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{{navegar
|obra=[[São Cristóvão]]
|autor=Eça de
|seção=Capítulo III
|anterior=[[São Cristóvão/II|Capítulo II]]
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Era então tão pesado que a boa mulher vergava, mal o podia transportar da porta para o berço. E todavia tinha só seis meses. A moleira que parava, com o seu jumentinho carregado de sacos, diante da cabana, para o ver, pasmava das suas cores vermelhas, da sua força, dos seus membros perfeitos e daquele sossego em que permanecia, todo um longo dia de verão, sentado, cravando na mesma pedra ou no mesmo ramo os seus olhos azulados, sem brilho e sem vida. E ela via nesta transformação um milagre de Santa Ana.
Muito antes do Natal, Cristóvão começou a andar. Já corria toda a horta, era quase da altura da sebe
O que a consolava era senti-lo tão manso e doce. Se ela, assustada, lhe tirava o machado do lenhador, que ele gostava de erguer, ou se o afastava do lume, que incessantemente o atraía, ele não mostrava nem resistência nem impaciência. Não era mais inerte um fardo de lã. Permanecia longas horas na tripeça em que o sentava, ou à sombra , debaixo da cerejeira da horta. O seu encanto era ver fiar a mãe, atento profundamente ao rodar, ao cantar do fuso. E a cada instante lhe tomava a mão, para nela pousar um beijo mudo, sem brilho, que não findava. Ela apertava-o ao seu coração, murmurando, desolada:
E, no entanto, já perto dos quatro anos, não falava. O único som que saía, cavo e grosso, dos seus lábios cor de aurora, era: ''Han! Han!'' Se tinha sede apontava com o grande dedo, rosnava: ''Han! Han!'' Para sair mostrava a porta,e grunhia, com os olhos vagos, para a mãe: ''Han! Han!'' A pobre mulher já perdera a esperança de o ouvir chamar ''mãe e pai''. Já não duvidava de ter concebido um mudo, um imbecil. E na sua dor, num resto de orgulho, não permitia que Cristóvão transpusesse a sebe da horta, descesse abaixo, aos caminhos, com receio que os trabalhadores da floresta, as vizinhas da aldeia, o encontrassem, descobrissem a sua monstruosidade, lamentassem a tristeza do seu lar.
Mas o que sobretudo a aterrava era a insensibilidade de Cristóvão à dor, como coisa diabólica. Uma vespa mordera-o na face, e ele nem chorava, nem a pele lhe inchara. Sentava-se indiferentemente sobre musgo fresco, ou sobre as selvas espinhosas. E um dia mergulhara a mão na água a ferver, e retirara-a, quieto, como se ela fosse de pedra.
Ele suspirava, sombriamente. Toda a sua alegria, diante daquela robustez primeira do filho, tão prometedora, se mudara em dor constante, perante a sua deformidade
Já na aldeia, entre os servos do castelo. corria que o filho do lenhador era um monstro. Decerto fora algum feiticeiro, seu inimigo, que assim lhe lançara uma sorte temerosa. E alguns, mais afoitos, vieram rondar, espreitar em torno da cabana de Cristóvão, para ver o enfeitiçado. A pobre mãe, uma tarde, sentira grossas risadas, rente à sebe da horta; adivinhara estas curiosidades que vinham escarnecer a dor do seu lar. Tinha agora sempre fechada aquela porta da sua cabana, tão limpa, tão honesta, e por onde até aí ela deixara passar os olhares de todos, tão livremente como os raios do Sol. Quando alguma comadre da aldeia, alguma serva do castelo, a chamava de fora, ela antes de abrir, empurrava para fora, para o escuro das árvores, o seu pobre monstro, que lá ia movendo os pés tardos, com a baba ao canto do queixo. O seu desejo seria erguer em torno de sua morada um muro, um alto cerrado de tábuas, que a isolasse de toda a terra. E juntamente sofria em ter assim enclausurado o seu pobre Cristóvão, naqueles escassos palmos de cabana e de horta, em o trazer escondido como um fruto amaldiçoado, de que ela se envergonhava. Toda a sua alma simples e reta andava afogada em tristeza e sombra. E já não duvidava que a monstruosidade do seu filho, era o castigo que a Virgem Maria dera ao seu orgulho de mãe. Tão certa andara de que o seu Cristóvão seria divinamente lindo como o Menino Jesus que S. José erguia nos braços, que a Virgem se escandalizara no fundo dos Céus. E bem justamente! Como poderia o fruto, de um ventre servil, ser igual em beleza ao fruto de um ventre divino?
Uma tarde que assim pensava, movendo o seu fuso, sentiu na horta um rumor, e como pedras batendo a folhagem da cerejeira. Inquieta, abriu o loquete, e viu três pajens do castelo que por trás da sebe, joviais e cruéis, escarneciam o seu filho, e lhe atiravam, como a um bicho numa toca, pedras e torrões secos. E Cristóvão, mais forte que os pajens, mas sem compreender, apenas erguia a mão ante a face, imóvel no meio da horta assoalhada. Ela arrebatou-o desesperadamente para dentro, atirou a porta, enquanto os pajens, ofendidos com a audácia da serva, apedrejavam os muros da cabana. Desde esse dia a pobre mãe começou a definhar. Era uma dor surda, um desconsolo de tudo, que a deixava longas tardes imóvel, com a roca esquecida na cinta, o fuso caído no chão, perdida, entorpecida numa melancolia sem fim e sem nome. Todo o trabalho lhe pesava como um fardo inútil. Quase lhe custava a vestir Cristóvão, que nem o seu grosso gibão de estamenha sabia enfiar, e que quase fazia corar a pobre mãe, com o seu enorme corpo nu, grande como o dela, e que lhe parecia a nudez de um estranho, de um homem, que invadira o seu lar. À noite, silenciosa e pálida, repelia a sua malga de caldo,que Cristóvão logo devorava em silêncio. E não queria que o seu homem, assustado, chamasse o físico do castelo. Para quê?
Desde que ela adoecera, Cristóvão não abandonara a beira do catre, pasmando para a mãe, ansiosamente, como no esforço de compreender porque ela ficava deitada e de olhos adormecidos, quando sol envolvia a cabana, e até as árvores tinham acordado. Por vezes tocava-lhe o braço, o ombro, com um pequenino gemido triste. Ela murmurava, com toda a sua alma:
Era então o fim do outono. Já o lenhador, ao recolher, sacudia o saião, todo molhado da umidade da floresta: e um grande vento por vezes gemia nos pinheirais. Toda a noite a candeia ficava acesa. Numa enxerga, ao lado da lareira, Cristóvão dormia sob peles de cabra, fazendo um grande vulto na sombra, ressonando tão fortemente como uma forja. E a pobre mulher, o homem ao lado, sentado na tripeça, entorpecido de fadiga e de sono, não dormia, pensando no abandono e na tristeza em que caíra aquela pobre cabana, de que ela fizera um ninho tão doce! Quem cozinharia a sopa do seu homem, quem trataria daquele pobre monstro, que nem sabia enfiar o seu gibão? Um grande soluço sacudia o seu peito magro: - e o lenhador despertando, estremunhado, arranjava a manta que cobria o catre, ou ia remexer nas brasas da lenha.
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Uma noite, em que havia um grande silêncio no arvoredo e no ar, porque caía a neve, ela sentiu um grande frio que lhe passava no rosto, e através do desmaio que a tomava, estendeu a mão, apalpando para dizer para sempre adeus ao seu homem. E os seus olhos vagos e lentos encontraram então os olhos do seu Cristóvão, que se erguera, embrulhado numa pele de cabra, e estava aos pés do catre, atento, e como esperando, num espanto. Moveu os lábios para lhe pedir que se deitassem se agasalhasse, mas só pôde suspirar, desfalecida... E pareceu-lhe que, diante, o seu filho começava a crescer visivelmente; já os seus cabelos ruivos tocavam o teto da cabana; o colmo esgarçou, e, através da abertura, Cristóvão crescia para o céu mais alto que os pinheiros, já com a face perdida entre os flocos de neve; e tão feio e monstruoso que as estrelas fugiam pelo ar, como almas assustadas. Deu um grito. O pobre lenhador despertou, debruçando logo sobre ela, a tremer. A sua companheira parecia adormecida. Então Cristóvão veio lentamente em torno do catre, e pondo as mãos, de leve, sobre os cabelos que um suor umedecia, gritou:
Cristóvão falara! O seu filho falava! Um rubor de infinito contentamento subiu-lhe ao rosto macerado, que ficou imóvel, sorrindo: - e a boa fiandeira partiu desta terra para o além...
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