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{{navegar
|obra=[[São Cristóvão]]
|autor=Eça de
|seção=Capítulo XV
|anterior=[[São Cristóvão/XIV|Capítulo XIV]]
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Todas as manhãs marchavam através de terras, duramente. Era o velho que os guiava
Pelo começo da tarde, guiados pelo velho, acharam-se subitamente, depois de terem costeado um pinheiral, diante de um castelo que duas torres flanqueavam: e nesse momento, vinha saindo da ponte levadiça, a cavalo, um Senhor de longas brabas brancas, sem armas; ao seu lado, montada numa hacanéia branca, uma aia sustentava no colo uma menina, e atrás seguiam quatro escudeiros armados de lanças. Ao ver subitamente aquela turba que avançava, o Senhor estacou, um dos escudeiros tocou desesperadamente a buzina, enquanto outros toques respondiam sobre as ameias. E, voltando a égua, a aia galopou para dentro do castelo. Já as muralhas se cobriam de soldados. Mas o Senhor, desarmado, fixara, sem se mover, os seus olhos de águia sobre a turba imensa de maltrapilhos, que numa fila, sobre o caminho tortuoso, soltava grandes gritos de ataque, brandindo os ferros. Então Cristóvão, com um grande gesto de sua barra de ferro deteve a turba que parou. E, arrojando a barra, avançou só com os braços abertos para o Senhor, imóvel no seu grande corcel. Toda a muralha em cima estava coberta de arqueiros, de homens de armas. Todo o caminho embaixo estava negro da multidão dos maltrapilhos. E na ponte levadiça, o cavaleiro e o gigante ficaram sós, face a face.
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Então, arrancando uma grande voz do peito, Cristóvão gritou:
E tendo assim falado, Cristóvão recaiu na sua simplicidade, ficou mudo, estúpido, com os seus grandes olhos de boi de trabalho pregados nos castelo. Devagar, o Senhor voltou as rédeas, e a passo, com a cabeça baixa e pensativa, sumiu-se sob a porta do castelo. Mas as portas não se fecharam
E a ponte levadiça subiu com um forte ranger de correntes de ferro.
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Comandada pelo velho, sem desordem, os Jacques carregaram às costas, nos carros, o dom do Senhor, e de novo se meteram ao caminho, levando na frente Cristóvão, que parecia mudo e como espantado, com sua grande barra de ferro.
Um regato corria, na falda da colina. E aí ficaram os Jacques, para passar a noite. Em breve se acenderam fogos. O velho pôs sentinelas em todos os cantos. E nessa noite as crianças não choraram com fome, e houve uma gratidão no coração dos homens. Cristóvão não quis mais que um pedaço de pão. Bebeu da água pura do regato
De madrugada, os Jacques levantaram o campo, e guiados sempre pelo velho e pelo frade, partiram ao longo do regato, até que chegando aos primeiros carvalhos de um grande bosque, sentiram um cheiro nauseabundo, e viram um homem, um servo, enforcado num ramo de árvore, e já meio roído pelos corvos. Uma indignação correu entre os Jacques, quando alguns que se tinham adiantado descobriram outros corpos pendentes das árvores. Ao rumor da turba, os corvos fugiam de entre as ramagens: e sob os pés dos mortos, suspenso no alto, o chão estava todo espezinhado das patas dos lobos. Lá em cima, numa colina, negras na luz clara, apareciam as torres de um castelo. E aquilo era decerto a justiça do Senhor!
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À frente dos cavaleiros, um, de grandes plumas brancas no elmo, a lança enristada, correu sobre ele. Cristóvão já não tinha a sua barra de ferro.
Mas correu a um pinheiro, agarrou-o às mãos ambas, arrancou-o da terra, e tomando-o como uma monstruosa vassoura, atirou-o num gesto de servo que varre, contra o cavaleiro e o cavalo, que rolaram, com um estampido de armas, embrulhados na rama densa. Num pulo Cristóvão empolgou o cavaleiro, e segurando-o entre os joelhos como uma criança débil, partiu-lhe as fivelas do elmo, descobriu uma cabeça lívida, uma espessa barba ruiva. Depois, erguendo-o ao ar como um broquel contra os outros cavaleiros, que tinham estacado num espanto mudo, gritou desesperadamente:
Os outros cavaleiros, num furor súbito, correram sobre ele. Mas Cristóvão, saltando para a beira do precipício, debruçou sobre ele o prisioneiro, como se fosse despenhar na corrente e nas penedias, gritando sempre:
O velho avançou também, e expôs o resgate. Queria dinheiro, vinte sacos de pão, vacas, vinho, para sustentar a sua gente, um juramento sobre a cruz que não seriam perseguidos, e dois carros para levar os mantimentos. O cavaleiro estendeu a mão sobre a cruz do frade, e jurou.
Então os Jacques, abaixando as armas, esperaram
E, sem se voltar, passo a passo, foi-se juntar aos Jacques.
Então começou, de castelo em castelo, através das províncias, a marcha dos Jacques. Das aldeias por onde eles passavam corriam a juntar-se-lhes miseráveis, servos revoltados, mendigos. Agora era uma multidão imensa que enchia os caminhos. Mas não havia neles nem violência, nem cólera. Iam mostrando, através das baronias ricas, a sua miséria de servos, e sem violência pediam esmolas. Cristóvão era como um grande pai, que mendigava junto com os seus filhos, pelos caminhos. Ao chegar diante dos castelos, mostravam os seus andrajos, as faces maceradas, as cicatrizes da servidão, e gritavam por pão. As portas abriam-se com fragor, e uns por piedade, outros por temor, davam dos seus cofres e dos seus celeiros. Dia e noite, Cristóvão mantinha a ordem na turba imensa. Não permitiam que despojassem as árvores dos frutos, que se tomasse o gado nas pastagens. Só era aceite o que a caridade dava. Se encontrava mendigos, histriões famintos, gritava com um grande gesto:
E sempre adiante, Cristóvão ia como uma torre que marchava. Uma adoração subia para ele.
E Cristóvão sentia uma alegria imensa. De dia e de noite vigiava a turba enorme, para que nela nada houvesse de violento ou de brutal. As questões que surgissem, aplacava-as estendendo os braços. Se alguém roubava as frutas dos caminhos, expulsava-o da turba. A todos distribuía a sua justiça. A todos dava a sua caridade. E era ele, não outro, que tirava os espinhos dos pés feridos, ou amparava os velhos fatigados das marchas.
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Assim vagueavam, quando uma tarde, chegando a uma grande lagoa, que, orlada de canaviais, brilhava ao sol do Outono, viram do outro lado um longo troço de cavaleiros, cujos pendões tremulavam no ar. Costeando a lagoa, decerto se encontrariam: e os Jacques e os cavaleiros pararam, um momento surpresos.
Uma grande planície estendia-se entre eles, toda cheia e coberta da erva amarelada do Outono, desenrolando-se até a uma fileira de colinas, que grandes pinheirais vestiam. O sol brilhava sobre as águas das lagoa
À frente dos Jacques inquietos, Cristóvão ficara pensativo, um instante:
Os Jacques, tendo bem depressa quebrado o seu pobre armamento, arremessavam-se sobre os pescoços e garupas dos cavalos e derrubavam a braço o cavaleiro que, tombando com um grande ruído de armas, desaparecia, sob os braços armados de facas. Outros, com foices, abriam o ventre aos cavalos. Alguns cavaleiros combatiam a pé, fazendo largos círculos com as espadas:
Todos se tinham precipitado sobre ele, quando um clamor surgiu por trás. Eram os Jacques que se tinham reunido, e, guiados pelo frade, vinham contra aquele grupo de cavaleiros, entalados contra a colina, nas terras moles onde os pés dos cavalos se enterravam. Então os homens de lança voltaram rédeas, e fugiram entre a colina e os Jacques, de novo diretos à planície, juncada de mortos. Os Jacques bradavam vendo fugir os cavaleiros, e começaram a correr atrás deles, atirando as últimas flechas
Agora, na vasta planície, só havia homens de armas. Os Jacques juncavam a terra em negras poças de sangue. Lentamente, trotando, os cavaleiros acabavam os feridos, que gritavam de sede. Outros, parados, tirando os morriões, limpavam as grossas gotas de suor. Os físicos amarravam os braços feridos. E os pajens passavam com grandes pichéis de vinho. O sol desaparecia, e toda a lagoa era como de ouro, por trás dos seus grandes canaviais negros. Uma revoada de patos passou no céu, já pálido. E ao toque de clarim os Senhores, ainda esparsos, vieram-se juntando, retomando a fila. Os feridos foram postos sobre as carretas. E, a passo, o troço dos cavaleiros retomou o caminho em torno à lagoa, onde o brilho de ouro se apagara, deixando-a agora negra e triste.
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Na vasta planície, jazem os Jacques mortos. Findou a grande marcha, que levava aos castelos e abadias a visão estranha das grandes misérias da terra. Nenhum mais voltará às cabanas da aldeia, onde os filhos esperam até tarde na lareira apagada. Os Jacques estão mortos, a terra limpa dos seus andrajos.
Cristóvão jaz estendido na colina, entre os pinheiros. Um vento passa, frio e triste. Ele abre os olhos, e a custo, erguendo-se sobre a mão, olha a planície. E em toda a sua extensão, vê montões de corpos mortos, entre os quais reluzem já os olhos dos lobos. A grande lagoa está imóvel. Por cima passa a lua cheia. Uma dor imensa arrefece o seu coração. De novo os seus olhos se fecharam
Toda a noite, no entanto, ele reviu a batalha. De montões de Jacques mortos outros Jacques se levantavam com outros trajes, outras armas, impelidos à revolta pela mesma miséria que os oprimia. E sempre do fundo do horizonte, dos altos montes, dos cimos, desciam cavaleiros, que tinham armas diversas, gritos de guerra diversos, que carregavam, esmagavam os Jacques, os deixavam mortos, sob a grande lua cheia. mas desses, pouco a pouco, mais pálidos, outros se erguiam, brandindo picaretas de mineiros, ferramentas de oficina, mostrando os seus andrajos, os filhos esfaimados, clamando justiça. E logo, a um brado do alto, fortes esquadrões desciam, trazendo à frente magistrados, togados, homens carregados de sacos de ouro, e essa massa, caindo sobre os Jacques, de novo os prostrava, os deixava num montão, que a Lua, mais pálida e mais desmaiada, cobria de alvura e silêncio. E assim, indefinidamente, os Jacques renasciam, dos ossos dos Jacques mortos, cada vez mais numerosos, até que a planície toda era uma sarça de braços magros, clamando, pedindo igualdade. E imediatamente outros esquadrões desciam, mais diminuídos, com um arranque menos vivo, hesitando, lançando golpes mais frouxos. Até que. por fim, os Jacques eram tão inumeráveis, que da planície se estendiam aos montes, e a Lua, que já desmaiara de todo, alumiava multidões disciplinadas, armadas, conscientes, que avançavam com ordem e ritmo. Os esquadrões, mandados contra estas coortes, fundiam-se como cera numa chama; Os Jacques ocupavam a terra. Um último cavaleiro veio ainda, e, derrubado, largou as armas, desapareceu. E sobre a terra só ficavam Jacques, que cantavam em triunfo na frescura da manhã clara.
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Então, sentindo na face esta frescura, Cristóvão entreabriu os olhos, ainda vago, meio dormente, como num sonho. A luz fria e pura da manhã penetrava sob as ramagens que o cobriam. As aves cantavam finamente nos ninhos, com frufrus de asas, de ramo em ramo. Um doce cheiro de rosmaninho e verduras novas perfumava o ar. E na relva toda úmida, lustrosa de orvalho, havia em redor flores silvestres, botões de ouro, papoulas frescas, um fio de água cantava friamente de pedra em pedra.
E então pareceu a Cristóvão que via um moço, de longos cabelos louros, com uma túnica branca, onde se cruzavam as pregas de um manto branco, surgir entre as ramas dos pinheiros, ao longe, vir para ele encostado a uma vara branca. Os seus passos eram tão leves, tão leve decerto o linho do seu vestido, que as papoulas não se dobravam, quando ele sobre elas passava, ligeiro e branco. E na penumbra dos arvoredos, um sulco branco ficava, por onde ele passava, com um aroma tão doce como se desabrochassem naquela terra flores que não são da terra. Pouco a pouco se aproximou:
[[Categoria:São Cristóvão|Capítulo 15]]
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