Os Lusíadas/IV: diferenças entre revisões

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|obra=Os Lusíadas
|autor=Luís Vaz de Camões
|seção=Canto Quarto
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|anterior=[[Os Lusíadas/III|Canto Terceiro]]
|notas={{galeria|Canto Quarto de Os Lusíadas|Canto Quarto de Os Lusíadas}}
}}
<poem>
::::1
"Depois de procelosa tempestade,
Noturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento;
Aparta o sol a negra escuridade,
Removendo o temor do pensamento:
Assim no Reino forte aconteceu,
Depois que o Rei Fernando faleceu.
 
:::::12
"Porque, se muito os nossos desejaram
:"Depois de procelosa tempestade,
Quem os danos e ofensas vá vingando
:Noturna sombra e sibilante vento,
Naqueles que tão bem se aproveitaram
:Traz a manhã serena claridade,
Do descuido remisso de Fernando,
:Esperança de porto e salvamento;
Depois de pouco tempo o alcançaram,
:Aparta o sol a negra escuridade,
Joane, sempre ilustre, alevantando
:Removendo o temor do pensamento:
Por Rei, como de Pedro único herdeiro,
:Assim no Reino forte aconteceu,
(Ainda que bastardo) verdadeiro.
:Depois que o Rei Fernando faleceu.
 
:
:::::23
"Ser isto ordenação dos céus divina,
:"Porque, se muito os nossos desejaram
Por sinais muito claros se mostrou,
:Quem os danos e ofensas vá vingando
Quando em Évora a voz de uma menina,
:Naqueles que tão bem se aproveitaram
Ante tempo falando o nomeou;
:Do descuido remisso de Fernando,
E como cousa enfim que o Céu destina,
:Depois de pouco tempo o alcançaram,
No berço o corpo e a voz alevantou:
:Joane, sempre ilustre, alevantando
- "Portugal! Portugal!" alçando a mão
:Por Rei, como de Pedro único herdeiro,
Disse "pelo Rei novo, Dom João." -
:(Ainda que bastardo) verdadeiro.
 
:
:::::3 4
"Alteradas então do Reino as gentes
:"Ser isto ordenação dos céus divina,
Co'o ódio, que ocupado os peitos tinha,
:Por sinais muito claros se mostrou,
Absolutas cruezas e evidentes
:Quando em Évora a voz de uma menina,
Faz do povo o furor por onde vinha;
:Ante tempo falando o nomeou;
Matando vão amigos e parentes
:E como cousa enfim que o Céu destina,
Do adúltero Conde e da Rainha,
:No berço o corpo e a voz alevantou:
Com quem sua incontinência desonesta
:- "Portugal! Portugal!" alçando a mão
Mais (depois de viúva) manifesta.
:Disse "pelo Rei novo, Dom João." -
 
:
:::::45
"Mas ele enfim, com causa desonrado,
:"Alteradas então do Reino as gentes
Diante dela a ferro frio morre,
:Co'o ódio, que ocupado os peitos tinha,
De outros muitos na morte acompanhado,
:Absolutas cruezas e evidentes
Que tudo o fogo erguido queima e corre:
:Faz do povo o furor por onde vinha;
Quem, como Astianás, precipitado,
:Matando vão amigos e parentes
(Sem lhe valerem ordens) de alta torre,
:Do adúltero Conde e da Rainha,
A quem ordens, nem aras, nem respeito;
:Com quem sua incontinência desonesta
Quem nu por ruas, e em pedaços feito.
:Mais (depois de viúva) manifesta.
 
:
:::::5 6
"Podem-se pôr em longo esquecimento
:"Mas ele enfim, com causa desonrado,
As cruezas mortais que Roma viu
:Diante dela a ferro frio morre,
Feitas do feroz Mário e do cruento
:De outros muitos na morte acompanhado,
Sila, quando o contrário lhe fugiu.
:Que tudo o fogo erguido queima e corre:
Por isso Lianor, que o sentimento
:Quem, como Astianás, precipitado,
Do morto Conde ao mundo descobriu,
:(Sem lhe valerem ordens) de alta torre,
Faz contra Lusitânia vir Castela,
:A quem ordens, nem aras, nem respeito;
Dizendo ser sua filha herdeira dela.
:Quem nu por ruas, e em pedaços feito.
 
:
:::::67
"Beatriz era a filha, que casada
:"Podem-se pôr em longo esquecimento
Co'o Castelhano está, que o Reino pede,
:As cruezas mortais que Roma viu
Por filha de Fernando reputada,
:Feitas do feroz Mário e do cruento
:Sila,Se quandoa ocorrompida contráriofama lhe fugiuconcede.
Com esta voz Castela alevantada,
:Por isso Lianor, que o sentimento
Dizendo que esta filha ao pai sucede,
:Do morto Conde ao mundo descobriu,
Suas forças ajunta para as guerras
:Faz contra Lusitânia vir Castela,
De várias regiões e várias terras.
:Dizendo ser sua filha herdeira dela.
 
:
:::::78
:"BeatrizVem erade toda a filha,província que casadade um Brigo
(Se foi) já teve o nome derivado;
:Co'o Castelhano está, que o Reino pede,
:PorDas filhaterras deque Fernando reputada,e que Rodrigo
Ganharam do tirano e Mauro estado.
:Se a corrompida fama lhe concede.
Não estimam das armas o perigo
:Com esta voz Castela alevantada,
:DizendoOs que estacortando filhavão aoco'o paiduro sucede,arado
Os campos Lioneses, cuja gente
:Suas forças ajunta para as guerras
C'os Mouros foi nas armas excelente.
:De várias regiões e várias terras.
 
:
:::::89
"Os Vândalos, na antiga valentia
:Vem de toda a província que de um Brigo
Ainda confiados, se ajuntavam
:(Se foi) já teve o nome derivado;
Da cabeça de toda Andaluzia,
:Das terras que Fernando e que Rodrigo
:GanharamQue do tiranoGuadalquibir eas Mauroáguas estadolavam.
A nobre Ilha também se apercebia,
:Não estimam das armas o perigo
Que antigamente os Tírios habitavam,
:Os que cortando vão co'o duro arado
Trazendo por insígnias verdadeiras
:Os campos Lioneses, cuja gente
As Hercúleas colunas nas bandeiras.
:C'os Mouros foi nas armas excelente.
 
:
:::::910
"Também vem lá do Reino de Toledo,
:"Os Vândalos, na antiga valentia
Cidade nobre e antiga, a quem cercando
:Ainda confiados, se ajuntavam
O Tejo em torno vai suave e ledo
:Da cabeça de toda Andaluzia,
:Que dodas Guadalquibirserras asde águasConca lavamvem manando.
:A nobrevós Ilhaoutros também senão apercebia,tolhe o medo,
Ó sórdidos Galegos, duro bando,
:Que antigamente os Tírios habitavam,
Que para resistirdes vos armastes,
:Trazendo por insígnias verdadeiras
Aqueles, cujos golpes já provasses.
:As Hercúleas colunas nas bandeiras.
 
:
:::::1011
:"Também vemmovem da doguerra Reinoas denegras Toledo,fúrias
A gente Biscainha, que carece
:Cidade nobre e antiga, a quem cercando
De polidas razões, e que as injúrias
:O Tejo em torno vai suave e ledo
Muito mal dos estranhos compadece.
:Que das serras de Conca vem manando.
A terra de Guipúscua e das Astúrias,
:A vós outros também não tolhe o medo,
Que com minas de ferro se enobrece,
:Ó sórdidos Galegos, duro bando,
Armou dele os soberbos moradores,
:Que para resistirdes vos armastes,
Para ajudar na guerra a seus senhores.
:Aqueles, cujos golpes já provasses.
 
:
:::::11 12
"Joane, a quem do peito o esforço cresce,
:"Também movem da guerra as negras fúrias
Como a Sansão Hebréio da guedelha,
:A gente Biscainha, que carece
Posto que tudo pouco lhe parece,
:De polidas razões, e que as injúrias
Co'os poucos de seu Reino se aparelha;
:Muito mal dos estranhos compadece.
E não porque conselho lhe falece,
:A terra de Guipúscua e das Astúrias,
Co'os principais senhores se aconselha,
:Que com minas de ferro se enobrece,
Mas só por ver das gentes as sentenças:
:Armou dele os soberbos moradores,
Que sempre houve entre muitos diferenças.
:Para ajudar na guerra a seus senhores.
 
:
:::::1213
"Não falta com razões quem desconcerte
:"Joane, a quem do peito o esforço cresce,
Da opinião de todos, na vontade,
:Como a Sansão Hebréio da guedelha,
Em quem o esforço antigo se converte
:Posto que tudo pouco lhe parece,
Em desusada e má deslealdade;
:Co'os poucos de seu Reino se aparelha;
Podendo o temor mais, gelado, inerte,
:E não porque conselho lhe falece,
Que a própria e natural fidelidade:
:Co'os principais senhores se aconselha,
Negam o Rei e a pátria, e, se convém,
:Mas só por ver das gentes as sentenças:
Negarão (como Pedro) o Deus que têm.
:Que sempre houve entre muitos diferenças.
 
:
:::::13 14
"Mas nunca foi que este erro se sentisse
:"Não falta com razões quem desconcerte
No forte Dom Nuno Alvares; mas antes,
:Da opinião de todos, na vontade,
Posto que em seus irmãos tão claro o visse,
:Em quem o esforço antigo se converte
Reprovando as vontades inconstantes,
:Em desusada e má deslealdade;
Aquelas duvidosas gentes disse,
:Podendo o temor mais, gelado, inerte,
Com palavras mais duras que elegantes,
:Que a própria e natural fidelidade:
:NegamA omão Reina eespada, a pátriairado, e, senão convémfacundo,
Ameaçando a terra, o mar e o mundo:
:Negarão (como Pedro) o Deus que têm.
 
:
:::::1415
- "Como!Da gente ilustre Portuguesa
:"Mas nunca foi que este erro se sentisse
Há-de haver quem refuse o pátrio Marte?,
:No forte Dom Nuno Alvares; mas antes,
Como!Desta província, que princesa
:Posto que em seus irmãos tão claro o visse,
Foi das gentes na guerra em toda a parte,
:Reprovando as vontades inconstantes,
Há-de sair quem negue ter defesa?
:Aquelas duvidosas gentes disse,
Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte
:Com palavras mais duras que elegantes,
De Português, e por nenhum respeito
:A mão na espada, irado, e não facundo,
O próprio Reino queira ver sujeito?
:Ameaçando a terra, o mar e o mundo:
 
:
:::::1516
:- "Como!DaNão genteseis ilustrevós Portuguesainda os descendentes
Daqueles, que debaixo da bandeira
:Há-de haver quem refuse o pátrio Marte?,
Do grande Henriques, feros e valentes,
:Como!Desta província, que princesa
Vencestes esta gente tão guerreira?
:Foi das gentes na guerra em toda a parte,
Quando tantas bandeiras, tantas gentes
:Há-de sair quem negue ter defesa?
Puseram em fugida, de maneira
:Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte
Que sete ilustres Condes lhe trouxeram
:De Português, e por nenhum respeito
Presos, afora a presa que tiveram?
:O próprio Reino queira ver sujeito?
 
:
:::::1617
- "Com quem foram contino sopeados
:- "Como!Não seis vós inda os descendentes
Estes, de quem o estais agora vós,
:Daqueles, que debaixo da bandeira
Por Dinis e seu filho, sublimados,
:Do grande Henriques, feros e valentes,
Senão co'os vossos fortes pais, e avôs?
:Vencestes esta gente tão guerreira?
Pois se com seus descuidos, ou pecados,
:Quando tantas bandeiras, tantas gentes
Fernando em tal fraqueza assim vos pôs,
:Puseram em fugida, de maneira
Torne-vos vossas forças o Rei novo:
:Que sete ilustres Condes lhe trouxeram
Se é certo que co'o Rei se muda o povo.
:Presos, afora a presa que tiveram?
 
:
:::::17 18
- "Rei tendes tal, que se o valor tiverdes
:- "Com quem foram contino sopeados
:Estes,Igual deao quemRei o estaisque agora vósalevantastes,
Desbaratareis tudo o que quiserdes,
:Por Dinis e seu filho, sublimados,
Quanto mais a quem já desbaratasses.
:Senão co'os vossos fortes pais, e avôs?
:PoisE se com seusisto descuidos,enfim ouvos pecados,não moverdes
Do penetrante medo que tomastes,
:Fernando em tal fraqueza assim vos pôs,
Atai as mãos a vosso vão receio,
:Torne-vos vossas forças o Rei novo:
Que eu só resistirei ao jugo alheio.
:Se é certo que co'o Rei se muda o povo.
:
:::::1819
- "Eu só com meus vassalos, e com esta
:- "Rei tendes tal, que se o valor tiverdes
(E dizendo isto arranca meia espada)
:Igual ao Rei que agora alevantastes,
Defenderei da força dura e infesta
:Desbaratareis tudo o que quiserdes,
A terra nunca de outrem sojugada.
:Quanto mais a quem já desbaratasses.
Em virtude do Rei, da pátria mesta,
:E se com isto enfim vos não moverdes
Da lealdade já por vós negada,
:Do penetrante medo que tomastes,
Vencerei (não só estes adversários)
:Atai as mãos a vosso vão receio,
Mas quantos a meu Rei forem contrários."-
:Que eu só resistirei ao jugo alheio.
 
:
:::::1920
Bem como entre os mancebos recolhidos
:- "Eu só com meus vassalos, e com esta
Em Canúsio, relíquias sós de Canas,
:(E dizendo isto arranca meia espada)
Já para se entregar quase movidos
:Defenderei da força dura e infesta
A fortuna das forças Africanas,
:A terra nunca de outrem sojugada.
Cornélio moço os faz que, compelidos
:Em virtude do Rei, da pátria mesta,
Da sua espada, jurem que as Romanas
:Da lealdade já por vós negada,
Armas não deixarão, enquanto a vida
:Vencerei (não só estes adversários)
Os não deixar, ou nelas for perdida:
:Mas quantos a meu Rei forem contrários."-
 
:
:::::2021
"Destarte a gente força e esforça Nuno,
:Bem como entre os mancebos recolhidos
Que, com lhe ouvir as últimas razões,
:Em Canúsio, relíquias sós de Canas,
Removem o temor frio, importuno,
:Já para se entregar quase movidos
Que gelados lhe tinha os corações.
:A fortuna das forças Africanas,
Nos animais cavalgam de Neptuno,
:Cornélio moço os faz que, compelidos
Brandindo e volteando arremessões;
:Da sua espada, jurem que as Romanas
Vão correndo e gritando a boca aberta:
:Armas não deixarão, enquanto a vida
- "Viva o famoso Rei que nos liberta!"-
:Os não deixar, ou nelas for perdida:
 
:
:::::2122
"Das gentes populares, uns aprovam
:"Destarte a gente força e esforça Nuno,
A guerra com que a pátria se sustinha;
:Que, com lhe ouvir as últimas razões,
Uns as armas alimpam e renovam,
:Removem o temor frio, importuno,
Que a ferrugem da paz gastadas tinha;
:Que gelados lhe tinha os corações.
Capacetes estofam, peitos provam,
:Nos animais cavalgam de Neptuno,
Arma-se cada um como convinha;
:Brandindo e volteando arremessões;
Outros fazem vestidos de mil cores,
:Vão correndo e gritando a boca aberta:
Com letras e tenções de seus amores.
:- "Viva o famoso Rei que nos liberta!"-
 
:
:::::2223
"Com toda esta lustrosa companhia
:"Das gentes populares, uns aprovam
Joane forte sai da fresca Abrantes,
:A guerra com que a pátria se sustinha;
Abrantes, que também da fonte fria
:Uns as armas alimpam e renovam,
Do Tejo logra as águas abundantes.
:Que a ferrugem da paz gastadas tinha;
Os primeiros armígeros regia
:Capacetes estofam, peitos provam,
Quem para reger era os mui possantes
:Arma-se cada um como convinha;
Orientais exércitos, sem conto,
:Outros fazem vestidos de mil cores,
:Com letrasque epassava tençõesXerxes deo seus amoresHelesponto.
 
:
:::::23 24
"Dom Nuno Alvares digo, verdadeiro
:"Com toda esta lustrosa companhia
Açoute de soberbos Castelhanos
:Joane forte sai da fresca Abrantes,
Como já o fero Huno o foi primeiro
:Abrantes, que também da fonte fria
Para Franceses, para Italianos.
:Do Tejo logra as águas abundantes.
Outro também famoso cavaleiro,
:Os primeiros armígeros regia
Que a ala direita tem dos Lusitanos,
:Quem para reger era os mui possantes
Apto para mandá-los, e regê-los,
:Orientais exércitos, sem conto,
Mem Rodrigues se diz de Vasconcelos.
:Com que passava Xerxes o Helesponto.
 
:
:::::2425
"E da outra ala, que a esta corresponde,
:"Dom Nuno Alvares digo, verdadeiro
Antão Vasques de Almada é capitão,
:Açoute de soberbos Castelhanos
Que depois foi de Abranches nobre Conde,
:Como já o fero Huno o foi primeiro
Das gentes vai regendo a sestra mão.
:Para Franceses, para Italianos.
Logo na retaguarda não se esconde
:Outro também famoso cavaleiro,
Das quinas e castelos o pendão,
:Que a ala direita tem dos Lusitanos,
Com Joane, Rei forte em toda parte,
:Apto para mandá-los, e regê-los,
Que escurecendo o preço vai de Alarte.
:Mem Rodrigues se diz de Vasconcelos.
 
:
:::::2526
"Estavam pelos muros, temerosas,
:"E da outra ala, que a esta corresponde,
E de um alegre medo quase frias,
:Antão Vasques de Almada é capitão,
Rezando as mães, irmãs, damas e esposas,
:Que depois foi de Abranches nobre Conde,
Prometendo jejuns e romarias.
:Das gentes vai regendo a sestra mão.
Já chegam as esquadras belicosas
:Logo na retaguarda não se esconde
Defronte das amigas companhias,
:Das quinas e castelos o pendão,
Que com grita grandíssima os recebem,
:Com Joane, Rei forte em toda parte,
E todas grande dúvida concebem.
:Que escurecendo o preço vai de Alarte.
 
:
:::::2627
"Respondem as trombetas mensageiras,
:"Estavam pelos muros, temerosas,
Pífaros sibilantes e atambores;
:E de um alegre medo quase frias,
Alférezes volteam as bandeiras,
:Rezando as mães, irmãs, damas e esposas,
Que variadas são de muitas cores.
:Prometendo jejuns e romarias.
Era no seco tempo, que nas eiras
:Já chegam as esquadras belicosas
Ceres o fruto deixa aos lavradores,
:Defronte das amigas companhias,
Entra em Astreia o Sol, no mês de Agosto,
:Que com grita grandíssima os recebem,
Baco das uvas tira o doce mosto.
:E todas grande dúvida concebem.
 
:
:::::27 28
"Deu sinal a trombeta Castelhana,
:"Respondem as trombetas mensageiras,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
:Pífaros sibilantes e atambores;
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
:Alférezes volteam as bandeiras,
Atrás tornou as ondas de medroso;
:Que variadas são de muitas cores.
Ouviu-o o Douro e a terra Transtagana;
:Era no seco tempo, que nas eiras
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
:Ceres o fruto deixa aos lavradores,
E as mães, que o som terríbil escutaram,
:Entra em Astreia o Sol, no mês de Agosto,
Aos peitos os filhinhos apertaram.
:Baco das uvas tira o doce mosto.
 
:
:::::2829
"Quantos rostos ali se vêem sem cor,
:"Deu sinal a trombeta Castelhana,
Que ao coração acode o sangue amigo!
:Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Que, nos perigos grandes, o temor
:Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
É maior muitas vezes que o perigo;
:Atrás tornou as ondas de medroso;
E se o não é, parece-o; que o furor
:Ouviu-o o Douro e a terra Transtagana;
De ofender ou vencer o duro amigo
:Correu ao mar o Tejo duvidoso;
:EFaz asnão mães,sentir que oé somperda terríbilgrande escutarame rara,
Dos membros corporais, da vida cara.
:Aos peitos os filhinhos apertaram.
 
:
:::::29 30
"Começa-se a travar a incerta guerra;
:"Quantos rostos ali se vêem sem cor,
De ambas partes se move a primeira ala;
:Que ao coração acode o sangue amigo!
Uns leva a defensão da própria terra,
:Que, nos perigos grandes, o temor
Outros as esperanças de ganhá-la;
:É maior muitas vezes que o perigo;
Logo o grande Pereira, em quem se encerra
:E se o não é, parece-o; que o furor
Todo o valor, primeiro se assinala:
:De ofender ou vencer o duro amigo
Derriba, e encontra, e a terra enfim semeia
:Faz não sentir que é perda grande e rara,
Dos que a tanto desejam, sendo alheia.
:Dos membros corporais, da vida cara.
 
:
:::::3031
"Já pelo espesso ar os estridentes
:"Começa-se a travar a incerta guerra;
Farpões, setas e vários tiros voam;
:De ambas partes se move a primeira ala;
Debaixo dos pés duros dos ardentes
:Uns leva a defensão da própria terra,
Cavalos treme a terra, os vales soam;
:Outros as esperanças de ganhá-la;
Espedaçam-se as lanças; e as frequentes
:Logo o grande Pereira, em quem se encerra
Quedas coas duras armas, tudo atroam;
:Todo o valor, primeiro se assinala:
Recrescem os amigos sobre a pouca
:Derriba, e encontra, e a terra enfim semeia
Gente do fero Nuno, que os apouca.
:Dos que a tanto desejam, sendo alheia.
 
:
:::::3132
"Eis ali seus irmãos contra ele vão,
:"Já pelo espesso ar os estridentes
(Caso feio e cruel!) mas não se espanta,
:Farpões, setas e vários tiros voam;
Que menos é querer matar o irmão,
:Debaixo dos pés duros dos ardentes
Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta:
:Cavalos treme a terra, os vales soam;
Destes arrenegados muitos são
:Espedaçam-se as lanças; e as frequentes
No primeiro esquadrão, que se adianta
:Quedas coas duras armas, tudo atroam;
Contra irmãos e parentes (caso estranho!)
:Recrescem os amigos sobre a pouca
Quais nas guerras civis de Júlio e Magno.
:Gente do fero Nuno, que os apouca.
 
:
:::::32 33
"Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
:"Eis ali seus irmãos contra ele vão,
Catilina, e vós outros dos antigos,
:(Caso feio e cruel!) mas não se espanta,
Que contra vossas pátrias, com profano
:Que menos é querer matar o irmão,
Coração, vos fizestes inimigos,
:Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta:
Se lá no reino escuro de Sumano
:Destes arrenegados muitos são
Receberdes gravíssimos castigos,
:No primeiro esquadrão, que se adianta
Dizei-lhe que também dos Portugueses
:Contra irmãos e parentes (caso estranho!)
Alguns tredores houve algumas vezes.
:Quais nas guerras civis de Júlio e Magno.
 
:
:::::3334
"Rompem-se aqui dos nossos os primeiros,
:"Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Tantos dos inimigos a eles vão!
:Catilina, e vós outros dos antigos,
Está ali Nuno, qual pelos outeiros
:Que contra vossas pátrias, com profano
De Ceita está o fortíssimo leão,
:Coração, vos fizestes inimigos,
Que cercado se vê dos cavaleiros
:Se lá no reino escuro de Sumano
Que os campos vão correr de Tetuão:
:Receberdes gravíssimos castigos,
Perseguem-no com as lanças, e ele iroso,
:Dizei-lhe que também dos Portugueses
Torvado um pouco está, mas não medroso.
:Alguns tredores houve algumas vezes.
 
:
:::::3435
"Com torva vista os vê, mas a natura
:"Rompem-se aqui dos nossos os primeiros,
Ferina e a ira não lhe compadecem
:Tantos dos inimigos a eles vão!
Que as costas dê, mas antes na espessura
:Está ali Nuno, qual pelos outeiros
Das lanças se arremessa, que recrescem.
:De Ceita está o fortíssimo leão,
Tal está o cavaleiro, que a verdura
:Que cercado se vê dos cavaleiros
Tinge co'o sangue alheio; ali perecem
:Que os campos vão correr de Tetuão:
Alguns dos seus, que o ânimo valente
:Perseguem-no com as lanças, e ele iroso,
Perde a virtude contra tanta gente.
:Torvado um pouco está, mas não medroso.
 
:
:::::35 36
"Sentiu Joane a afronta que passava
:"Com torva vista os vê, mas a natura
Nuno, que, como sábio capitão,
:Ferina e a ira não lhe compadecem
Tudo corria e via, e a todos dava,
:Que as costas dê, mas antes na espessura
Com presença e palavras, coração.
:Das lanças se arremessa, que recrescem.
Qual parida leoa, fera e brava,
:Tal está o cavaleiro, que a verdura
Que os filhos que no ninho sós estão,
:Tinge co'o sangue alheio; ali perecem
Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara,
:Alguns dos seus, que o ânimo valente
O pastor de Massília lhos furtara;
:Perde a virtude contra tanta gente.
 
:
:::::3637
"Corre raivosa, e freme, e com bramidos
:"Sentiu Joane a afronta que passava
Os montes Sete Irmãos atroa e abala:
:Nuno, que, como sábio capitão,
Tal Joane, com outros escolhidos
:Tudo corria e via, e a todos dava,
Dos seus, correndo acode à primeira ala:
:Com presença e palavras, coração.
-"Ó fortes companheiros, ó subidos
:Qual parida leoa, fera e brava,
Cavaleiros, a quem nenhum se iguala,
:Que os filhos que no ninho sós estão,
Defendei vossas terras, que a esperança
:Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara,
Da liberdade está na vossa lança.
:O pastor de Massília lhos furtara;
 
:
:::::3738
:-"CorreVedes-me raivosaaqui, eRei fremevosso, e com bramidoscompanheiro,
Que entre as lanças, e setas, e os arneses
:Os montes Sete Irmãos atroa e abala:
Dos inimigos corro e vou primeiro:
:Tal Joane, com outros escolhidos
Pelejai, verdadeiros Portugueses!"-
:Dos seus, correndo acode à primeira ala:
Isto disse o magnânimo guerreiro,
:-"Ó fortes companheiros, ó subidos
E, sopesando a lança quatro vezes,
:Cavaleiros, a quem nenhum se iguala,
Com força tira; e, deste único tiro,
:Defendei vossas terras, que a esperança
Muitos lançaram o último suspiro.
:Da liberdade está na vossa lança.
 
:
:::::3839
"Porque eis os seus acesos novamente
:-"Vedes-me aqui, Rei vosso, e companheiro,
Duma nobre vergonha e honroso fogo,
:Que entre as lanças, e setas, e os arneses
Sobre qual mais com ânimo valente
:Dos inimigos corro e vou primeiro:
Perigos vencerá do Márcio jogo,
:Pelejai, verdadeiros Portugueses!"-
Porfiam: tinge o ferro o sangue ardente;
:Isto disse o magnânimo guerreiro,
Rompem malhas primeiro, e peitos logo:
:E, sopesando a lança quatro vezes,
Assim recebem junto e dão feridas,
:Com força tira; e, deste único tiro,
Como a quem já não dói perder as vidas.
:Muitos lançaram o último suspiro.
 
:
:::::39 40
"A muitos mandam ver o Estígio lago,
:"Porque eis os seus acesos novamente
Em cujo corpo a morte e o ferro entrava:
:Duma nobre vergonha e honroso fogo,
O Mestre morre ali de Santiago,
:Sobre qual mais com ânimo valente
Que fortíssimamente pelejava;
:Perigos vencerá do Márcio jogo,
Morre também, fazendo grande estrago,
:Porfiam: tinge o ferro o sangue ardente;
Outro Mestre cruel de Calatrava;
:Rompem malhas primeiro, e peitos logo:
Os Pereiras também arrenegados
:Assim recebem junto e dão feridas,
Morrem, arrenegando o Céu e os fados.
:Como a quem já não dói perder as vidas.
 
:
:::::4041
"Muitos também do vulgo vil sem nome
:"A muitos mandam ver o Estígio lago,
Vão, e também dos nobres, ao profundo,
:Em cujo corpo a morte e o ferro entrava:
Onde o trifauce Cão perpétua fome
:O Mestre morre ali de Santiago,
Tem das almas que passam deste mundo.
:Que fortíssimamente pelejava;
E porque mais aqui se amanse e dome
:Morre também, fazendo grande estrago,
A soberba do amigo furibundo,
:Outro Mestre cruel de Calatrava;
A sublime bandeira Castelhana
:Os Pereiras também arrenegados
Foi derribada aos pés da Lusitana.
:Morrem, arrenegando o Céu e os fados.
 
:
:::::41 42
"Aqui a fera batalha se encruece
:"Muitos também do vulgo vil sem nome
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;
:Vão, e também dos nobres, ao profundo,
A multidão da gente que perece
:Onde o trifauce Cão perpétua fome
:Tem dasas almasflores queda passamprópria destecor mundo.mudadas;
Já as costas dão e as vidas; já falece
:E porque mais aqui se amanse e dome
O furor e sobejam as lançadas;
:A soberba do amigo furibundo,
Já de Castela o Rei desbaratado
:A sublime bandeira Castelhana
Se vê, e de seu propósito mudado.
:Foi derribada aos pés da Lusitana.
 
:
:::::4243
"O campo vai deixando ao vencedor,
:"Aqui a fera batalha se encruece
Contente de lhe não deixar a vida.
:Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;
Seguem-no os que ficaram, e o temor
:A multidão da gente que perece
Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.
:Tem as flores da própria cor mudadas;
Encobrem no profundo peito a dor
:Já as costas dão e as vidas; já falece
Da morte, da fazenda despendida,
:O furor e sobejam as lançadas;
Da mágoa, da desonra, e triste nojo
:Já de Castela o Rei desbaratado
:SeDe vê,ver eoutrem triunfar de seu propósito mudadodespojo.
 
:
:::::4344
"Alguns vão maldizendo e blasfemando
:"O campo vai deixando ao vencedor,
Do primeiro que guerra fez no mundo;
:Contente de lhe não deixar a vida.
Outros a sede dura vão culpando
:Seguem-no os que ficaram, e o temor
Do peito cobiçoso e sitibundo,
:Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.
Que, por tomar o alheio, o miserando
:Encobrem no profundo peito a dor
Povo aventura às penas do profundo,
:Da morte, da fazenda despendida,
Deixando tantas mães, tantas esposas
:Da mágoa, da desonra, e triste nojo
Sem filhos, sem maridos, desditosas.
:De ver outrem triunfar de seu despojo.
 
:
:::::44 45
"O vencedor Joane esteve os dias
:"Alguns vão maldizendo e blasfemando
Costumados no campo, em grande glória;
:Do primeiro que guerra fez no mundo;
Com ofertas depois, e romarias,
:Outros a sede dura vão culpando
As graças deu a quem lhe deu vitória.
:Do peito cobiçoso e sitibundo,
Mas Nuno, que não quer por outras vias
:Que, por tomar o alheio, o miserando
Entre as gentes deixar de si memória
:Povo aventura às penas do profundo,
Senão por armas sempre soberanas,
:Deixando tantas mães, tantas esposas
Para as terras se passa Transtaganas.
:Sem filhos, sem maridos, desditosas.
 
:
:::::4546
"Ajuda-o seu destino de maneira
:"O vencedor Joane esteve os dias
Que fez igual o efeito ao pensamento,
:Costumados no campo, em grande glória;
Porque a terra dos Vândalos fronteira
:Com ofertas depois, e romarias,
Lhe concede o despojo e o vencimento.
:As graças deu a quem lhe deu vitória.
Já de Sevilha a Bética bandeira
:Mas Nuno, que não quer por outras vias
E de vários senhores num momento
:Entre as gentes deixar de si memória
Se lhe derriba aos pés, sem ter defesa
:Senão por armas sempre soberanas,
Obrigados da força Portuguesa.
:Para as terras se passa Transtaganas.
 
:
:::::46 47
"Destas e outras vitórias longamente
:"Ajuda-o seu destino de maneira
Eram os Castelhanos oprimidos,
:Que fez igual o efeito ao pensamento,
Quando a paz, desejada já da gente,
:Porque a terra dos Vândalos fronteira
Deram os vencedores aos vencidos,
:Lhe concede o despojo e o vencimento.
Depois que quis o Padre onipotente
:Já de Sevilha a Bética bandeira
Dar os Reis inimigos por maridos
:E de vários senhores num momento
As duas ilustríssimas Inglesas,
:Se lhe derriba aos pés, sem ter defesa
Gentis, formosas, ínclitas princesas.
:Obrigados da força Portuguesa.
 
:
:::::4748
"Não sofre o peito forte, usado à guerra,
:"Destas e outras vitórias longamente
Não ter amigo já a quem faça dano;
:Eram os Castelhanos oprimidos,
E assim não tendo a quem vencer na terra,
:Quando a paz, desejada já da gente,
Vai cometer as ondas do Oceano.
:Deram os vencedores aos vencidos,
Este é o primeiro Rei que se desterra
:Depois que quis o Padre onipotente
Da Pátria, por fazer que o Africano
:Dar os Reis inimigos por maridos
Conheça, pelas armas, quanto excede
:As duas ilustríssimas Inglesas,
A lei de Cristo à lei de Mafamede.
:Gentis, formosas, ínclitas princesas.
 
:
:::::4849
"Eis mil nadantes aves pelo argento
:"Não sofre o peito forte, usado à guerra,
Da furiosa Tethys inquieta
:Não ter amigo já a quem faça dano;
Abrindo as pandas asas vão ao vento,
:E assim não tendo a quem vencer na terra,
Para onde Alcides pôs a extrema meta.
:Vai cometer as ondas do Oceano.
O monte Abila e o nobre fundamento
:Este é o primeiro Rei que se desterra
De Ceita toma, e o torpe Mahometa
:Da Pátria, por fazer que o Africano
Deita fora, e segura toda Espanha
:Conheça, pelas armas, quanto excede
Da Juliana, má, e desleal manha.
:A lei de Cristo à lei de Mafamede.
 
:
:::::49 50
"Não consentiu a morte tantos anos
:"Eis mil nadantes aves pelo argento
Que de Herói tão ditoso se lograsse
:Da furiosa Tethys inquieta
Portugal, mas os coros soberanos
:Abrindo as pandas asas vão ao vento,
Do Céu supremo quis que povoasse.
:Para onde Alcides pôs a extrema meta.
Mas para defensão dos Lusitanos
:O monte Abila e o nobre fundamento
Deixou, quem o levou quem governasse,
:De Ceita toma, e o torpe Mahometa
E aumentasse a terra mais que dantes,
:Deita fora, e segura toda Espanha
Inclita geração, altos Infantes.
:Da Juliana, má, e desleal manha.
 
:
:::::5051
:"Não consentiufoi ado morteRei tantosDuarte anostão ditoso
O tempo que ficou na suma alteza,
:Que de Herói tão ditoso se lograsse
Que assim vai alternando o tempo iroso
:Portugal, mas os coros soberanos
O bem co'o mal, o gosto coa tristeza.
:Do Céu supremo quis que povoasse.
Quem viu sempre um estado deleitoso?
:Mas para defensão dos Lusitanos
Ou quem viu em fortuna haver firmeza?
:Deixou, quem o levou quem governasse,
Pois inda neste Reino e neste Rei
:E aumentasse a terra mais que dantes,
Não ousou ela tanto desta lei.
:Inclita geração, altos Infantes.
 
:
:::::5152
"Viu ser cativo o santo irmão Fernando,
:"Não foi do Rei Duarte tão ditoso
Que a tão altas empresas aspirava,
:O tempo que ficou na suma alteza,
:Que, assimpor vai alternandosalvar o tempopovo irosomiserando
Cercado, ao Sarraceno se entregava.
:O bem co'o mal, o gosto coa tristeza.
Só por amor da pátria está passando
:Quem viu sempre um estado deleitoso?
A vida de senhora feita escrava,
:Ou quem viu em fortuna haver firmeza?
Por não se dar por ele a forte Ceita:
:Pois inda neste Reino e neste Rei
Mais o público bem que o seu respeita.
:Não ousou ela tanto desta lei.
 
:
:::::5253
"Codro, porque o inimigo não vencesse,
:"Viu ser cativo o santo irmão Fernando,
Deixou antes vencer da morte a vida;
:Que a tão altas empresas aspirava,
Régulo, porque a pátria não perdesse,
:Que, por salvar o povo miserando
Quis mais a liberdade ver perdida.
:Cercado, ao Sarraceno se entregava.
Este, porque se Espanha não temesse,
:Só por amor da pátria está passando
Ao cativeiro eterno se convida:
:A vida de senhora feita escrava,
Codro, nem Cúrcio, ouvido por espanto,
:Por não se dar por ele a forte Ceita:
Nem os Décios leais fizeram tanto.
:Mais o público bem que o seu respeita.
 
:
:::::5354
"Mas Afonso, do Reino único herdeiro,
:"Codro, porque o inimigo não vencesse,
Nome em armas ditoso em nossa Hespéria,
:Deixou antes vencer da morte a vida;
Que a soberba do bárbaro fronteira
:Régulo, porque a pátria não perdesse,
Tornou em baixa e humílima miséria,
:Quis mais a liberdade ver perdida.
Fora por certo invicto cavaleiro,
:Este, porque se Espanha não temesse,
Se não quisera ir ver a terra Ibéria.
:Ao cativeiro eterno se convida:
Mas África dirá ser impossíbil
:Codro, nem Cúrcio, ouvido por espanto,
Poder ninguém vencer o Rei terríbil.
:Nem os Décios leais fizeram tanto.
 
:
:::::5455
"Este pôde colher as maçãs de ouro,
:"Mas Afonso, do Reino único herdeiro,
Que somente o Tiríntio colher pôde:
:Nome em armas ditoso em nossa Hespéria,
Do jugo que lhe pôs, o bravo Mouro
:Que a soberba do bárbaro fronteira
A cerviz inda agora não sacode.
:Tornou em baixa e humílima miséria,
Na fronte a palma leva e o verde louro
:Fora por certo invicto cavaleiro,
Das vitórias do Bárbaro, que acode
:Se não quisera ir ver a terra Ibéria.
A defender Alcácer, forte vila,
:Mas África dirá ser impossíbil
Tângere populoso e a dura Arzila.
:Poder ninguém vencer o Rei terríbil.
 
:
:::::5556
"Porém elas enfim por força entradas,
:"Este pôde colher as maçãs de ouro,
Os muros abaixaram de diamante
:Que somente o Tiríntio colher pôde:
As Portuguesas forças, costumadas
:Do jugo que lhe pôs, o bravo Mouro
A derribarem quanto acham diante.
:A cerviz inda agora não sacode.
Maravilhas em armas estremadas,
:Na fronte a palma leva e o verde louro
E de escritura dinas elegante,
:Das vitórias do Bárbaro, que acode
Fizeram cavaleiros nesta empresa,
:A defender Alcácer, forte vila,
Mais afinando a fama Portuguesa.
:Tângere populoso e a dura Arzila.
 
:
:::::56 57
:"Porém elasdepois, enfimtocado porde força entradas,ambição
E glória de mandar, amara e bela,
:Os muros abaixaram de diamante
Vai cometer Fernando de Aragão,
:As Portuguesas forças, costumadas
Sobre o potente Reino de Castela.
:A derribarem quanto acham diante.
Ajunta-se a inimiga multidão
:Maravilhas em armas estremadas,
Das soberbas e várias gentes dela,
:E de escritura dinas elegante,
Desde Cádis ao alto Pireneu,
:Fizeram cavaleiros nesta empresa,
Que tudo ao Rei Fernando obedeceu.
:Mais afinando a fama Portuguesa.
 
:
:::::5758
"Não quis ficar nos Reinos ocioso
:"Porém depois, tocado de ambição
O mancebo Joane, e logo ordena
:E glória de mandar, amara e bela,
De ir ajudar o pai ambicioso,
:Vai cometer Fernando de Aragão,
Que então lhe foi ajuda não pequena.
:Sobre o potente Reino de Castela.
Saiu-se enfim do trance perigoso
:Ajunta-se a inimiga multidão
Com fronte não torvada, mas serena,
:Das soberbas e várias gentes dela,
Desbaratado o pai sanguinolento
:Desde Cádis ao alto Pireneu,
Mas ficou duvidoso o vencimento.
:Que tudo ao Rei Fernando obedeceu.
 
:
:::::5859
"Porque o filho sublime e soberano,
:"Não quis ficar nos Reinos ocioso
Gentil, forte, animoso cavaleiro,
:O mancebo Joane, e logo ordena
Nos contrários fazendo imenso dano,
:De ir ajudar o pai ambicioso,
Todo um dia ficou no campo inteiro.
:Que então lhe foi ajuda não pequena.
Desta arte foi vencido Octaviano,
:Saiu-se enfim do trance perigoso
E António vencedor, sem companheiro,
:Com fronte não torvada, mas serena,
Quando daqueles que César mataram
:Desbaratado o pai sanguinolento
Nos Filípicos campos se vingaram.
:Mas ficou duvidoso o vencimento.
 
:
:::::59 60
"Porém depois que a escura noite eterna
:"Porque o filho sublime e soberano,
Afonso aposentou no Céu sereno,
:Gentil, forte, animoso cavaleiro,
O Príncipe, que o Reino então governa,
:Nos contrários fazendo imenso dano,
Foi Joane segundo e Rei trezeno.
:Todo um dia ficou no campo inteiro.
Este, por haver fama sempiterna,
:Desta arte foi vencido Octaviano,
Mais do que tentar pode homem terreno
:E António vencedor, sem companheiro,
Tentou, que foi buscar da roxa Aurora
:Quando daqueles que César mataram
Os términos, que eu vou buscando agora.
:Nos Filípicos campos se vingaram.
 
:
:::::6061
"Manda seus mensageiros, que passaram
:"Porém depois que a escura noite eterna
Espanha, França, Itália celebrada,
:Afonso aposentou no Céu sereno,
E lá no ilustre porto se embarcaram
:O Príncipe, que o Reino então governa,
Onde já foi Parténope enterra a:
:Foi Joane segundo e Rei trezeno.
Nápoles, onde os Xados se mostraram,
:Este, por haver fama sempiterna,
Fazendo-a a várias gentes subjugada,
:Mais do que tentar pode homem terreno
Pola ilustrar no fim de tantos anos
:Tentou, que foi buscar da roxa Aurora
Co'o senhorio de ínclitos Hispanos.
:Os términos, que eu vou buscando agora.
 
:
:::::6162
"Pelo mar alto Sículo navegam;
:"Manda seus mensageiros, que passaram
Vão-se às praias de Rodes arenosas;
:Espanha, França, Itália celebrada,
E dali às ribeiras altas chegam,
:E lá no ilustre porto se embarcaram
Que com morte de Magno são famosas;
:Onde já foi Parténope enterra a:
Vão a Mênfis e às terras, que se regam
:Nápoles, onde os Xados se mostraram,
Das enchentes Nilóticas undosas;
:Fazendo-a a várias gentes subjugada,
Sobem à Etiópia, sobre Egito,
:Pola ilustrar no fim de tantos anos
Que de Cristo lá guarda o santo rito.
:Co'o senhorio de ínclitos Hispanos.
 
:
:::::6263
"Passam também as ondas Eritreias,
:"Pelo mar alto Sículo navegam;
Que o povo de Israel sem nau passou;
:Vão-se às praias de Rodes arenosas;
Ficam-lhe atrás as serras Nabateias,
:E dali às ribeiras altas chegam,
:Que como mortefilho de MagnoIsmael sãoco'o famosas;nome ornou.
As costas odoríferas Sabeias,
:Vão a Mênfis e às terras, que se regam
Que a mãe do belo Adónis tanto honrou,
:Das enchentes Nilóticas undosas;
Cercam, com toda a Arábia descoberta
:Sobem à Etiópia, sobre Egito,
Feliz, deixando a Pétrea e a Deserta.
:Que de Cristo lá guarda o santo rito.
 
:
:::::6364
"Entram no estreito Pérsico, onde dura
:"Passam também as ondas Eritreias,
Da confusa Babel inda a memória;
:Que o povo de Israel sem nau passou;
Ali co'o Tigre o Eufrates se mistura,
:Ficam-lhe atrás as serras Nabateias,
:Que oas filhofontes deonde Ismaelnascem co'otem nomepor ornouglória.
Dali vão em demanda da água pura,
:As costas odoríferas Sabeias,
:Que acausa mãeinda doserá belode Adónislarga tanto honrouhistória,
Do Indo, pelas ondas do Oceano,
:Cercam, com toda a Arábia descoberta
Onde não se atreveu passar Trajano.
:Feliz, deixando a Pétrea e a Deserta.
 
:
:::::64 65
"Viram gentes incógnitas e estranhas
:"Entram no estreito Pérsico, onde dura
Da Índia, da Carmânia e Gedrosia,
:Da confusa Babel inda a memória;
Vendo vários costumes, várias manhas,
:Ali co'o Tigre o Eufrates se mistura,
Que cada região produze e cria.
:Que as fontes onde nascem tem por glória.
Mas de vias tão ásperas, tamanhas,
:Dali vão em demanda da água pura,
Tornar-se facilmente não podia:
:Que causa inda será de larga história,
Lá morreram enfim, e lá ficaram,
:Do Indo, pelas ondas do Oceano,
Que à desejada pátria não tornaram.
:Onde não se atreveu passar Trajano.
 
:
:::::6566
"Parece que guardava o claro Céu
:"Viram gentes incógnitas e estranhas
A Manuel, e seus merecimentos,
:Da Índia, da Carmânia e Gedrosia,
Esta empresa tão árdua, que o moveu
:Vendo vários costumes, várias manhas,
A subidos e ilustres movimentos:
:Que cada região produze e cria.
Manuel, que a Joane sucedeu
:Mas de vias tão ásperas, tamanhas,
No Reino e nos altivos pensamentos,
:Tornar-se facilmente não podia:
Logo, corno tornou do Reino o cargo,
:Lá morreram enfim, e lá ficaram,
Tomou mais a conquista do mar largo.
:Que à desejada pátria não tornaram.
 
:
:::::6667
"O qual, como do nobre pensamento
:"Parece que guardava o claro Céu
Daquela obrigação, que lhe ficara
:A Manuel, e seus merecimentos,
De seus antepassados, (cujo intento
:Esta empresa tão árdua, que o moveu
Foi sempre acrescentar a terra cara)
:A subidos e ilustres movimentos:
Não deixasse de ser um só momento
:Manuel, que a Joane sucedeu
Conquistado: no tempo que a luz clara
:No Reino e nos altivos pensamentos,
Foge, e as estrelas nítidas, que saem,
:Logo, corno tornou do Reino o cargo,
A repouso convidam quando caem,
:Tomou mais a conquista do mar largo.
 
:
:::::6768
"Estando já deitado no áureo leito,
:"O qual, como do nobre pensamento
Onde imaginações mais certas são?
:Daquela obrigação, que lhe ficara
Revolvendo contino no conceito
:De seus antepassados, (cujo intento
Seu ofício e sangue a obrigação,
:Foi sempre acrescentar a terra cara)
Os olhos lhe ocupou o sono aceito,
:Não deixasse de ser um só momento
Sem lhe desocupar o coração;
:Conquistado: no tempo que a luz clara
Porque, tanto que lasso se adormece,
:Foge, e as estrelas nítidas, que saem,
Morfeu em várias formas lhe aparece.
:A repouso convidam quando caem,
 
:
:::::68 69
"Aqui se lhe apresenta que subia
:"Estando já deitado no áureo leito,
Tão alto, que tocava a prima Esfera,
:Onde imaginações mais certas são?
Donde diante vários mundos via,
:Revolvendo contino no conceito
Nações de muita gente estranha e fera;
:Seu ofício e sangue a obrigação,
E lá bem junto donde nasce o dia,
:Os olhos lhe ocupou o sono aceito,
Depois que os olhos longos estendera,
:Sem lhe desocupar o coração;
Viu de antigos, longínquos e altos montes
:Porque, tanto que lasso se adormece,
Nascerem duas claras e altas fontes.
:Morfeu em várias formas lhe aparece.
 
:
:::::6970
"Aves agrestes, feras e alimárias,
:"Aqui se lhe apresenta que subia
Pelo monte selvático habitavam;
:Tão alto, que tocava a prima Esfera,
Mil árvores silvestres e ervas várias
:Donde diante vários mundos via,
O passo e o tracto às gentes atalhavam.
:Nações de muita gente estranha e fera;
Estas duras montanhas, adversárias
:E lá bem junto donde nasce o dia,
De mais conversação, por si mostravam
:Depois que os olhos longos estendera,
Que, desque Adão pecou aos nossos anos,
:Viu de antigos, longínquos e altos montes
Não as romperam nunca pés humanos.
:Nascerem duas claras e altas fontes.
 
:
:::::70 71
"Das águas se lhe antolha que saíam,
:"Aves agrestes, feras e alimárias,
Para ele os largos passos inclinando,
:Pelo monte selvático habitavam;
Dois homens, que mui velhos pareciam,
:Mil árvores silvestres e ervas várias
De aspecto, inda que agreste, venerando:
:O passo e o tracto às gentes atalhavam.
Das pontas dos cabelos lhe caíam
:Estas duras montanhas, adversárias
Gotas, que o corpo vão banhando;
:De mais conversação, por si mostravam
A cor da pele baça e denegrida,
:Que, desque Adão pecou aos nossos anos,
A barba hirsuta, intonsa, mas comprida.
:Não as romperam nunca pés humanos.
 
:
:::::7172
"Dambos de dois a fronte coroada
:"Das águas se lhe antolha que saíam,
Ramos não conhecidos e ervas tinha;
:Para ele os largos passos inclinando,
Um deles a presença traz cansada,
:Dois homens, que mui velhos pareciam,
Como quem de mais longe ali caminha.
:De aspecto, inda que agreste, venerando:
E assim a água, com ímpeto alterada,
:Das pontas dos cabelos lhe caíam
Parecia que doutra parte vinha,
:Gotas, que o corpo vão banhando;
Bem como Alfeu de Arcádia em Siracusa
:A cor da pele baça e denegrida,
Vai buscar os abraços de Aretusa.
:A barba hirsuta, intonsa, mas comprida.
 
:
:::::7273
"Este, que era o mais grave na pessoa,
:"Dambos de dois a fronte coroada
Destarte para o Rei de longe brada:
:Ramos não conhecidos e ervas tinha;
- "Ó tu, a cujos reinos e coroa
:Um deles a presença traz cansada,
Grande parte do mundo está guardada,
:Como quem de mais longe ali caminha.
Nós outros, cuja fama tanto voa,
:E assim a água, com ímpeto alterada,
Cuja cerviz bem nunca foi domada,
:Parecia que doutra parte vinha,
Te avisamos que é tempo que já mandes
:Bem como Alfeu de Arcádia em Siracusa
A receber de nós tributos grandes.
:Vai buscar os abraços de Aretusa.
 
:
:::::7374
:- "Este,Eu que erasou o maisilustre graveGanges, que na pessoa,terra
Celeste tenho o berço verdadeiro;
:Destarte para o Rei de longe brada:
Estoutro é o Indo Rei que, nesta serra
:- "Ó tu, a cujos reinos e coroa
Que vês, seu nascimento tem primeiro.
:Grande parte do mundo está guardada,
Custar-te-emos contudo dura guerra;
:Nós outros, cuja fama tanto voa,
Mas insistindo tu, por derradeiro,
:Cuja cerviz bem nunca foi domada,
Com não vistas vitórias, sem receio,
:Te avisamos que é tempo que já mandes
A quantas gentes vês, porás o freio."-
:A receber de nós tributos grandes.
 
:
:::::7475
:- "EuNão soudisse mais o rio ilustre Gangese santo, que na terra
Mas ambos desaparecem num momento.
:Celeste tenho o berço verdadeiro;
Acorda Emanuel c'um novo espanto
:Estoutro é o Indo Rei que, nesta serra
E grande alteração de pensamento.
:Que vês, seu nascimento tem primeiro.
Estendeu nisto Febo o claro manto
:Custar-te-emos contudo dura guerra;
Pelo escuro Hemisfério sonolento;
:Mas insistindo tu, por derradeiro,
Veio a manhã no céu pintando as cores
:Com não vistas vitórias, sem receio,
De pudibunda rosa e roxas flores.
:A quantas gentes vês, porás o freio."-
 
:
:::::7576
"Chama o Rei os senhores a conselho,
:"Não disse mais o rio ilustre e santo,
E propõe-lhe as figuras da visão;
:Mas ambos desaparecem num momento.
As palavras lhe diz do santo velho,
:Acorda Emanuel c'um novo espanto
Que a todos foram grande admiração.
:E grande alteração de pensamento.
Determinam o náutico aparelho,
:Estendeu nisto Febo o claro manto
Para que com sublime coração
:Pelo escuro Hemisfério sonolento;
Vá a gente que mandar cortando os mares
:Veio a manhã no céu pintando as cores
A buscar novos climas, novos ares.
:De pudibunda rosa e roxas flores.
 
:
:::::7677
"Eu, que bem mal cuidava que em efeito
:"Chama o Rei os senhores a conselho,
Se pusesse o que o peito me pedia,
:E propõe-lhe as figuras da visão;
Que sempre grandes cousas deste jeito
:As palavras lhe diz do santo velho,
Pressago o coração me prometia,
:Que a todos foram grande admiração.
Não sei por que razão, por que respeito,
:Determinam o náutico aparelho,
Ou por que bom sinal que em mi se via,
:Para que com sublime coração
Me põe o ínclito Rei nas mãos a chave
:Vá a gente que mandar cortando os mares
Deste cometimento grande e grave.
:A buscar novos climas, novos ares.
 
:
:::::7778
"E com rogo o palavras amorosas,
:"Eu, que bem mal cuidava que em efeito
Que é um mando nos Reis, que a mais obriga,
:Se pusesse o que o peito me pedia,
Me disse:Que sempre- grandes"As cousas desteárduas e jeitolustrosas
Se alcançam com trabalho e com fadiga;
:Pressago o coração me prometia,
Faz as pessoas altas e famosas
:Não sei por que razão, por que respeito,
:OuA porvida que bomse sinalperde e que em mi se via,periga;
Que, quando ao medo infame não se rende,
:Me põe o ínclito Rei nas mãos a chave
Então, se menos dura, mais se estende.
:Deste cometimento grande e grave.
 
:
:::::7879
- "Eu vos tenho entre todos escolhido
:"E com rogo o palavras amorosas,
Para uma empresa, qual a vós se deve,
:Que é um mando nos Reis, que a mais obriga,
Trabalho ilustre, duro e esclarecido,
:Me disse: - "As cousas árduas e lustrosas
O que eu sei que por mi vos será leve."-
:Se alcançam com trabalho e com fadiga;
Não sofri mais, mas logo: - "Ó Rei subido,
:Faz as pessoas altas e famosas
Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve,
:A vida que se perde e que periga;
É tão pouco por vós, que mais me pena
:Que, quando ao medo infame não se rende,
Ser esta vida cousa tão pequena.
:Então, se menos dura, mais se estende.
 
:
:::::7980
- "Imaginai tamanhas aventuras,
:- "Eu vos tenho entre todos escolhido
Quais Euristeu a Alcides inventava,
:Para uma empresa, qual a vós se deve,
O leão Cleoneu, Harpias duras,
:Trabalho ilustre, duro e esclarecido,
O porco de Erimanto, a Hidra brava,
:O que eu sei que por mi vos será leve."-
Descer enfim às sombras vãs e escuras
:Não sofri mais, mas logo: - "Ó Rei subido,
Onde os campos de Dite a Estige lava;
:Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve,
Porque a maior perigo, a mor afronta,
:É tão pouco por vós, que mais me pena
Por vós, ó Rei, o espírito e a carne é pronta."
:Ser esta vida cousa tão pequena.
 
:
:::::8081
"Com mercês sumptuosas me agradece
:- "Imaginai tamanhas aventuras,
E com razões me louva esta vontade;
:Quais Euristeu a Alcides inventava,
Que a virtude louvada vive e cresce,
:O leão Cleoneu, Harpias duras,
E o louvor altos casos persuade.
:O porco de Erimanto, a Hidra brava,
A acompanhar-me logo se oferece,
:Descer enfim às sombras vãs e escuras
Obrigado d'amor e d'amizade,
:Onde os campos de Dite a Estige lava;
Não menos cobiçoso de honra e fama,
:Porque a maior perigo, a mor afronta,
O caro meu irmão Paulo da Gama.
:Por vós, ó Rei, o espírito e a carne é pronta."
 
:
:::::8182
"Mais se me ajunta Nicolau Coelho,
:"Com mercês sumptuosas me agradece
De trabalhos mui grande sofredor;
:E com razões me louva esta vontade;
Ambos são de valia e de conselho,
:Que a virtude louvada vive e cresce,
De experiência em armas e furor.
:E o louvor altos casos persuade.
Já de manceba gente me aparelho,
:A acompanhar-me logo se oferece,
Em que cresce o desejo do valor;
:Obrigado d'amor e d'amizade,
Todos de grande esforço; e assim parece
:Não menos cobiçoso de honra e fama,
Quem a tamanhas cousas se oferece.
:O caro meu irmão Paulo da Gama.
 
:
:::::8283
"Foram de Emanuel remunerados,
:"Mais se me ajunta Nicolau Coelho,
Porque com mais amor se apercebessem,
:De trabalhos mui grande sofredor;
E com palavras altas animados
:Ambos são de valia e de conselho,
Para quantos trabalhos sucedessem.
:De experiência em armas e furor.
Assim foram os Mínias ajuntados,
:Já de manceba gente me aparelho,
Para que o Véu dourado combatessem,
:Em que cresce o desejo do valor;
Na fatídica Nau, que ousou primeira
:Todos de grande esforço; e assim parece
Tentar o mar Euxínio, aventureira.
:Quem a tamanhas cousas se oferece.
 
:
:::::8384
"E já no porto da ínclita Ulisseia
:"Foram de Emanuel remunerados,
C'um alvoroço nobre, e é um desejo,
:Porque com mais amor se apercebessem,
(Onde o licor mistura e branca areia
:E com palavras altas animados
Co'o salgado Neptuno o doce Tejo)
:Para quantos trabalhos sucedessem.
As naus prestes estão; e não refreia
:Assim foram os Mínias ajuntados,
Temor nenhum o juvenil despejo,
:Para que o Véu dourado combatessem,
Porque a gente marítima e a de Marte
:Na fatídica Nau, que ousou primeira
Estão para seguir-me a toda parte.
:Tentar o mar Euxínio, aventureira.
 
:
:::::8485
"Pelas praias vestidos os soldados
:"E já no porto da ínclita Ulisseia
De várias cores vêm e várias artes,
:C'um alvoroço nobre, e é um desejo,
E não menos de esforço aparelhados
:(Onde o licor mistura e branca areia
Para buscar do inundo novas partes.
:Co'o salgado Neptuno o doce Tejo)
Nas fortes naus os ventos sossegados
:As naus prestes estão; e não refreia
Ondeam os aéreos estandartes;
:Temor nenhum o juvenil despejo,
Elas prometem, vendo os mares largos,
:Porque a gente marítima e a de Marte
De ser no Olimpo estrelas como a de Argos.
:Estão para seguir-me a toda parte.
 
:
:::::8586
"Depois de aparelhados desta sorte
:"Pelas praias vestidos os soldados
:De váriasquanto corestal vêmviagem epede váriase artesmanda,
Aparelhamos a alma para a morte,
:E não menos de esforço aparelhados
Que sempre aos nautas ante os olhos anda.
:Para buscar do inundo novas partes.
Para o sumo Poder que a etérea corte
:Nas fortes naus os ventos sossegados
Sustenta só coa vista veneranda,
:Ondeam os aéreos estandartes;
Imploramos favor que nos guiasse,
:Elas prometem, vendo os mares largos,
E que nossos começos aspirasse.
:De ser no Olimpo estrelas como a de Argos.
 
:
:::::8687
"Partimo-nos assim do santo templo
:"Depois de aparelhados desta sorte
Que nas praias do mar está assentado,
:De quanto tal viagem pede e manda,
Que o nome tem da terra, para exemplo,
:Aparelhamos a alma para a morte,
Donde Deus foi em carne ao mundo dado.
:Que sempre aos nautas ante os olhos anda.
Certifico-te, ó Rei, que se contemplo
:Para o sumo Poder que a etérea corte
Como fui destas praias apartado,
:Sustenta só coa vista veneranda,
Cheio dentro de dúvida e receio,
:Imploramos favor que nos guiasse,
Que apenas nos meus olhos ponho o freio.
:E que nossos começos aspirasse.
 
:
:::::8788
"A gente da cidade aquele dia,
:"Partimo-nos assim do santo templo
(Uns por amigos, outros por parentes,
:Que nas praias do mar está assentado,
Outros por ver somente) concorria,
:Que o nome tem da terra, para exemplo,
Saudosos na vista e descontentes.
:Donde Deus foi em carne ao mundo dado.
E nós coa virtuosa companhia
:Certifico-te, ó Rei, que se contemplo
De mil Religiosos diligentes,
:Como fui destas praias apartado,
Em procissão solene a Deus orando,
:Cheio dentro de dúvida e receio,
Para os batéis viemos caminhando.
:Que apenas nos meus olhos ponho o freio.
 
:
:::::8889
"Em tão longo caminho e duvidoso
:"A gente da cidade aquele dia,
Por perdidos as gentes nos julgavam;
:(Uns por amigos, outros por parentes,
As mulheres c'um choro piedoso,
:Outros por ver somente) concorria,
Os homens com suspiros que arrancavam;
:Saudosos na vista e descontentes.
Mães, esposas, irmãs, que o temeroso
:E nós coa virtuosa companhia
Amor mais desconfia, acrescentavam
:De mil Religiosos diligentes,
A desesperarão, e frio medo
:Em procissão solene a Deus orando,
De já nos não tornar a ver tão cedo.
:Para os batéis viemos caminhando.
 
:
:::::8990
"Qual vai dizendo: -" Ó filho, a quem eu tinha
:"Em tão longo caminho e duvidoso
Só para refrigério, e doce amparo
:Por perdidos as gentes nos julgavam;
Desta cansada já velhice minha,
:As mulheres c'um choro piedoso,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
:Os homens com suspiros que arrancavam;
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
:Mães, esposas, irmãs, que o temeroso
Por que de mim te vás, ó filho caro,
:Amor mais desconfia, acrescentavam
A fazer o funéreo enterramento,
:A desesperarão, e frio medo
Onde sejas de peixes mantimento!" -
:De já nos não tornar a ver tão cedo.
 
:
:::::9091
:"Qual vaiem dizendocabelo: -" Ó filho,doce ae quemamado eu tinhaesposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
:Só para refrigério, e doce amparo
Por que is aventurar ao mar iroso
:Desta cansada já velhice minha,
Essa vida que é minha, e não é vossa?
:Que em choro acabará, penoso e amaro,
Como por um caminho duvidoso
:Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
:Por que de mim te vás, ó filho caro,
Nosso amor, nosso vão contentamento
:A fazer o funéreo enterramento,
Quereis que com as velas leve o vento?" -
:Onde sejas de peixes mantimento!" -
 
:
:::::9192
"Nestas e outras palavras que diziam
:"Qual em cabelo: -"Ó doce e amado esposo,
De amor e de piedosa humanidade,
:Sem quem não quis Amor que viver possa,
Os velhos e os meninos os seguiam,
:Por que is aventurar ao mar iroso
Em quem menos esforço põe a idade.
:Essa vida que é minha, e não é vossa?
Os montes de mais perto respondiam,
:Como por um caminho duvidoso
Quase movidos de alta piedade;
:Vos esquece a afeição tão doce nossa?
A branca areia as lágrimas banhavam,
:Nosso amor, nosso vão contentamento
Que em multidão com elas se igualavam.
:Quereis que com as velas leve o vento?" -
 
:
:::::9293
"Nós outros sem a vista alevantarmos
:"Nestas e outras palavras que diziam
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
:De amor e de piedosa humanidade,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
:Os velhos e os meninos os seguiam,
Do propósito firme começado,
:Em quem menos esforço põe a idade.
Determinei de assim nos embarcarmos
:Os montes de mais perto respondiam,
Sem o despedimento costumado,
:Quase movidos de alta piedade;
Que, posto que é de amor usança boa,
:A branca areia as lágrimas banhavam,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
:Que em multidão com elas se igualavam.
 
:
:::::9394
"Mas um velho d'aspeito venerando,
:"Nós outros sem a vista alevantarmos
Que ficava nas praias, entre a gente,
:Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Postos em nós os olhos, meneando
:Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Três vezes a cabeça, descontente,
:Do propósito firme começado,
A voz pesada um pouco alevantando,
:Determinei de assim nos embarcarmos
Que nós no mar ouvimos claramente,
:Sem o despedimento costumado,
C'um saber só de experiências feito,
:Que, posto que é de amor usança boa,
Tais palavras tirou do experto peito:
:A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
 
:
:::::9495
- "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
:"Mas um velho d'aspeito venerando,
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
:Que ficava nas praias, entre a gente,
Ó fraudulento gosto, que se atiça
:Postos em nós os olhos, meneando
C'uma aura popular, que honra se chama!
:Três vezes a cabeça, descontente,
Que castigo tamanho e que justiça
:A voz pesada um pouco alevantando,
Fazes no peito vão que muito te ama!
:Que nós no mar ouvimos claramente,
Que mortes, que perigos, que tormentas,
:C'um saber só de experiências feito,
Que crueldades neles experimentas!
:Tais palavras tirou do experto peito:
 
:
:::::9596
- "Dura inquietação d'alma e da vida,
:- "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Fonte de desamparos e adultérios,
:Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Sagaz consumidora conhecida
:Ó fraudulento gosto, que se atiça
De fazendas, de reinos e de impérios:
:C'uma aura popular, que honra se chama!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
:Que castigo tamanho e que justiça
Sendo dina de infames vitupérios;
:Fazes no peito vão que muito te ama!
Chamam-te Fama e Glória soberana,
:Que mortes, que perigos, que tormentas,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
:Que crueldades neles experimentas!
 
:
:::::9697
- "A que novos desastres determinas
:- "Dura inquietação d'alma e da vida,
De levar estes reinos e esta gente?
:Fonte de desamparos e adultérios,
Que perigos, que mortes lhe destinas
:Sagaz consumidora conhecida
Debaixo dalgum nome preminente?
:De fazendas, de reinos e de impérios:
Que promessas de reinos, e de minas
:Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
:Sendo dina de infames vitupérios;
Que famas lhe prometerás? que histórias?
:Chamam-te Fama e Glória soberana,
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
:Nomes com quem se o povo néscio engana!
 
:
:::::9798
- "Mas ó tu, geração daquele insano,
:- "A que novos desastres determinas
Cujo pecado e desobediência,
:De levar estes reinos e esta gente?
Não somente do reino soberano
:Que perigos, que mortes lhe destinas
Te pôs neste desterro e triste ausência,
:Debaixo dalgum nome preminente?
Mas inda doutro estado mais que humano
:Que promessas de reinos, e de minas
Da quieta e da simples inocência,
:D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Idade d'ouro, tanto te privou,
:Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que na de ferro e d'armas te deitou:
:Que triunfos, que palmas, que vitórias?
 
:
:::::9899
- "Já que nesta gostosa vaidade
:- "Mas ó tu, geração daquele insano,
Tanto enlevas a leve fantasia,
:Cujo pecado e desobediência,
Já que à bruta crueza e feridade
:Não somente do reino soberano
Puseste nome esforço e valentia,
:Te pôs neste desterro e triste ausência,
Já que prezas em tanta quantidades
:Mas inda doutro estado mais que humano
O desprezo da vida, que devia
:Da quieta e da simples inocência,
De ser sempre estimada, pois que já
:Idade d'ouro, tanto te privou,
Temeu tanto perdê-la quem a dá:
:Que na de ferro e d'armas te deitou:
 
:
:::::99100
- "Não tens junto contigo o Ismaelita,
:- "Já que nesta gostosa vaidade
Com quem sempre terás guerras sobejas?
:Tanto enlevas a leve fantasia,
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
:Já que à bruta crueza e feridade
Se tu pela de Cristo só pelejas?
:Puseste nome esforço e valentia,
Não tem cidades mil, terra infinita,
:Já que prezas em tanta quantidades
Se terras e riqueza mais desejas?
:O desprezo da vida, que devia
Não é ele por armas esforçado,
:De ser sempre estimada, pois que já
Se queres por vitórias ser louvado?
:Temeu tanto perdê-la quem a dá:
 
:
:::::100101
:- "NãoDeixas tenscriar juntoàs contigoportas o Ismaelitainimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
:Com quem sempre terás guerras sobejas?
Por quem se despovoe o Reino antigo,
:Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe?
:Se tu pela de Cristo só pelejas?
Buscas o incerto e incógnito perigo
:Não tem cidades mil, terra infinita,
Por que a fama te exalte e te lisonge,
:Se terras e riqueza mais desejas?
Chamando-te senhor, com larga cópia,
:Não é ele por armas esforçado,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?
:Se queres por vitórias ser louvado?
 
:
:::::101102
- "Ó maldito o primeiro que no mundo
:- "Deixas criar às portas o inimigo,
Nas ondas velas pôs em seco lenho,
:Por ires buscar outro de tão longe,
Dino da eterna pena do profundo,
:Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
:Se enfraqueça e se vá deitando a longe?
Nunca juízo algum alto e profundo,
:Buscas o incerto e incógnito perigo
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
:Por que a fama te exalte e te lisonge,
Te dê por isso fama nem memória,
:Chamando-te senhor, com larga cópia,
Mas contigo se acabe o nome e glória.
:Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?
 
:
:::::102103
:- "Ó malditoTrouxe o primeirofilho de queJápeto nodo mundoCéu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
:Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Fogo que o mundo em armas acendeu
:Dino da eterna pena do profundo,
Em mortes, em desonras (grande engano).
:Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
:Nunca juízo algum alto e profundo,
E quanto para o mundo menos dano,
:Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Que a tua estátua ilustre não tivera
:Te dê por isso fama nem memória,
Fogo de altos desejos, que a movera!
:Mas contigo se acabe o nome e glória.
 
:
:::::103104
- "Não cometera o moço miserando
:- "Trouxe o filho de Jápeto do Céu
O carro alto do pai, nem o ar vazio
:O fogo que ajuntou ao peito humano,
O grande Arquiteto co'o filho, dando
:Fogo que o mundo em armas acendeu
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
:Em mortes, em desonras (grande engano).
Nenhum cometimento alto e nefando,
:Quanto melhor nos fora, Prometeu,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
:E quanto para o mundo menos dano,
Deixa intentado a humana geração.
:Que a tua estátua ilustre não tivera
Mísera sorte, estranha condição!" -
:Fogo de altos desejos, que a movera!
</poem>
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:::::104
:- "Não cometera o moço miserando
:O carro alto do pai, nem o ar vazio
:O grande Arquiteto co'o filho, dando
:Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
:Nenhum cometimento alto e nefando,
:Por fogo, ferro, água, calma e frio,
:Deixa intentado a humana geração.
:Mísera sorte, estranha condição!" -
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[[Categoria:Os Lusíadas]]