Pecador''<nowiki>; e ao lado da porta principal, fechada, que dava para a rua, escancarado, o armário dos milagres, ostentando per-rias de elefantíases, dependuradas, mãos inchadas e em pústulas, braços cortados, cabeças de crânio roído, ou de boca torta, ou de nariz canceroso, muletas, representações de naufrágios, em desenho rijo, ventres dilacerados, retratos desfigurados, peitos lancetados, pescoços escrofulosos, lombos mirrados pela tísica: a carne nua e podre na mais horrível confissão da miséria humana e do milagre divino. O desembargador examinava, atento, afigurando-se que ainda cria naquilo.</nowiki>
A Das Dores, porém, no genuflexório, pensava era em beber da água miraculosa, para o mal que a minava. Pedia que lhe apagasse o fogo que lhe ardia dentro, a chama excomungada, o ciúme consumidor. De repente lhe havia surpreendido a convicção de que o primo amava outra, alguma filha de rico fazendeiro baturiteense! Que enorme afronta! Esta idéia de traição metera nojo, e trouxera imediatamente uns cheiros vis de impureza e de intestinos, uma lúcida intuição da quanta baixeza a que pode afundir o bicho homem. Ofuscou-lhe a feminina e transcendente idéia do heroísmo. E ficou como as esposas esquecidas e desesperançadas. Representava-se-lhe o ser como uma esponja insaciável. Escandalizou-a, aquilo, como a quebra de uma palavra de honra. Uma sensação de esmagamento. Num mar onde tudo vacila. Um naufrágio da esperança. A alma, da sua pureza de amor, caída na privada onde brotoejam o ódio e as aversões.
"Não se lembrava, a sua antiga padroeira, da pequenina Das Dores que vinha cantar em coro, e o hino delas enchia aquela gruta sombria e sagrada? Já a esqueceste Maria Virgem? Por que a deixas neste mundo maldito? Ah! quando ela renunciou a Satanás suas pompas e suas obras!
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"Ilumina o escuro de sua alma, Senhora, Ave Mana cheia de graça!"
Os ratos faziam uma correria por detrás do zinco e madeiras que representavam a rocha. Um morcego ia e vinha com o seu voar frouxo. Por uma janela entreaberta, para o Oriente, o desembargador avistava um último luzir de sol na trunfa de uma castanheira afastada. Chegavam até ali, claramente, os gritos e vozerios das educandas, no recreio; e uma Irmã saía de dentro da gruta, por um corredor disfarçado, a convidar a Das Cores para o ''Mês de Maria'' no caramanchel dos jasmins, num dos pátios internos. Das Dores não quis. Beijou a mão da sua antiga mestra, saiu e foi a meter-se no carro.
A Irmã, em companhia da porteira, que fechava o grande portão de ferro do jardim, ouvindo-se ainda o forte ruído das rodas no calçamento, fazia balançar no dedo o olhal da tesoura que lhe pendia do cinto, e cantarolava:
<poem>
"''Le monde fait son tapage''..."
</poem>
A perteira curvava-se para correr o ferrolho de baixo, com o &u ar piedoso, não entendendo o francês, nem o sentido mordaz daquelas palavras.
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Ao pisar na soleira da porta do parlatório, a francesa relanceou um último olhar pelo crepúsculo. Nem mais se via um pingo de sol:
<poem>
"''Et l'amour fait son ravage''..."
</poem>
Seria em português cortante: O mundo amotina, e o amor arruína.
Dos extremos do cano meio descido, paralelo à toalha, sobre o serviço de chá, os dois bicos de gás, nas mangas de vidro em forma de meio globo, clareavam suficientemente, sobretudo à calva do desembargador, à direita dos bigodes do Visconde que honrava a cabeceira da mesa. O pente de tartaruga marchetado e duas pastas grisalhas, o riso e parlapatice ocasional, não punham dúvida de que à esquerda assentava Fabiana. Um reflexo doloroso na fala, uma sombra, uma colateral melodia como se com os sons primordiais marchassem harmonicamente outros sons, davam a entender Maria das Dores, a morena, ao lado da Fabiana. Fronteiros a ela, o Cunegundes, redator de A ''Oportunidade'', e mais o Major Secundino, comerciante, barbaçudo e circunspecto. Antônia acoitava-se vizinho à Maria, e era um pedaço de latão arejado junto a uma obra de lei.
O Lucas seguia-se a Antônia, e chamava-lhe sempre Antonina, à maneira dos portugueses.
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Neste entretempo, a menina recebe a terceira carta do Centu e foi caçoando mostrá-la à mãe:
Fabiana estava assentada no banquinho da costura, na sala de jantar. Com os óculos na ponta do nariz, inspecionava a renda que a Ângela fazia, e achava, como era fado seu, pelo menos, preta de sujo. Puxou a almofada para si, e desenrolava a quantidade de renda já urdida; media a palmos, avaliando quantos côvados precisava para um cabeção com três carreiras de entremeios; enrolou a peça e pregou-a de novo na almofada. Angela, de pernas cruzadas, no chão, a seu lado, entrou a trocar os bilros. Largava uns e tomava outros, e quando um ponto ficava dado, segurava-o descendo um alfinete, e assim, imperceptivelmente, ao longo da tira de papelão ia se formando aquele caminhozinho bordado. Maninha gritava do gabinete:
A velha enfezada:
Por certo, uma vez que a menina manifestou-se pelo Visconde, merecia toda confiança. Pudera, boa filha.
Na cadeirinha de pés aparados, Fabiana continuava costurando. Descansava os tacões na travessa de um mocho onde depunha o açafate contendo a caixa dos óculos, o agulheiro, a tesourinha, o canivete, uma laranja de madeira para consertar meias, o coto de cera branca, os
Nos buracos da almofada, nos topos, Ângela guardava um pedaço de rapadura, que roía às furtadelas. Pouco entendia dos conselhos da senhora, e a prova é que saía-se com perguntas tolas, indiscretas algumas, que pasmavam de pejo ou de riso. Faria a primeira comunhão, ia inteirar treze anos, precisava recordar a doutrina...
Esquecera a matrona de que o catecismo é para ser lido e decorado, e que, no seu pensar, negro não se instrui. Foi desenvolvendo os capítulos, que sabia de cor, explicando o melhor meio de decorar, de compreender as sagradas lições. Quando encarava o quintal, nos vidros dos seus óculos, dançava em miniaturas catitas o dia exterior com os objetos que ele banhava.
Um profundo pesar avermelhava-lhe de costume esses fins de conversa de religião: não ter ido para freira em Portugal. A não ter podido, por força da natureza, sustentar as carnes e a frescura de noiva,
Abaixava para Antônia e Ângela um olhar duro, crivado de mistérios e de interrogações. Daí, o desejo da virtude física amadurecia em inveja.
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A Mariinha, teimosa como ela mesma, veio com a carta do primo, sentou-se ao pé da mãe, e fê-la ouvir a leitura.
A carta parecia de rapaz a rapaz. Nem vislumbre fugitivo de paixão. A Fabiana respondia:
E olhava maternalmente a filha:
a idiotar estudando bobagens! exclamou intempestivamente.
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A própria carta do oficial traía-se, apesar da calculada frieza.
Dizia que as eleições tinham-se feito sem mais novidade. Não revelava grande entusiasmo pela vitória dos amigos do desembargador. Estendia-se muito em desenhar a natureza baturiteense, sobretudo da serra, onde passava semanas inteiras, deixando a força entregue ao sargento. Mas escrevia por baixo de tudo, em um "note bem", que a Mariinha não leu para a mãe ouvir, que o estudo não lhe fora bastante para compreender tão apaixonadamente a esquisita natureza da sua terra, se antes, ''alguém ''não lhe tivesse fornecido a chave do cofre dos sentimentos. Repetia a frase dela''. Dieu le veut!'' e acrescentava'': J'en doute!''
O caso é que passou a crise do ódio. Raiva de amantes, que degenera em riso. Veio, antes, dela mesma: entendendo-se traída, e o ciúme subira, como os vermes. Agora passou.
Entretanto, ela sentia
O amor é como um cacho de uvas: toda vez que a carne assoberba devora-lhe uma, até que só resta a vinha da amizade, se não lhe dá a filoxera do esquecimento, do tédio, da repulsa, da saciedade, da aversão.
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Mariinha levou a mão ao peito, o músculo cardíaco era o mesmo, agitando a massa do sangue.
Procurava lembrar-se, ligar idéias, não encontrava em si a faculdade da memória! Pesavam-lhe as capelas dos olhos: dois abalos sucessivos haviam-na prostrado. Restituída a si, ao seu amor, por aquele nota bene que ela não vira a princípio, estava, entretanto, cansada.
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Havia, ali dentro da camarinha, um trescalar longíquo de paixão e de flores. Num ângulo sombrio, pelo punho enfiado no armador, dependurava-se a rede, cujo panejamento dobrado entalava entre os cordões distendidos, o todo parecendo uma funda carregada, as voltas do tecido abraçando-se cumulativamente. Abrolhava escapulida, uma bolota com um pedaço de varanda, em desmazelo de gente nova, em frouxo aconchego. Os cordões do punho desleixadamente enrolado no corpo fofudo e alvo daqueles algodões, apareciam enlaçantes, como dedos que abarcam e afagam. Réstias de sol imprimiam pelo recinto os seus topos acesos, grandes olhos de luz, pequenos caprichos de claridade. Um cheiro de mato subia da esteira, nova, sobre a qual se estirava um par de sandálias de marroquim, com o jeito do pé. Fechou sobre si a porta, cor de folha madura, francate esvazada na parede branca. Armou a rede. E dormiu.
Antônia veio mostrar-lhe o ''Meirinho'', jomalzinho picaresco e jocoso, que trazia umas chavascadas no Visconde; porém recuou, por não acordá-la.
Quando o desembargador foi para o jantar, disse, como costumava, as novidades do dia; entre as quais a nova de que seguira para Baturité um oficial, render o Centu, que tinha de ir para o Amazonas, dois dias depois, por ordem do Ministro, vinda por telegrama.
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Gabou muito a carta que ele dirigira à prima, no sentido de atraí-la para o estudo sério das coisas.
"Se ele fosse outro, acrescentou, cuidava era namorá-la."
Aquele ''post-scriptum'' fatídico a Mariinha arrancara, para mostrar a carta ao pai, avançando que o papel rompera no abrir do envoltório.
Embarcava pela manhã, no paquete brasileiro, o Centu. Vivia agora numa calma feliz, tendo conseguido torcer o pescoço, como ele dizia, ao pintainho do amor. Concretizou, na excursão, vários conhecimentos. Gozou do supremo prazer de colher, comparar, deduzir, induzir, generalizar, formular princípios, lendo no livro da observação, fervilhando na natureza bruta. Indo para a bacia do Amazonas, que antegozo o picava, que curiosidade, que estremecimentos!
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O desembargador, calculava que ele voltaria capitão do Corpo de Engenheiros, ao que o tenente objetava dizendo que era preciso ser transferido previamente para o Estado-Maior de 1 ° Classe.
Enfim, seja o que for, não é motivo para desesperançar. Enquanto aprendo e trabalho, sou feliz. Navego sem pavor de naufrágios. Soçobrando, fá-lo-ei com frieza de marinheiro que nisso vê o seu fim natural. Entretanto, enquanto puder, deito lastros ao mar. Já comecei...
O mais pesado de todos, que por um triz imerge o tombadilho, tanto pesava, foi isso... de amor...
O velho sorria pelo brando. No interior, estava contentíssimo com aquela franqueza bruta de soldado, confiante, decidido e bravio.
O velho passeava de um canto a outro da sala, sacudindo o lenço de tabaco.
O legista ficou em dúvida.
Mariinha que apanhara metade da discussão, e compreendeu a mira das palavras do Centu, aquela obstinada pirronice, aquele torcer da conversa para um só rumo, de caso pensado; tendo apertado a mão ao primo, e ido para a janela, não pôde assenhorear-se, e mal findava ele aquele o venci irónico, ela avançou e atirou-lhe, como se fora uma bofetada a um malcriado:
Proferiu, ou antes gritou estas palavras como a cobra que dá o bote, e o moço ficou como se lhe houvessem abanado os queixos. Mudo e quedo. Cobarde.
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Passaram os minutos, num forte palpitar de corações. O pai a pouco e pouco foi invocando o raciocínio:
Um transporte de alegria relampeou-lhe. Estava descoberto o meio de aniquilar por uma vez a turrice da Fabiana, que queria à fina força casar a adorável criança com o repelente politicão do Afrodísio. E, contra o natural dos pais que se abalam com a simples idéia de entregar sua filha a outro homem, achou conforto.
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Tremente, sibilou pelo buraco da fechadura:
Felizmente, rodava um carro na rua e parou na porta. O Centu, sozinho na sala, veio à janela, e num longo suspiro restabeleceu a calma para o sangue. Como poderia encarar ao desembargador, que era um homem tão estouvado e ingênuo quanto fino, sem envergonhar-se?
Antônia, com um pé no estribo, segurava uma trouxa de sapotis.
O Centu e o Osório vieram recebê-la na porta. Ela tomou para a camarinha, ia desapertar-se, e meter o pé na chinela; o sapatinho de cordovão era uma luva, mas arrochava como os trezentos.
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Antônia correu a guardar os sapotis na despensa, que estavam de vez; os poucos maduros viera comerricando com a madrinha, na viagem. E ficou o Centu de frente com o desembargador:
Esta frase, dita pelo manso, com um certo ar de apoio e superiorperspicácia, puxou ao Centu o inevitável sorriso, irreprimível, amarelo, de quem não acha termos para escudar-se, tão flagrante está a verdade.
E soltava uma gargalhada seca.
Defronte, nos fofos de lã que encobria o mármore como as rendas a alvura de um seio, empinava-se o retratozinho da Maria das Dores, em busto, na doçura dos quinze anos já passados. O olhar fito da fotografia molestou-o, e fê-lo mudar de cadeira, protestando contra o sol que batia nas paredes do Nascente.
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No momento em que o Osório entregava-lhe o cálice, o moço fez uma pergunta, passando de um pólo a outro, com uns ares de mulher quarentona e curiosa:
O velho observa-o de braços cruzados.
Na noite do casamento, disse-lhe:
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"Faça de conta que sempre fomos casados, e todos os dias, no correr dos decénios, julgue sempre que está casadinha de novo. Assim a felicidade não nos abandonará, decerto."
A Fabiana gritava lá de dentro:
Pelas cinco e meia foram jantar. Maninha não compareceu. O pai amparou-a contra as exigências fulminantes da Fabiana que alegava repetidamente gente moça não ter juízo, que não dizem o que sentem cuidando bigodear aos velhos, que devem é levar muita peia, que se enganam aos pais, a Deus não lhe botam poeira nos olhos; e por aqui assim, esvaziando uma grande pipa de bílis.
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A coisa é a Fabiana estar com os seus azeites, e sentir a mínima contradição a uma vontade sua. Não saiu-se como ideara na visita a Dona Porcina; pois que... essa senhora não perdera ainda os seus sonhos a Viscondessa...
Quem pagou o pato foi a Mariinha. Sim, porque nessas pessoas de bilis atroante, a causa do frenesi,
As mulheres quando se encontram se beijam, mas os homens que ouvem aqueles regalados estalidos sorriem e comentam, sabe Deus o quê.
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Fabiana, invadindo o sítio da outra, e chegando à habitação, edificada entre os cajueiros, abriu um grande ar de pasmo topando a Dona Porcina, e fingiu ter-se iludido:
E pronto. A Fabiana estava introduzida. Serviu-se de garapa de cana; foram ver o riacho, percorrer o sítio, e bastou.
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A dona da casa pressentiu que aquela princesa dos sertões ia ali era farejar o rosto do Visconde, e com acinte feminil, dava a entender, tanto quanto permitisse o trato com uma senhora afidalgada, a amizade que o titular lhe dedicava. Só faltava dizer:
Fabiana tinha, por conseguinte, pedra no sapato. Ora, como quando uma pessoa está de mau humor, embora descarregue-o sobre uma dada criatura, a gente sempre toma para si uma parte daquela zanga
A noite, porém, foi à sala. Quanto à cólera brutal da Fabiana, tendo aparecido o Afrodísio, foi água na fervura.
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Aquela mulher tinha consigo uma qualquer morrinha, alguma coisa no interior, assim como a semente de uma doença vagarosa e fatal, um broto raquítico hoje, amanhã viçoso, e vice-versa; pelo menos assim entendia o marido. Um curandeiro matuto que a conhecesse, diria logo na sua experiência, franzindo a cara, com um ar magistral:
Apartados para a janela, em que a Fabiana atirava a filha a conver-sar com o Visconde, o Osório e o Centu discutiam o caso:
Aqui ao desembargador subiu-lhe sangue às orelhas, e dando um passo para trás, largou um prolongado:
O moço ficou como se houvera dito uma grande asneira.
Podia que fosse essa a última noite que o Centu passava entre aquelas paredes, podia que fosse a derradeira vez que o seu olhar modesto se abrisse, como a estrela na noite, imerso, como a papa-ceia com a dindinha Lua, no disco luminoso que irradiava da calma simpatia da Mariinha.
A menina estava uma tagarela. Mesmo com o Visconde,
Cantou o ''Vorrei morir''. Baixinho, como só para o oficial, impressionou-o. E ele erguendo-se, para ela, dizia galanteando:
E disfarçando a folhear o livro da música, aberto na estante do piano diante dela, como à procura de uma peça conhecida, acabou a frase, só para os dois:
Que sorriso com que a moça aureolou esta oração nos seus lábios mudos de pejo e de contentamento!
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E quase que se levanta e diz ao pai, implorativo e decidido, torcendo o boné entre as mãos nervosas:
Embarcou sem despedir-se. O Osório foi do parecer que não era bem aconselhado ele fazer os seus adeuses à Mariinha, porque, a mão de uma pessoa amada que se despede aperta umas certas molas do íntimo, como em certas bonecas, e o sentimento grita. Bem sabia que a Fabiana destinava a sua bonequinha ao Visconde. Que ele, Centu, nãose arreceasse disto, mas que não era curial chofrar assim a Fabiana com uma pedra inesperada!...
Osório ria cínico:
Foram para bordo às duas da tarde. Daí, o Centu viu-se no meio dos camaradas, uns da oficialidade do batalhão, outros da rapaziada paisana, que se lhe tinham afeiçoado, e os companheiros de comissão, boa troça do tempo escolar. Tudo nele transmudou realmente, da terra para o oceano. Quando o escaler, à forte impulsão dos remos, estonteava em cima da onda, ele erguia o busto altaneiro, o mento para o ar,
"O passarinho que comeu o xerém e o queijinho da gaiola, cuidado por mão amorosa e vigilante,quando foge,
Mariinha em casa, estava prostrada. Inventou um estalido. E então, Santo Deus, a sua dor podia gemer alto. O Centu ia naufragar... Quando visse unicamente mar e céu, e no tenebroso da tempestade, aí o vapor afundava... Ela tapava os olhos e dava um grito. Considerava-se viúva. Ah! tornaria ao Colégio, ia ser Irmã!... Mas a congregação não aceitaria mais, ela tinha agora consigo, como a louça velha, as eivas do calor mundano impregnadas de ranço. A Fabiana trazia-lhe bochechos, e ralhava Porque ela repelia o remédio:
Era o que mais doía-lhe dentro: não ser compreendida pela mãe, estar sob o jugo daquele animal tenaz, e desapiedado, com doçuras e crueldades de tirano. Figurava a Fabiana como certos araçás, que tem um lado maduro e doce, um pedaço verde e outro pedrado, e outro já podre. Antes não a tivessem posto no Colégio, se queriam-na inteiramente moldada ao sabor da mãe.
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No dia seguinte, à noite, houve terço com alguma solenidade. Acendeu-se uma vela do Santo Sepulcro, de muitos anos, já com a cor e as manchas peculiares da cera antiga.
À tardinha, teve de arrumar-se de novo o oratório, para hospedar mais uma imagem,
E soltavam muxoxos. Riam como os preás. Fabiana, com os seus óculos, muito aplicada na sua obra, não prestava-lhes ouvido. Lá uma vez ou outra passava um pito em ar de gracejo. Estava de um humor
Fabiana apelidava o Santo Antônio: o seu namorado. A imagem, numa caixa de folha envernizada à água-forte, sob o reflexo argênteo do flandres, estendia-se como um anjinho no seu caixão, ainda cheirando a copal, entre um recheio de fitinhas de papel, à espera de que a arrancassem daquela modorra. Vênus de burela surgir das espumas. Tinha palmo e meio de altura, fora o resplendor. Antônia apanhou o santo num abraço reverente, e pô-lo de pé sobre as suas coxas, sentindo-se bem ao contacto transfigurado e cheio da peanha. A cabeça do amoroso frade e legendário pregador das turbas, muito redondinha, naquele momento, saía do sono de uma viagem em pacote, para fisgar o olhar matreiro nasi feições da loira... Enfiaram-lhe, por um buraquinho do sincipúcio, o
Aquele nunca sofrera de moléstias. Vê-lo é ouvi-lo. O burel, uma sombra. Semelhante ao traje grosseiro das donzelas do campo, em nada
De um embrulho de papel de seda, Mariinha desenrolava o Menino Deus, um pimpolho de carne, fortemente cheirando a verniz, estremecendo em um riso íntimo de infância, espernegando como em travesseiros de cetim e alfazema:
A lamparina, em um copinho roxo,espalhava na toalha odorante a roseiras, um clarãozinho violáceo. A toalha, ao gume da pesada cómoda, caía em cachoeira de rendas e babados, por cima do frontal de damasco eriçado ao de leve pelos puxadores das gavetas, biquinhos de peitos ocultos.
O dia poeirava ali, pouco difuso, parco, sobras anêmicas da perenal harmonia exterior. No campo das paredes bruxuleava um paraíso de quadros bentos, bem-aventurados de diversas condições e idades, mendigo até rei, donzela até messalina, salteador até pontífice, operário até
Fabiana pediu mais claridade para ver bem o efeito da nova arrumação das imagens no oratório. Antônia, mais que depressa, escancarou as janelas da sala, e as portas do quarto; mais uma pouca de dia entrou, e também o vento, que atacou de súbito a um molho de palmas bentas que pendia de um armador, e as pontinhas da palha encarquilhada roçagaram no áspero do caiamento com ligeiros pruridos de lixa. Fabiana sentava-se num baú grande, envernizado, de aldrabas de latão e tendo na fechadura uma penca de chavinhas luzentes; cansada, deixando-se escorregar até à parede, cruzava os braços desleixadamente, apreciando o serviço feito. A saia arregaçara um bocadinho, por modos que os olhitos azuis dos santos perceber-lhe-iam a canela reluzente, com uma roncha de chaga antiga.
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