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{{navegar
|obra=[[São Cristóvão]]
|autor=Eça de
|seção=Capítulo X
|anterior=[[São Cristóvão/IX|Capítulo IX]]
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Longos dias caminhou. O país era deserto, com rochas; grandes despenhadeiros. A sede levou-o a um regato, que cantava entre as pedras. Bebeu, e foi seguindo aquela água clara que fugia. Ao fim de longas marchas encontrou um rio. Colinas suaves, onde branquejavam casas, erguiam-se dos dois lados da corrente serena e muda, orlada de salgueiros. Uma ponte antiga ligava as duas margens
A turba que fugia, vendo Cristóvão, corria mais espantada, tropeçando, caindo sob o peso dos fardos; ele estendia os braços para amparar os velhos; o terror crescia: - e em torno de suas pernas, como em volta de torres, a multidão debandava gritando.
Chegou por fim à entrada da cidade. Dois soldados atônitos fecharam as portas. Cristóvão galgou o fosso, transpôs as muralhas. Diante dele abria-se uma rua, com trapos caídos nos enxurros, e todas as portas fechadas sob as tabuletas, que rangiam na haste de ferro ao vento agreste. Um fétido terrível tornava o ar pesado: e dois frades, erguendo o hábito, fugiam de um homem que se espojava no chão, com a face toda verde, a boca escancarada, gritando por água! Cristóvão correu para ele, ergueu-o nos braços, levou-o a um chafariz, onde a água jorrava de carrancas. O homem bebeu a largos tragos
Um padeiro, mais pálido que uma tocha, abria a uma esquina as tábuas da sua loja. Cristóvão dirigiu-se a ele, e curvando-se, com as mãos os joelhos, perguntou-lhe que mal corria na cidade, e por que soavam tantos prantos. O homem recuara inquieto, perguntando por seu turno se ele viera com saltimbancos para se mostrar. Cristóvão disse que não, e com um gesto mostrou o horizonte distante de onde vinha. Então o homem aconselhou-lhe que fugisse, porque a cidade morria da peste negra.
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Quando assim falavam, um ruído de correntes arrastadas ressoou no lajedo. E dois homens, com cadeias de ferro presas aos pés, apareceram, trazendo um morto numa padiola. Atrás outros homens, de faces sinistras, com correntes aos pés, traziam outros mortos... Eram os forçados das galés, que iam enterrar os mortos, guardados por soldados, que faziam estalar no ar compridos látegos de couro. Então Cristóvão tomou aos ombros os dois mortos que jaziam junto à fonte, e começou a seguir os forçados. Assim saíram das portas, até chegar a um olival, onde estava plantada uma cruz. Uma vala irregular e tortuosa atravessava sob a ramaria pálida. À pressa, os forçados atiraram os mortos para dentro, e com as enxadas lançaram sobre eles uma ligeira camada de terra. Ao ruído, bandos de corvos, que pousavam nas oliveiras, bateram o vôo, grasnando furiosamente.
Cristóvão sacudiu as mãos da terra, e sem atender aos brados dos soldados que o chamavam, recolheu à cidade, ao acaso, por outra porta, que estava toda tomada por outro funeral, onde havia frades, escudeiros com círios em torno de um caixão, cujo pano de veludo tinha um brasão bordado. Então, todo o dia percorreu as ruas, socorrendo os que caíam, desviando os mortos do meio das calçadas
Como em todas as casas havia um morto, e se receava o contágio, a multidão errava pelas ruas, entregue ao terror e ao delírio. As mulheres, os velhos, corriam às igrejas, a implorar às relíquias, saltavam por cima dos cadáveres que atulhavam os adros. Estes, julgando que o mundo ia findar, corriam às tabernas, arrombavam as pipas, e as blasfêmias dos ébrios juntavam-se ao pranto das mulheres. A cada esquina havia rixas
A cada instante os gritos dos doentes abandonados o detinham. De rastos, ele introduzia o seu vasto corpo pelas escadas estreitas, e ia dar de beber aos doentes, limpar-lhes as imundícies, oferecer-lhes o seu vasto peito para eles morrerem sobre o calor de um coração humano. Por vezes um moribundo queria a extrema-unção; mas os padres tinham fugido, os raros que ainda haviam não bastavam para tantos moribundos; e Cristóvão, tomando um crucifixo, de joelhos, bradava junto do leito fétido:
Todas as noites havia grandes penitências. Bandos de homens, de mulheres seminuas, corriam as ruas, rasgando as carnes, cobrindo a face de lama, cantando cânticos ferozes em que as invocações ao Senhor se confundiam com apelos ao Demônio. Por vezes, de repente, uma voz gritava:
Nas ruas ricas os palácios estavam fechados: e através das janelas sentiam-se músicas e o tinir das baixelas de prata, porque alguns pensavam que se devia esperar a morte no seio do prazer. Outros, porém, iam de casa em casa, em festas seguidas: - e viam-se cavaleiros, sem manto, com gotas de vinho nas barbas agudas, caminharem na rua, entre tocadores de bandolim e de flauta, tropeçando com os seus imensos sapatos bicudos nos cadáveres abandonados: e, para os ver passar, surgiam aos balcões mulheres pálidas, com o seio descoberto, peles de arminho na orla do vestido, e a cabeça coberta de uma mitra aguda de onde pendiam molhos de longas fitas, que o vento fazia ondear como flâmulas de mastros.
Toda a noite Cristóvão trabalhara. Como os guardas não fechavam as portas, por vezes os lobos, atraídos pelo cheiro da podridão, apareciam nas ruas escuras. E Cristóvão, que juntava os cadáveres, corria contra eles bradando, com uma tocha na mão. Os mortos, que assim juntava, ia-os de manhã sepultar nos campos de oliveiras. Depois ia colher à serra ervas aromáticas, que salvam da infecção, e pondo-se às esquinas oferecia-as à gente que saía das suas moradas e que, tomando um milho, se afastava respirando-o com confiança. Como os ladrões abundavam, Cristóvão vigiava a casa dos cambiadores da moeda, dos joalheiros: e se surpreendia uns homens correndo, com alguma coisa escondida sob o saião, tirava-lha e ia depositá-la numa igreja. Era ele quem distribuía a água, varria as imundícies, acendia as fogueiras para depurar o ar. E pouco a pouco, era tão conhecido, que as mulheres, vendo a sua sombra passar rente das gelosias, chamavam sobre ele a benção do Senhor. Os ricos atiravam-lhe bolsas com que ele ia comprar pão às viúvas. Os seus passos eram por vezes embaraçado pelas crianças, que se prendiam às suas pernas como a colunas. Os mercadores confiavam-lhe as suas tendas. Quando ele se ajoelhava à porta de uma igreja, dentro as orações eram mais ardentes. E como ele acarretava as lenhas dos soldados, polia as suas armas, rondava por eles as portas
Uma tão grande popularidade inquietou o sobrinho do príncipe, que, tendo o seu tio fugido da peste, com o seus tesouros e concubinas, governava a cidade, e queria, por ambição do poder, ganhar as simpatias do povo. Mas a sua face lívida e dura, sobre um corpo enfezado e corcunda, desagradava às mulheres por sua fealdade, aos soldados por sua fraqueza. Um dia em que ele seguia uma procissão, com as relíquias de S. Teódulo, o povo, à sua passagem, permaneceu com o joelho apenas dobrado. Logo atrás, porém, entre o povo, vinha Cristóvão, como uma torre entre casebres. Um mercador rico dera-lhe vinte varas de pano de Flandres, para um saio: e todo ele sorria na sua simplicidade, agitando duas palmas verdes que as confrarias dos Irmãos Hospitaleiros lhe tinham dado, como emblema da sua caridade. Ao vê-lo, o povo, que se apertava contra as portas fechadas, rompeu a gritar seu nome entre bênçãos:
O conde, adiante, tornara-se mais pálido. E nessa noite dizia, sentado à lareira, desapertando o gibão:
Apenas Cristóvão entrara no palácio, as grossas portas, eriçadas de ferros, foram fechadas. O conde, que estava num balcão, gritou agitando o povo emplumado:
A noite desceu, escura, sem uma estrela. Então Cristóvão abriu os olhos. Os cães de fila, soltos, rondavam o pátio. A sentinela dormia, à porta, encostada à lança: e das altas ogivas do palácio vinha um clarão, e um rumor de violinos. Então Cristóvão retesou os músculos
E passou, penetrou nos caminhos, deixando para sempre a cidade onde fora bom aos aflitos.
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