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{{navegar
|obra=[[São Cristóvão]]
|autor=Eça de
|seção=Capítulo IV
|anterior=[[São Cristóvão/III|Capítulo III]]
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A cerejeira na horta estava coberta de cerejas: o lenhador outra vez trabalhava nos soutos, desde o cantar da calhandra: - e a viúva de um carvoeiro da mata vinha, todos os dias, cuidar da cabana e guardar Cristóvão. Era uma velha muito magra e sombria, que surdia de entre os pinheiros, encostada a um bordão, acompanhada por um gato negro. Nos primeiros dias, a cada passo, agachada sobre o lume, ou fiando à porta, voltava para os membros imensos de Cristóvão com inquietação os seus olhinhos luzidios, que os grossos pêlos das sobrancelhas cobriam. Aquele ser disforme, que o pai chamava
Logo à porta a velha, apertando as mãos, contava como Cristóvão se conservava quieto, e tão bom, brincando na horta ou atento às histórias, que ela sabia, de fadas e de mouros. O lenhador, coçava a barba, contente: - e Cristóvão, diante da lareira, onde a lenha estalava, sorria, pasmadamente, sacudindo as mãos cheias de terra.
Quando os frios vieram, a serradeira, às vezes, ao lidar na cabana, gemia, esfregando os joelhos. Cristóvão arregalava para ela os olhos compadecidos. E um dia que ela coxeava, gemia mais, saindo para a fonte, Cristóvão timidamente tocou na asa do grosso cântaro de barro, murmurando, muito vermelho:
E, desde então, ele começou a fazer pouco a pouco todos os trabalhos domésticos. Através do longo inverno a serradeira não se moveu mais do canto da lareira, fiando na sua roca, com o gato agachado aos pés. Cristóvão ia encher a bilha à fonte, acendia a lareira, areava as panelas, polia as ferragens do armário, batia os colchões dos catres
À noite, à ceia, esfarelando com lentidão a broa no caldo, o lenhador contemplava com espanto o seu Cristóvão, que lhe parecia diferente, mais atento, desentorpecido, conhecendo já que ele abatia árvores numa floresta, que a égua branca, e as terras, e os gados que pastavam, pertenciam a um Senhor, e que aos domingos se descansava para visitar Deus na sua casa, onde os sinos cantavam no ar. Mas o que encantava o bom lenhador era o cuidado novo de Cristóvão em o servir
Depois da ceia, aproveitando o resto do candil, o lenhador tinha já o contentamento inefável de conversar com o seu filho, como outrora com a sua boa companheira
Teve então orgulho do seu filho, desejou que aldeia o conhecessem. Cristóvão crescia sempre
Cristóvão penetrava na velha igreja, de muros severos como os de uma cidadela, com um enleio, um medo vago. Ele sabia que aquela alta casa de pedra, com lâmpadas que rebrilhavam, era de Deus Nosso Senhor, que tinha uma assim em cada aldeia, onde, nos dias quietos e silenciosos em que não se trabalhava, o povo, vestido de panos novos, o vinha visitar e louvar. E desde o domingo de Maio, em que ele descera da cabana, através dos campos verdes, entre as sebes de madressilvas, para ouvir a sua primeira missa, sempre aquela casa de Deus Nosso Senhor deixara, na sua alma simples, o terror de um lugar muito rico, muito triste, e todo cheio de mistério. Uma grande sombra fria caía das abóbadas escuras. Todas as imagens, sobre os altares, lívidas, emaciadas, pareciam sofrer: - o moço nu que torcia o corpo amarrado a uma árvore, e trespassado de flechas; a rainha, tão triste, sob a sua coroa de ouro, e no seu manto de cetim, com o coração varado por sete espadas; o monge, com um resplendor de prata, que mostrava as chagas das mãos abertas. Em tocheiros de ouro lavrado ardiam longos lumes de tristeza. Panos de veludo, de seda, com recamos rebrilhantes, tapavam recantos de onde por vezes saía como o murmúrio de um gemido. Toda a multidão dobrava para as lajes as faces cheias de um pensar triste. E a faixa de luz de uma fenda, aberta na muralha, alumiava a melancolia maior, o Homem pregado numa cruz com pregos, com sangue vivo nos joelhos, no peito, nos pés, que erguia a face atormentada para o Céu e parecia chamar, num abandono. E assim, pois, era a casa do Senhor, cheia de ouros, de sangue que escorria, de veludos magníficos, de tristeza e de mudez!
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Diante do altar maior, no entanto, um velho, todo calvo, coberto com uma capa resplandecente, alargava os braços, beijava a toalha bordada da ara, voltava as folhas de um grande livro, ofertava para as alturas um bolo de farinha muito alva, bebia por um copo onde jóias faiscavam. Voltado para ele, ao lado do pai, Cristóvão ajoelhava como o pai sobre as lajes, traçava uma cruz sobre a testa, martelava o peito com os seus punhos duros: - mas permanecia tão insensível e alheio à adoração que ante ele se desenrolava, como o pilar de uma pedra escura, a que findava, por se encostar, fatigado daquela melancolia da casa de Deus. Os olhos então embebiam-se numa grande pomba branca, que se conservava imóvel, com as asas abertas, por cima do sacrário, e que cada domingo o atraía mais, sempre ali, fiel, paciente, sem que uma das suas peças estremecesse: só ela era doce, alegre, natural, na sua brancura adorável, e macia à vista: com um bico claro, patas rosadas, só ela não tinha, no seu corpo de pomba, nem ouro, nem sangue: natural, e igual às outras pombas, só ela o não assustava, nem deslumbrava: - e Cristóvão não compreendia porque se conservava ali naquela sombra fria, entre granitos, ao lado de agonias e dores, e não vinha voar e arrulhar com as outras, sobre os castanheiros do adro.
O seu incerto pensamento ia então para os prados que atravessara, descendo das cabanas, para a verde frescura do choupal, para o sol que aquecia os lagartos dormindo nas pedras brancas. Teria decerto gostado de ficar lá, pelos campos, pela beira do rio, todo o longo domingo, sentindo a erva fresca entre os joelhos, roçando a mão pela frescura das ramagens baixas. Mas nos domingos era necessário visitar, louvar a Deus Nosso Senhor. Só assim, como lhe afirmava o pai, se subia depois ao Céu. Ele, decerto, iria uma dia para o Céu. E uma inquietação passava na sua alma, porque o Céu, como a Igreja, se lhe afigurava escuro, pesado, com ouros, grandes panos de seda. Homens cobertos de sangue, Rainhas com o pobre coração varado de espadas
Então, pouco a pouco, tomou mais familiaridade com florestas e prados. Já corria a sua grossa mão sobre a doçura dos musgos; trepava aos troncos para espreitar para dentro da densidão das folhagens; estirava-se no meio das relvas altas, rolando os seus cabelos crespos pela brancura das margaridas. E ao mesmo tempo descobria, dentro de toda esta natureza, uma vida múltipla, vasta, ativa e maravilhosa. A terra, que ele remexia com seus dedos grossos, estava toda mole dos vermes que a habitavam; cada hastezinha de relva abrigava um povo de insetos, mais numerosos que a gente da aldeia, aos domingos, sob os castanheiros do adro; cada folha cobria uma asa; nas espessuras, longos dorsos peludos roçavam as suas pernas lentas; olhinhos brilhantes espreitavam de entre a negrura das tocas; o restolhar dos matos dizia a passagem das feras. Um confuso, obscuro amor por todos estes seres, crescia no seu coração simples. Passava horas encantadas, estirado nas ervas à beira de uma poça clara, admirando os insetos de grandes patas que riscam a água lisa; chamava com as mãos, sorrindo, todos os veados que, à orla das clareiras, subitamente mostravam a face majestosa e séria, entre os troncos dos castanheiros; e parava nos carreiros verdes de umidade e musgo para acariciar o dorso dos sapos.
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Assim a floresta se lhe tornava familiar e íntima, e nela passava os dias, nos retiros mais densos, enterrado entre as verduras, agachado contra uma rocha, de bruços sobre uma poça de água, sem se mover, vegetando na doçura infinita de sentir os seus longos cabelos emaranhados nas folhas, os ombros aquecidos pelo mesmo sol que batia nas pedras, as rãs saltando sobre os seus pés como sobre troncos meio enterrados nas ervas úmidas. Só a fome o fazia recolher à cabana. Os seus passos desprendiam-se a custo, como se já tivesse raízes: todo ele cheirava a torrão e umidade, e era, na penumbra da tarde, como um tronco que se separava dos outros troncos. Crescera tão prodigiosamente que se agachava para transpor a porta da cabana. Como nenhuma tripeça sustentava o seu peso, sentava-se no chão diante da lareira aos pés do pai, embebido no espanto, na admiração daquela força.
O bom lenhador então já lhe não dizia ao partir para a mata:
De noite sonhava com ramagens tenras que lhe acariciavam a face, com águas claras e frias que fugiam, cantando, entre os seus pés nus, enterrados na areia. E quando de manhã outra vez, fechando o loquete de pau da cabana, descia para os campos, era em todo o seu coração como um desejo de abraçar, num abraço inteiro, toda a terra que via, desde as flores silvestres dos caminhos até a vasta floresta que cobria as colinas, magnífica e sombria. Mas era nele como uma timidez, um pudor, que o retinha mesmo de tocar nas amoras...
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