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Iam-se assim os dias, e assim mais de três meses se passaram depois da noite da navalhada. Firmo continuava a encontrar-se com a baiana na Rua de São João Batista, mas a mulata já não era a mesma para ele: apresentava-se fria, distraída, às vezes impertinente, puxando questão por dá cá aquela palha.
— Hum! hum! temos mouro na costa! rosnava o capadócio com ciúmes. Ora queira Deus que eu me engane!
Nas entrevistas apresentava-se ela agora sempre um pouco depois da hora marcada, e sua primeira frase era para dizer que tinha pressa e não podia demorar-se.
— Estou muito apertada de serviço! acrescentava à réplica do amante. Uma roupa de uma família que embarca amanhã para o Norte! Tem de ficar pronta esta noite! Já ontem fiz serão!
— Agora estás sempre apertada de serviço!... resmungava o Firmo.
— E que é preciso puxar por ele, filho! Ponha-me eu a dormir e quero ver do que como e com que pago a casa! Não há de ser com o que levo daqui!
— Or’essa! Tens coragem de dizer que não te dou nada? E quem foi que te deu esse vestido que tens no corpo?!
— Não disse que nunca me desse nada, mas com o que você me dá não pago a casa e não ponho a panela no fogo! Também não lhe estou pedindo coisa alguma! Oh!
Azedavam-se deste modo as suas entrevistas, esfriando as poucas horas que os dois tinham para o amor. Um domingo, Firmo esperou bastante tempo e Rita não apareceu. O quarto era acanhado e sombrio, sem janelas, com um cheiro mau de bafio e umidade. Ele havia levado um embrulho de peixe frito, pão e vinho, para almoçarem juntos. Deu meio-dia e Firmo esperou ainda, passeando na estreiteza da miserável alcova, como um onça enjaulada, rosnando pragas obscenas; o sobrolho intumescido, os dentes cerrados. "Se aquela safada lhe aparecesse naquele momento, ele seria capaz de torcê-la nas mãos!"
À vista do embrulho da comida estourou-lhe a raiva. Deu um pontapé numa bacia de louça que havia no chão, perto da cama, e soltou um marro na cabeça.
— Diabo!
Depois assentou-se no leito, esperou ainda algum tempo, fungando forte, sacudindo as pernas cruzadas, e afinal saiu, atirando para dentro do quarto uma palavra porca.
Pela rua, durante o caminho, jurava que "aquela caro pagaria a mulata!" Um sôfrego desejo de castigá-la, no mesmo instante, o atraía ao cortiço de São Romão, mas não se sentiu com animo de lá ir, e contentou-se em rondar a estalagem. Não conseguiu vê-la; resolveu esperar até à noite para lhe mandar um recado. E vagou aborrecido pelo bairro, arrastando o seu desgosto por aquele domingo sem pagode. Às duas horas da tarde entrou no botequim do Garnisé, uma espelunca, perto da praia, onde ele costumava beber de súcia com o Porfiro. O amigo não estava lá. Firmo atirou-se numa cadeira, pediu um martelo de parati e acendeu um charuto, a pensar. Um mulatinho, morador no "Cabeça-de-Gato", veio assentar-se na mesma mesa e, sem rodeios, deu-lhe a noticia de que na véspera o Jerônimo, tivera alta do hospital.
Firmo acordou com um sobressalto.
— O Jerônimo?!
— Apresentou-se hoje pela manhã na estalagem.
— Como soubeste?
— Disse-me o Pataca.
— Ora ai está o que é! exclamou o capoeira, soltando um murro na mesa.
— Que é o quê? interrogou o outro.
— Nada! É cá comigo. Toma alguma coisa?
Veio novo copo, e Firmo resmungou no fim de uma pausa:
— É! não há dúvida! Por isto é que a perua ultimamente me anda de vento mudado!...
E um ciúme doido, um desespero feroz rebentou-lhe por dentro e cresceu logo como a sede de um ferido. "Oh! precisava vingar-se dela! dela e dele! O amaldiçoado resistiu à primeira, mas não lhe escaparia da segunda!"
— Veja mais um martelo de parati! gritou para o portuguesinho da espelunca. E acrescentou, batendo com toda a força o seu petrópolis no chão:
— E não passa de hoje mesmo!
Com o chapéu à ré, a gaforina mais assanhada que de costume, os olhos vermelhos, a boca espumando pelos cantos, todo ele respirava uma febre de vingança e de ódio.
— Olha! disse ao companheiro de mesa. Disto, nem pio lá com os carapicus! Se abrires o bico dou-te cabo da pele! Já me conheces!
— Tenho nada que falar! Pra quê?
— Bom!
E ficaram ainda a beber.
Jerônimo, com efeito, tivera alta e tornara aquele domingo ao cortiço, pela primeira vez depois da doença. Vinha magro, pálido, desfigurado, apoiando-se a um pedaço de bambu. Crescera-lhe a barba e o cabelo, que ele não queria cortar sem ter cumprido certo juramento feito aos seus brios. A mulher fora buscá-lo ao hospital e caminhava ao seu lado, igualmente abatida com a moléstia do marido e com as causas que a determinaram. Os companheiros receberam-no compungidos, tomados de uma tristeza respeitosa; um silêncio fez-se em torno do convalescente; ninguém falava senão a meia voz; a Rita Baiana tinha os olhos arrasados d’água.
Piedade levou o seu homem para o quarto.
— Queres tomar um caldinho? perguntou-lhe. Creio que ainda não estás de todo pronto...
— Estou! contrapôs ele. Diz o doutor que preciso é de andar, para ir chamando força às pernas. Também estive tanto tempo preso à cama! Só de uma semana pra cá é que encostei os pés no chão!
Deu alguns passos na sua pequena sala e disse depois, tornando junto da mulher:
— O que me saberia bem agora era uma xicrinha de café, mas queria-o bom como o faz a Rita... Olha! pede-lhe que o arranje.
Piedade soltou um suspiro e saiu vagarosamente, para ir pedir o obséquio à mulata. Aquela preferência pelo café da outra doía-lhe duro que nem uma infidelidade.
— Lá o meu homem quer do seu café e torceu nariz ao de casa... Manda pedir-lhe que lhe faça uma xícara. Pode ser? perguntou a portuguesa à baiana.
— Não custa nada! respondeu esta. Com poucas está lá!
Mas não foi preciso que o levasse, porque daí a um instante, Jerônimo, com o seu ar tranqüilo e passivo de quem ainda se não refez de todo depois de uma longa moléstia, surgiu-lhe à porta.
— Não vale a pena estorvar-se em lá ir... Se me dá licença, bebo o cafezinho aqui mesmo...
— Entra, seu Jerônimo.
— Aqui ele sabe melhor...
— Você pega já com partes! Olha, sua mulher anda de pé atrás comigo! E eu não quero histórias!...
Jerônimo sacudiu os ombros com desdém.
— Coitada!... resmungou depois. Muito boa criatura, mas...
— Cala a boca, diabo! Toma o café e deixa de maldizência! É mesmo vicio de Portugal: comendo e dizendo mal!
O português sorveu com delícia um gole de café.
— Não digo mal, mas confesso que não encontro nela umas tantas coisas que desejava...
E chupou os bigodes.
— Vocês são tudo a mesma súcia! Bem tola é quem vai atrás de lábia de homem! Eu cá não quero mais saber disso... Ao outro despachei já!
O cavouqueiro teve um tremor de todo o corpo.
— Outro quem?! O Firmo?
Rita arrependeu-se do que dissera, e gaguejou:
— É um coisa-ruim! Não quero saber mais dele!... Um traste!
— Ele ainda vem cá? perguntou o cavouqueiro.
— Aqui? Qual! Nessa não caio! E se vier não lhe abro a porta! Ah! quando embirro com uma pessoa é que embirro mesmo!
— Isso é verdade, Rita?
— Quê? Que não quero saber mais dele? Esta que aqui está nunca mais fará vida com semelhante cábula! Juro por esta luz!
— Ele fez-lhe alguma?
— Não sei! não quero! acabou-se!
— É que então você tem outro agora...
— Que esperança! Não tenho, nem quero mais ter homem!
— Por que, Rita?
— Ora! não paga a pena!
— E... se você encontrasse um... que a quisesse deveras... para sempre?...
— Não é com essas!...
— Pois diga-lhe que siga outro oficio!
Ela se chegou para recolher a xícara, e ele apalpou-lhe a cintura.
— Olha! Escuta!
Rita fugiu com uma rabanada, e disse rápido, muito a sério:
— Deixa disso. Pode tua mulher ver!
— Vem cá!
— Logo.
— Quando?
— Logo mais.
— Onde?
— Não sei.
— Preciso muito te falar...
— Pois sim, mas aqui fica feio.
— Onde nos encontramos então?
— Sei cá!
E, vendo que Piedade entrava, ela disfarçou, dizendo sem transição:
— Os banhos frios é que são bons para isso. Põem duro o corpo!
A outra, embesourada, atravessou em silêncio a pequena sala, foi ter com o marido e comunicou-lhe que o Zé Carlos queria falar-lhe, junto com o Pataca.
— Ah! fez Jerônimo. Já sei o que é. Até logo, Nhá Rita. Obrigado. Quando quiser qualquer coisa de nós, lá estamos.
Ao sair no pátio, aqueles dois vieram ao seu encontro. O cavouqueiro levou-os para casa, onde a mulher havia posto já a mesa do almoço, e com um sinal preveniu-os de que não falassem por enquanto sobre o assunto que os trouxera ali. Jerônimo comeu às pressas e convidou as visitas a darem um giro lá fora.
Na rua, perguntou-lhes em tom misterioso:
— Onde poderemos falar à vontade?
E os três puseram-se a caminho, sem trocar mais palavras até à esquina.
Tinham chegado à venda. Entraram pelos fundos e assentaram-se sobre caixas de sabão vazias, em volta de uma mesa de pinho. Pediram parati com açúcar.
O Pataca, como se acompanhasse o pensamento do cavouqueiro, disse-lhe emborcando o resto do copo:
O Pataca acendeu o cachimbo, e os três puseram-se a cavaquear animadamente sobre o efeito que aquela sova havia de produzir; a cara que o cabra faria entre três bons cacetes. "Então é que queriam ver até onde ia a impostura da navalha! Diabo de um calhorda que, por um
Dois trabalhadores, em camisa de meia, entraram na tasca e o grupo calou-se. Jerônimo fogueou um cigarro no cachimbo do Pataca e despediu-se, relembrando aos companheiros a hora da entrevista e atirando sobre a mesa um níquel de duzentos réis.
Foi direito para o cortiço.
Mas recolheu-se à casa, estirou-se na cama e ferrou logo no sono. A mulher, que o acompanhara até lá, assim que o viu dormindo, enxotou as moscas de junto dele, cobriu-lhe a cara com uma cambraia que servia para os tabuleiros de roupa engomada, e saiu na ponta dos pés, deixando a porta encostada.
Jantaram daí a duas horas. Jerônimo comeu com apetite, bebeu uma garrafa de vinho, e a tarde passaram-na os dois de palestra, assentados à frente de casa, formando grupo com a Rita e a gente da Machona. Em torno deles a liberdade feliz do domingo punha alegrias naquela tarde. Mulheres amamentavam o filhinho ali mesmo, ao ar livre, mostrando a uberdade das tetas cheias. Havia muito riso, muito parolar de papagaios; pequenos travessavam, tão depressa rindo como chorando; os italianos faziam a ruidosa digestão dos seus jantares de festa; ouviam-se cantigas e pragas entre gargalhadas. A Augusta, que estava grávida de sete meses, passeava solenemente o seu bandulho, levando um outro filho ao colo. O Albino, instalado defronte de uma mesinha em frente à sua porta, fazia, à força de paciência, um quadro, composto de figurinhas de caixa de fósforos, recortadas a tesoura e grudadas em papelão com goma-arábica. E lá em cima, numa das janelas do Miranda, João Romão, vestido de casimira clara, uma gravata à moda, já familiarizado com a roupa e com a gente fina, conversava com Zulmira que, ao lado dele, sorrindo de olhos baixos, atirava migalhas de pão para as galinhas do cortiço; ao passo que o vendeiro lançava para baixo olhares de desprezo sobre aquela gentalha sensual, que o enriquecera, e que continuava a mourejar estupidamente, de sol a sol, sem outro ideal senão comer, dormir e procriar.
Ao cair da noite, Jerônimo foi, como ficara combinado, à venda do Pepé. Os outros dois já lá estavam. Infelizmente, havia mais alguém na tasca. Tomaram juntos, pelo mesmo copo, um martelo de parati e conversaram em voz surda numa conspiração sombria em que as suas barbas roçavam umas com as outras.
E abriu a mão contra a terra no lugar do peito.
Em seguida enterrou a mão no bolso da calça e sacou um rolo grosso de notas.
E, ordenando as notas, separou oitenta mil-réis, em cédulas de vinte.
Depois separou ainda vinte mil-réis, que atirou sobre a mesa.
E fazendo do resto do seu dinheiro um bolo, que ele, um pouco ébrio, apertava nos dedos, agora, claros e quase descalejados, socou-o na algibeira do lado direito explicando entre dentes que ali ficava ainda bastante para o que desse e viesse, no caso de algum contratempo.
O Pataca entendia que podiam tomar agora um pouco de cerveja.
Jerônimo agradeceu e disse, depois de mandar encher os copos:
E bebeu.
Os outros dois esvaziaram de um trago o que ainda havia no fundo dos copos e levantaram-se também.
Pagou a despesa, e os três saíram, não cambaleando, mas como que empurrados por um vento forte, que os fazia de vez em quando dar para a frente alguns passos mais rápidos. Seguiram pela Rua de Sorocaba e tomaram depois a direção da praia, conversando em voz baixa, muito excitados. Só pararam perto do Garnisé.
Este respondeu entregando-lhe o embrulho dos paus e afastando-se de mãos nas algibeiras, a olhar para os pés, fingindo-se mais bêbedo do que realmente estava.
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