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{{navegar
|obra=[[São Cristóvão]]
|autor=Eça de
|seção=Capítulo XII
|anterior=[[São Cristóvão/XI|Capítulo XI]]
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Cristóvão tomou o caminho do lado oposto aos povoados
Todo o dia, marchando sempre, Cristóvão padeceu sede. Ao pôr do Sol, julgou ver longe uma água que rebrilhava. Eram largas lajes de pedra como restos de um terraço, ou do lajedo de um solar. Deitado, esperou ali a manhã: e, através de um sono incerto, julgava ver como olhos luzidios de lobos, que passavam, se sumiam para além de um barranco. De manhã dirigiu os passos para esse barranco, e aí ao fundo havia como uma água lodosa e pútrida, que ele bebeu como delícia.
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Cristóvão seguiu, caminhando à beira do regato. Grandes prados verdejavam, cobertos de botões-de-ouro. As ramas dos salgueiros mergulhavam na água fugidia e clara. Os pássaros chalravam na frescura; E no meio desta paz, um moinho com a porta arrombada, e pendente dos gonzos, os grandes paus das velas partidos, as paredes chamuscadas do lume, jazia com a tristeza de um cadáver num prado de Primavera. Cristóvão dirigiu-se para o moinho. De uma árvore meio partida, que se erguia por trás, junto às escadas, pendia um velho enforcado, com uma pedra amarrada aos pés. Ao lado negrejavam os tições apagados de uma fogueira, e junto dela uma lança esquecida.
Cristóvão foi seguindo. Por todo o caminho havia as confusas pegadas de cavaleiros em marcha; todas as sebes estavam rotas; uma ponte rústica fora partida a machadadas; outros casebres apareciam devastados, nus, com o colmo queimado:
Ao fim de um longo dia, porém, tendo-se sentado junto de um casebre em ruínas, sentiu um ruído entre as árvores:
Ia caminhando. Bebia nos regatos, comia a bolota das árvores e as ervas dos prados. Um dia avistou uma aldeia e casebres de colmo juntos em torno de uma igreja, cuja torre estava em obras. Um caminho seguia entre filas de plátanos. Ao penetrar nele, uma mulher que, agachada com uma criança, procurava ervas, fugiu tão tontamente que deixou a criança no chão. Cristóvão apanhou a criança, tão magrinha que se palpavam os seus pobres ossinhos, sob a pele cheia de feridas: e nem chorava, com a mãozinha sobre a testa, onde as chagas eram maiores. Todo o coração de Cristóvão se enchia de dor. Lançou um grande brado pela mulher. Ninguém respondeu. Então, tomando a criança ao colo, seguiu sob os plátanos mas sentia, através das folhagens, alguém que o seguia. Pousou no chão a criança, afastou os passos. E voltando-se bruscamente, viu a mulher que saltava entre o tojo, arrebatava a criança e de novo sumia no mato.
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Mas ao fim da aldeia, junto de um calvário, viu correr gente em magote. Um frade meio descalço, sem capuz, de olhos ardentes, erguia uma cruz, chamava a justiça de Deus. Como podiam os homens sofrer mais sobre a terra? Os senhores andavam em guerra, e daí vinha o mal dos pobres. Os barões corriam as suas terras, e tudo saqueavam. tudo roubavam para adestrar soldados, ter hostes brilhantes. Se outros, mais fortes, os faziam prisioneiros, de novo voltavam nos seus grandes corcéis, a saquear, roubar, tirar ao pobre a última acha, a última mão-cheia de favas, para reunir o preço do resgate. Se ficavam vencedores, eis que voltavam a saquear os restos, a arrancar a seara ainda mal madura, para celebrar festas, e erguer solares ricos. Depois, atrás passavam ainda as companhias de mercenários, que, nada encontrando, queimavam os muros, destruíam os arvoredos, e matavam as crianças nos berços. Quanto tempo mais consentiria o Senhor este mal que ia na terra? Por toda a parte ele andara, só vira a fome. As mulheres comiam os cadáveres dos filhos. Os homens em breve seriam como feras. E aí dos que se encontrassem no caminhos da turba esfaimada!
A sua mão tremia no ar cheia de ameaças. E em torno dele os moços lívidos apertavam os punhos, com olhares que procuram uma arma. Mas outros baixavam a cabeça. Que podia o pobre, só, na sua terra estéril? A justiça devia vir de Deus. Uma mulher gritou:
Cristóvão saiu da aldeia com o coração esmagado. Os seus olhos erguiam-se para o Céu. Ali, por trás do azul, estava o Senhor! Decerto ele via tantos sofrimentos, as guerras, as fomes, as pestes.
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Por que não descia do seu trono de ouro? Uma carícia da sua mão direita daria aos pobres a abundância, os frutos, as tulhas cheias de pão; e os bandos negros dos senhores cruéis desapareceriam como nuvens que o Sol desfaz, ao mover sua mão esquerda... Por que não vinha o Senhor?
As terras que Cristóvão atravessava estavam desoladas, até que, penetrando numa região mais amável e fértil, com pradarias, aldeias, viu ao longe longos fumos esguios que se elevavam para o céu. Um grupo de soldados derrubava árvores. E bem depressa viu as barracas de um acampamento. Era uma companhia de tunos. As tendas estavam alinhadas sem ordem, ao acaso. todos procurando a maior proximidade do rio. E como era à hora do rancho, viam-se os soldados, de bruços, mergulharem nas águas as grossas panelas de ferro. Por toda a parte, sobre as fogueiras acesas, suspensos de varas de ferro ensarilhadas, ferviam os caldeirões:
Todos os homens, de barbas incultas, grandes cicatrizes nos rostos, imundos, tinham um curto saio de malha de ferro: e como estavam num país vencido, sem receio de surpresas, os morriões e os broquéis pendiam à entrada das tendas rotas, umas de lona, outras de peles de carneiro; sobre um cômoro era a dos chefes, com bandeiras flutuando. Por todo o acampamento circulavam mulheres, que seguiam os soldados, umas roubadas nos assaltos das aldeias, outras que acompanhavam, por deboche, o bando dos homens; todas tinham o ar cansado dos grandes furores que suportavam. Aqui e além, um monge descalço, com uma adaga na corda do hábito, o olhar ardente, ia de tenda em tenda. Alguns homens jogavam os dados. Outros limpavam as armas. Os falcões gritavam sobre os seus poleiros, feitos de lanças.
Serenamente, na sua simplicidade, Cristóvão atravessou o acampamento.
Como os bandos cada dia recrutavam novos tunos, ou aprisionavam servos, ninguém estranhava a sua presença.
Cristóvão, no entanto, ia através das tendas. Se via um tuno ferido que punha pano nas chagas agachava-se para ajudar. Aos cavalos presos,que relinchavam voltando o focinho para água, ia buscar uma dorna cheia. E aliviava as mulheres dos fardos de lenha que os homens as obrigavam a acarretar. Mas aquela gente era má, queimava as aldeias, arrombava os sacrários, espancava duramente os animais, deixava as crianças morrendo à mingua nos silvados do caminho
Três dias e três noites caminhou, e penetrou por fim numa região de grande penúria. A terra seca, gretada, abandonada, nem produzia cardos. Toda a flor secara nas árvores. A cada instante, ossos de animais branquejavam nos caminhos. As gentes dos campos, que ele encontrava, não tinham mais que ossos sob os trapos que os cobriam, e os seus olhos brilhavam como os das feras. Por vezes, à beira de um riacho, viam-se mulheres, crianças maceradas, arrastando-se, devorando as raízes das árvores. Nas terras mais nuas, era a terra mesma que eles comiam às mãos cheias, entre lágrimas que lhes caíam nos dedos. Uma noite, passando junto de um cemitério, viu figuras sombrias, que, tendo desenterrado um morto, o talhavam em postas junto de uma fogueira. Depois foi um mendigo que lhe pediu para o proteger, porque a gente daqueles sítios atacavam os pobres mais fracos, para ter carne humana. Todo um dia Cristóvão caminhou com o mendigo às costas. E, batendo os dentes de horror, o mendigo contava de pais que comiam os filhos pequenos, de outros que atraíam os viajantes para os matar. Ao fim do dia, tendo posto o pobre coxo no chão para descansar, viu-o suspirar e morrer. De noite, por toda a parte luziam os olhos dos lobos, esfaimados também, correndo a roer os cadáveres. Negros bandos de abutres torneavam o ar.
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E a dor de Cristóvão era tão grande que erguia os braços ao Céu, e gritava pelo Senhor. Ele decerto não escutava; À porta das ermidas, debalde o povo se apinhava, implorando misericórdia: os santos não desciam dos seus altares; as relíquias dos mártires pareciam ter perdido a força; e, desiludida do Céu, essa gente apedrejava os sacrários.
Quem salvaria os homens? E Cristóvão caminhava cheio de dor, por não os poder salvar. De que lhe servia a força dos seus grande braços, toda a vontade do seu coração!? Alargando os passos, atirando os olhos ao longe, ele só procurava um meio de servir aos homens
Um dia que assim pensava, chegou a uma terra onde viu homens cavando o torrão, outros arando, outros semeando. Um troço de besteiros vigiava aqueles homens, que a fome emagrecera:
Os olhos de Cristóvão estavam cheios de lágrimas. Por vezes, cavando a terra, dizia baixo:
Então a grande velha descarnada avançou, escarranchada sobre a vassoura. Outra correu atrás dela, com os grossos cabelos ao vento; e outra ainda
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E por um sino-saimão
Metido num coração,
E por fel
E por bode pintado,
E pela asa do morcego,
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Um imenso apelo ressoou:
E cada vez a turba clamava mais ansiosamente:
Uma grande restolhada cortou a espessura
Todos lhe beijaram o pé, que desaparecia sob os felpos longos do pêlo.
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Tendo o posto o livro sobre o altar, o homem abriu os braços, e começou a celebração de um rito, que, com horror, parecia a Cristóvão, semelhante à missa de sua aldeia. Curvado sobre o livro, com a mãos postas, ele resmungava uma leitura; erguendo os braços, saudava a criatura felpuda; e quando, voltando-se para a turba, lançava uma benção, todos se curvavam, e risos bestiais estalavam com amargura. Imóvel, a criatura, com as mãos pousadas nos joelhos, recebia o culto, Um acólito, lindo como um pajem, misturava um líquido negro num vaso. E dos grandes carvalhos em redor caía uma sombra negra, que a Lua, aqui e ali, cortava de manchas lívidas.
Como na missa, uma campainha ressoou. O homem mitrado encheu o vaso, fez uma invocação, derramou um gota sobre os pés juntos da criatura negra, bebeu o resto
Erguendo os braços, perguntou onde se encontraria a felicidade para o pobre? A terra era para ele um lugar de desolação. E desde que nascia até que o levavam para a vala, ele não fazia mais que gemer na escravidão. Da alvorada à noite, trabalhava. E para quem ia todo o fruto do seu trabalho? Para o Senhor, para o Bispo, para o Intendente que vinha com os arqueiros. Para que o Senhor tivesse armas, ele não tinha lume, e tremia de frio. Para que o Bispo tivesse banquete, ele não tinha pão, e empalidecia de fome. Para que o Intendente vivesse em casas cobertas, ele vivia em tocas que as suas mãos cavavam na terra.
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E era só necessidades que sofria? Não. Era espancado, arremessado para o fundo das prisões, morria ente os tormentos... Se a sua mulher era bela, vinham homens de armas que a levavam. Se a sua cabra dava bom leite, vinha o senescal do convento que a confiscava. Tinha que pagar para nascer, tinha de pagar para morrer. Nos homens, para ele, não havia piedade. E havia-a porventura no Céu? O Céu mandava as fomes, mandava as pestes. Quem salvaria o pobre?... Amo forte, que o protegesse, só lhe restava Aquele que vive debaixo da terra e que tem todos os poderes. Ele reunia os seus filhos, ali, onde eram livres e onde não chegava a lança do Senhor, nem o báculo do Abade. Ele ensinava os remédios que livram a peste. Ele fazia achar os tesouros. Ele fazia reflorir a terra. Ele dava do seu corpo o comer aos que têm fome, do seu sangue a beber aos que têm sede. Glória a ele nas trevas!
E a multidão gritava:
Então, saltando da tripeça, o coxo gritou:
Subitamente, dois homens apareceram, trazendo um grande carneiro assado que, com facas, começaram a retalhar. Outros colocaram na mesa de pedra uma pipa de vinho. Com um clamor bestial, toda a turba se arremessou para o feiticeiro. A criatura negra bradava;
Ele suavemente empurrou a criatura
[[Categoria:São Cristóvão|Capítulo 12]]
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