Últimas Páginas (1912)/S. Christovam/XV: diferenças entre revisões

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{{navegar
|obra=[[São Cristóvão]]
|autor=Eça de QueirósQueiroz
|seção=Capítulo XV
|anterior=[[São Cristóvão/XIV|Capítulo XIV]]
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Todas as manhãs marchavam através de terras, duramente. Era o velho que os guiava — e Cristóvão, em silêncio, caminhava ao seu lado, com a sua barra de ferro ao ombro. Atrás era a longa fila dos maltrapilhos em farrapos, com velhas cotas de armas, cuja malha se desfazia, morriões amolgados, onde alguns tinham espetado plumas, as pernas nuas, as mãos erguendo foices, chuços, fueiros. As mulheres vinham depois, umas com filhos magros pendurados das saias, outras trazendo os mais pequeninos ao colo, e as mais velhas vergando sob fardos, onde se tinha reunido o que restava nas arcas, algum escasso alqueire de pão, uma almotolia de azeite, um pedaço de carne salgada; e atrás ainda era outra fila de homens, velhos, pastores com o seu cajado e o seu molosso, ceifeiros erguendo ao alto a foice, servos fugidos, mendigos, longas filas de miseráveis que de esfomeados não podiam marchar depressa, e deixavam uma longa nuvem de poeira, que ficava suspensa no ar.
 
Pelo começo da tarde, guiados pelo velho, acharam-se subitamente, depois de terem costeado um pinheiral, diante de um castelo que duas torres flanqueavam: e nesse momento, vinha saindo da ponte levadiça, a cavalo, um Senhor de longas brabas brancas, sem armas; ao seu lado, montada numa hacanéia branca, uma aia sustentava no colo uma menina, e atrás seguiam quatro escudeiros armados de lanças. Ao ver subitamente aquela turba que avançava, o Senhor estacou, um dos escudeiros tocou desesperadamente a buzina, enquanto outros toques respondiam sobre as ameias. E, voltando a égua, a aia galopou para dentro do castelo. Já as muralhas se cobriam de soldados. Mas o Senhor, desarmado, fixara, sem se mover, os seus olhos de águia sobre a turba imensa de maltrapilhos, que numa fila, sobre o caminho tortuoso, soltava grandes gritos de ataque, brandindo os ferros. Então Cristóvão, com um grande gesto de sua barra de ferro deteve a turba que parou. E, arrojando a barra, avançou só com os braços abertos para o Senhor, imóvel no seu grande corcel. Toda a muralha em cima estava coberta de arqueiros, de homens de armas. Todo o caminho embaixo estava negro da multidão dos maltrapilhos. E na ponte levadiça, o cavaleiro e o gigante ficaram sós, face a face.
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Então, arrancando uma grande voz do peito, Cristóvão gritou:
 
— Vimos em paz. Trazemos as mulheres e as crianças. Nada temos contra ti... Mas todos os que me seguem têm fome. Detrás das tuas muralhas, há tesouros, arcas cheias de pão, grandes peças de carne diante da lareira... Estes, que vêm comigo, não têm uma moeda de cobre, trabalham toda a vida, sofrem da fome, vêem as criancinhas devorar as raízes, morrem pelos cantos dos bosques como um lobo, e a vida toda para eles é um tormento... Dá uma esmola da tua abundância a toda essa pobreza que passa. Se queres, vem, não receies, passa através dessa multidão, olha para esses corpos magros, vê as criancinhas chorando com fome, as velhas tropeçando sob os fardos, toda uma miséria que já não pode sofrer mais... Tem piedade!
 
E tendo assim falado, Cristóvão recaiu na sua simplicidade, ficou mudo, estúpido, com os seus grandes olhos de boi de trabalho pregados nos castelo. Devagar, o Senhor voltou as rédeas, e a passo, com a cabeça baixa e pensativa, sumiu-se sob a porta do castelo. Mas as portas não se fecharam — e dentro em pouco, um servo saiu arrastando uma vaca; outros trouxeram carneiros; outros fortes gigos com pão, sacos de fava; outros uma arca, que vinha cheia de dinheiro; e tendo juntado tudo num monte diante da ponte levadiça, uma dos servos gritou, retirando:
 
— Este é o dom do meu Senhor aos pobres que passam!
 
E a ponte levadiça subiu com um forte ranger de correntes de ferro.
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Comandada pelo velho, sem desordem, os Jacques carregaram às costas, nos carros, o dom do Senhor, e de novo se meteram ao caminho, levando na frente Cristóvão, que parecia mudo e como espantado, com sua grande barra de ferro.
 
Um regato corria, na falda da colina. E aí ficaram os Jacques, para passar a noite. Em breve se acenderam fogos. O velho pôs sentinelas em todos os cantos. E nessa noite as crianças não choraram com fome, e houve uma gratidão no coração dos homens. Cristóvão não quis mais que um pedaço de pão. Bebeu da água pura do regato — e toda a noite, sentado numa pedra, enquanto estirados no chão, sob as árvores, os Jacques dormiam, ele olhou as estrelas, e pensou em Jesus, que estava por trás, e àquela claridade das suas lâmpadas, o via talvez entre esses desgraçados, como um pai entre os seus filhos.
 
De madrugada, os Jacques levantaram o campo, e guiados sempre pelo velho e pelo frade, partiram ao longo do regato, até que chegando aos primeiros carvalhos de um grande bosque, sentiram um cheiro nauseabundo, e viram um homem, um servo, enforcado num ramo de árvore, e já meio roído pelos corvos. Uma indignação correu entre os Jacques, quando alguns que se tinham adiantado descobriram outros corpos pendentes das árvores. Ao rumor da turba, os corvos fugiam de entre as ramagens: e sob os pés dos mortos, suspenso no alto, o chão estava todo espezinhado das patas dos lobos. Lá em cima, numa colina, negras na luz clara, apareciam as torres de um castelo. E aquilo era decerto a justiça do Senhor!
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À frente dos cavaleiros, um, de grandes plumas brancas no elmo, a lança enristada, correu sobre ele. Cristóvão já não tinha a sua barra de ferro.
 
Mas correu a um pinheiro, agarrou-o às mãos ambas, arrancou-o da terra, e tomando-o como uma monstruosa vassoura, atirou-o num gesto de servo que varre, contra o cavaleiro e o cavalo, que rolaram, com um estampido de armas, embrulhados na rama densa. Num pulo Cristóvão empolgou o cavaleiro, e segurando-o entre os joelhos como uma criança débil, partiu-lhe as fivelas do elmo, descobriu uma cabeça lívida, uma espessa barba ruiva. Depois, erguendo-o ao ar como um broquel contra os outros cavaleiros, que tinham estacado num espanto mudo, gritou desesperadamente: “resgate“resgate, resgate!” Os Jacques cercavam Cristóvão, querendo despedaçar o Senhor prisioneiro. E ele erguia mais alto o miserável, que nem se movia, seguro nas mãos de ferro, e gritava: “Resgate“Resgate, resgate!”
 
Os outros cavaleiros, num furor súbito, correram sobre ele. Mas Cristóvão, saltando para a beira do precipício, debruçou sobre ele o prisioneiro, como se fosse despenhar na corrente e nas penedias, gritando sempre: “Resgate“Resgate!” Então os cavaleiros pararam, e rapidamente consultaram-se, com grandes gestos dos seus guantes de ferro até que um, avançando, bradou: “Está“Está resgatado!”
 
O velho avançou também, e expôs o resgate. Queria dinheiro, vinte sacos de pão, vacas, vinho, para sustentar a sua gente, um juramento sobre a cruz que não seriam perseguidos, e dois carros para levar os mantimentos. O cavaleiro estendeu a mão sobre a cruz do frade, e jurou.
 
Então os Jacques, abaixando as armas, esperaram — enquanto Cristóvão, sentado na rocha, tinha o cavaleiro atravessado sobre os joelhos, com a mão direita agarrando-lhe as pernas, com a esquerda a garganta. Pouco a pouco os servos saíram da castelo trazendo o resgate — e os Jacques desceram o caminho, rodeando os animais e os dois carros com os sacos, o ouro e os odres de vinho; Cristóvão ficara só com o cavaleiro. Quando o último homem desapareceu para além da colina, ele pousou o cavaleiro no chão com cuidado, e murmurou simplesmente: “Vai”“Vai”.
 
E, sem se voltar, passo a passo, foi-se juntar aos Jacques.
 
Então começou, de castelo em castelo, através das províncias, a marcha dos Jacques. Das aldeias por onde eles passavam corriam a juntar-se-lhes miseráveis, servos revoltados, mendigos. Agora era uma multidão imensa que enchia os caminhos. Mas não havia neles nem violência, nem cólera. Iam mostrando, através das baronias ricas, a sua miséria de servos, e sem violência pediam esmolas. Cristóvão era como um grande pai, que mendigava junto com os seus filhos, pelos caminhos. Ao chegar diante dos castelos, mostravam os seus andrajos, as faces maceradas, as cicatrizes da servidão, e gritavam por pão. As portas abriam-se com fragor, e uns por piedade, outros por temor, davam dos seus cofres e dos seus celeiros. Dia e noite, Cristóvão mantinha a ordem na turba imensa. Não permitiam que despojassem as árvores dos frutos, que se tomasse o gado nas pastagens. Só era aceite o que a caridade dava. Se encontrava mendigos, histriões famintos, gritava com um grande gesto: “Vinde“Vinde também”também”. O seu coração queria abrigar toda a miséria humana, levá-la a esmolar pelas estradas do mundo. Do dinheiro recebido, repartia com as aldeias pobres. As crianças corriam, estendendo os saios, que ele às mãos-cheias enchia de grão, de fava. Uma doçura ia tomando aqueles corações da turba miserável. Alguns tinham arrojado a foice. Outros, ao passar pelas ermidas ou pelos cruzeiros, caíam de joelhos chorando.
 
E sempre adiante, Cristóvão ia como uma torre que marchava. Uma adoração subia para ele. “Santo“Santo é o nosso gigante”gigante” — diziam. E, na sua confiança, julgavam que a vida seria assim, eternamente, uma marcha pelos caminhos, recolhendo os bens que os nobres repartiam com os pobres. Decerto Jesus voltara à Terra. Em breve todos os castelos se abririam, e partilhadas as riquezas, quebradas as armas, não haveria fomes nem guerras, e apenas, na paz dos campos doces, irmãos abastados. O acampamento, quando paravam, era como aldeia em festa, onde a carne abunda no espeto, e todas as mãos têm uma fatia de pão. Já a marcha se abrandava, e por vezes ficavam num vale, ou à beira de um ribeiro, num repouso feliz, esquecidos de todas as misérias . Dos filhos, das mulheres que tinham ficado nas aldeias, ninguém se inquietava — porque, cada dia, partiam mensageiros a levar aos casebres dinheiro e provisões. Mas alguns, tendo feito o seu pecúlio, recolhiam às suas moradas distantes, sem receio, tanta era a confiança em Jesus.
 
E Cristóvão sentia uma alegria imensa. De dia e de noite vigiava a turba enorme, para que nela nada houvesse de violento ou de brutal. As questões que surgissem, aplacava-as estendendo os braços. Se alguém roubava as frutas dos caminhos, expulsava-o da turba. A todos distribuía a sua justiça. A todos dava a sua caridade. E era ele, não outro, que tirava os espinhos dos pés feridos, ou amparava os velhos fatigados das marchas.
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Assim vagueavam, quando uma tarde, chegando a uma grande lagoa, que, orlada de canaviais, brilhava ao sol do Outono, viram do outro lado um longo troço de cavaleiros, cujos pendões tremulavam no ar. Costeando a lagoa, decerto se encontrariam: e os Jacques e os cavaleiros pararam, um momento surpresos.
 
Uma grande planície estendia-se entre eles, toda cheia e coberta da erva amarelada do Outono, desenrolando-se até a uma fileira de colinas, que grandes pinheirais vestiam. O sol brilhava sobre as águas das lagoa — e havia um vasto silêncio.
 
À frente dos Jacques inquietos, Cristóvão ficara pensativo, um instante: —- e ia marchar para os cavaleiros, pedir a caridade para os seus pobres, quando por trás a turba gritou: “Para“Para! para!” Os homens de armas, desenrolando uma longa linha de batalha, galopavam com as lanças enristadas contra a turba miserável. Com um brado, o velho mandou-os erguer os chuços, as foices, as lanças, fazendo uma sebe de ferro contra aquela pesada cavalaria, toda negra e de ferro, que fazia tremer o chão. Já chegavam, já Cristóvão sentia o arquejar dos cavalos — quando um grande, imenso clamor soou, e a confusa massa de ferro abateu sobre os Jacques, com um grande ruído de armas, furiosos golpes de montantes, cavando, com o peitoral em esporão dos cavalos, grandes sulcos entre os Jacques, que tombavam varados pelas lanças, decepados pelos espadões vibrados às duas mãos. A legião dos Jacques ficou separada em dois pedaços — com uma grande fenda no meio, toda cheia de cadáveres , espezinhados pelas patas dos grandes corcéis. E já esses dois pedaços corriam sobre o troço dos cavaleiros, quando este se separou em dois, fazendo face às duas alas dos Jacques e enchendo a planície com o clamor de duas batalhas. Peões, cavaleiros, misturados, faziam duas massas clamorosas, onde os chuços dos Jacques se quebravam contra as armaduras, a as longas clavas com puas dos cavaleiros esmagavam crânios, que apenas algum velho morrião de ferro protegia. Os clarins dos cavaleiros tocavam furiosamente. Um relampejar de ferro enchia o ar, por entre o esvoaçar dos grandes penachos.
 
Os Jacques, tendo bem depressa quebrado o seu pobre armamento, arremessavam-se sobre os pescoços e garupas dos cavalos e derrubavam a braço o cavaleiro que, tombando com um grande ruído de armas, desaparecia, sob os braços armados de facas. Outros, com foices, abriam o ventre aos cavalos. Alguns cavaleiros combatiam a pé, fazendo largos círculos com as espadas: —- e as pedras, que os Jacques lhes arremessavam, soavam furiosamente sobre o metal das couraças. Quatro grandes ceifeiros, caminhando a passo como num milharal maduro, iam, com um movimento regular, lançando as suas foices, que apanhavam os jarretes dos cavalos, levavam braços de onde se tinham desprendido as braceiras de ferro, apanhavam pelas gorjas guerreiros sem capacete. E no meio do combate, sem armas, como não querendo derrubar sangue, Cristóvão, esguedelhado, enorme, ia com os seus braços enormes arrancando cavaleiros das selas e atirando-os para o chão como fardos de ferragens. O sangue já lhe escorria, da face, do peito, através do seu saião de couro, retalhado em longas fendas. Os seus imensos brados faziam empinar os cavalos. Lançando mão aos montantes, quebrava-os como palha. As puas e os broquéis que arrancava iam pelos ares, como folhas que uma rajada leva. Por vezes, correndo, com os dois braços e os punhos fechados, mais grossos que cabeças de carneiros, atirava por terra, com um baque seco, os cavalos e os seus cavaleiros. Tendo dado com o pé num montão de cordas, apanhou-o, e quando agarrava algum passava-lhe um nó nas pernas e assim o deixava deitado no chão, como uma rês num mercado. Pouco a pouco, todos os guerreiros se tinham voltado contra ele. E sem armas, tendo apanhado pelos pés um cadáver coberto de armadura, que usava como uma maça, ele ia recuando, até a alta colina coberta de pinheiros. Sobre ele caíam as flechas, sobre ele ressoavam as pedras dos fundeiros. O gigante recuava mais — e subitamente, correndo contra os assaltantes, derribava um, prostrava outro, com grandes pancadas do cadáver, que já perdera o capacete. O círculo dos cavaleiros crescia todavia sobre ele, gritando-lhe injúrias, arremessando-lhe de longe as maças. E cada vez mais esse círculo era mais estreito, e todo eriçado de ferros que rebrilhavam. Ele, sereno, fazia girar em torno o cadáver, cuja armadura se quebrara pouco a pouco, não tendo mais que os coxotes das pernas por onde o segurava Cristóvão, e mostrando já a carne branca, os cabelos duros do peito. Mas de tanto bater, por fim, foi pouco a pouco perdendo a força da ossatura, tinha o crânio quebrado, os braços moles como trapos, a arca do peito esmigalhada — e aquela arma terrível não era já nas mãos de Cristóvão, mais que uma tira de carne mole. Mas chegara à colina. Aí, em cada pinheiro tinha uma arma. E já se voltara, atirava as mãos a um tronco enorme para o desarraigar, quando uma flecha, varando-lhe o joelho, o abateu um momento, fazendo-o escorregar no declive úmido da colina. Então, num instante, um grande corcel negro veio sobre ele, uma lança faiscou — e Cristóvão ficou prostrado, imóvel, com uma espuma de sangue na boca.
 
Todos se tinham precipitado sobre ele, quando um clamor surgiu por trás. Eram os Jacques que se tinham reunido, e, guiados pelo frade, vinham contra aquele grupo de cavaleiros, entalados contra a colina, nas terras moles onde os pés dos cavalos se enterravam. Então os homens de lança voltaram rédeas, e fugiram entre a colina e os Jacques, de novo diretos à planície, juncada de mortos. Os Jacques bradavam vendo fugir os cavaleiros, e começaram a correr atrás deles, atirando as últimas flechas — arremessando mesmo por escárnios grossos torrões de terra lamacenta. Mas, vendo os peões assim expostos na planície, os cavaleiros deram um volta brusca, e abaterem-se contra os miseráveis. Foi uma grande matança, o frade caíra logo com o crânio aberto, a sua cruz apertada na mão. E os que fugiam eram perseguidos por toda a parte, até que, atirando-se para a lagoa, as grandes lanças por trás os faziam arremessar à água.
 
Agora, na vasta planície, só havia homens de armas. Os Jacques juncavam a terra em negras poças de sangue. Lentamente, trotando, os cavaleiros acabavam os feridos, que gritavam de sede. Outros, parados, tirando os morriões, limpavam as grossas gotas de suor. Os físicos amarravam os braços feridos. E os pajens passavam com grandes pichéis de vinho. O sol desaparecia, e toda a lagoa era como de ouro, por trás dos seus grandes canaviais negros. Uma revoada de patos passou no céu, já pálido. E ao toque de clarim os Senhores, ainda esparsos, vieram-se juntando, retomando a fila. Os feridos foram postos sobre as carretas. E, a passo, o troço dos cavaleiros retomou o caminho em torno à lagoa, onde o brilho de ouro se apagara, deixando-a agora negra e triste.
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Na vasta planície, jazem os Jacques mortos. Findou a grande marcha, que levava aos castelos e abadias a visão estranha das grandes misérias da terra. Nenhum mais voltará às cabanas da aldeia, onde os filhos esperam até tarde na lareira apagada. Os Jacques estão mortos, a terra limpa dos seus andrajos.
 
Cristóvão jaz estendido na colina, entre os pinheiros. Um vento passa, frio e triste. Ele abre os olhos, e a custo, erguendo-se sobre a mão, olha a planície. E em toda a sua extensão, vê montões de corpos mortos, entre os quais reluzem já os olhos dos lobos. A grande lagoa está imóvel. Por cima passa a lua cheia. Uma dor imensa arrefece o seu coração. De novo os seus olhos se fecharam — e caiu inanimado.
 
Toda a noite, no entanto, ele reviu a batalha. De montões de Jacques mortos outros Jacques se levantavam com outros trajes, outras armas, impelidos à revolta pela mesma miséria que os oprimia. E sempre do fundo do horizonte, dos altos montes, dos cimos, desciam cavaleiros, que tinham armas diversas, gritos de guerra diversos, que carregavam, esmagavam os Jacques, os deixavam mortos, sob a grande lua cheia. mas desses, pouco a pouco, mais pálidos, outros se erguiam, brandindo picaretas de mineiros, ferramentas de oficina, mostrando os seus andrajos, os filhos esfaimados, clamando justiça. E logo, a um brado do alto, fortes esquadrões desciam, trazendo à frente magistrados, togados, homens carregados de sacos de ouro, e essa massa, caindo sobre os Jacques, de novo os prostrava, os deixava num montão, que a Lua, mais pálida e mais desmaiada, cobria de alvura e silêncio. E assim, indefinidamente, os Jacques renasciam, dos ossos dos Jacques mortos, cada vez mais numerosos, até que a planície toda era uma sarça de braços magros, clamando, pedindo igualdade. E imediatamente outros esquadrões desciam, mais diminuídos, com um arranque menos vivo, hesitando, lançando golpes mais frouxos. Até que. por fim, os Jacques eram tão inumeráveis, que da planície se estendiam aos montes, e a Lua, que já desmaiara de todo, alumiava multidões disciplinadas, armadas, conscientes, que avançavam com ordem e ritmo. Os esquadrões, mandados contra estas coortes, fundiam-se como cera numa chama; Os Jacques ocupavam a terra. Um último cavaleiro veio ainda, e, derrubado, largou as armas, desapareceu. E sobre a terra só ficavam Jacques, que cantavam em triunfo na frescura da manhã clara.
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Então, sentindo na face esta frescura, Cristóvão entreabriu os olhos, ainda vago, meio dormente, como num sonho. A luz fria e pura da manhã penetrava sob as ramagens que o cobriam. As aves cantavam finamente nos ninhos, com frufrus de asas, de ramo em ramo. Um doce cheiro de rosmaninho e verduras novas perfumava o ar. E na relva toda úmida, lustrosa de orvalho, havia em redor flores silvestres, botões de ouro, papoulas frescas, um fio de água cantava friamente de pedra em pedra.
 
E então pareceu a Cristóvão que via um moço, de longos cabelos louros, com uma túnica branca, onde se cruzavam as pregas de um manto branco, surgir entre as ramas dos pinheiros, ao longe, vir para ele encostado a uma vara branca. Os seus passos eram tão leves, tão leve decerto o linho do seu vestido, que as papoulas não se dobravam, quando ele sobre elas passava, ligeiro e branco. E na penumbra dos arvoredos, um sulco branco ficava, por onde ele passava, com um aroma tão doce como se desabrochassem naquela terra flores que não são da terra. Pouco a pouco se aproximou: —- e Cristóvão podia ver os seus olhos pousados sobre ele, como duas estrelas da tarde. Docemente ajoelhou ao lado de Cristóvão, pousando o seu bastão tão levemente que nem vergou as pontas finas das ervas. Com os dedos mais macios que veludo, percorreu as feridas de Cristóvão, que sentia as dores desaparecerem e como uma força nova que lhe voltava. Depois rasgou uma tira do seu manto, pousou-a sobre as feridas,a da perna, a do peito; e aquela tira de linho parecia a Cristóvão leve como o ar e perfumada como um jasmim. Depois, apanhando os eu bastão branco, em silêncio, partiu, penetrou no bosque, e pouco a pouco se perdeu entre os troncos negros, que um momento conservaram como a claridade daquela passagem branca. Os pássaros recomeçaram a cantar. De novo as ramagens se moveram brandamente. Então Cristóvão moveu os braços — depois ergueu o seu imenso corpo. Todas as suas feridas estavam fechadas. E sentindo uma força nova, aquele bom gigante cortou através do pinheiral, e recomeçou a correr mundo.
 
[[Categoria:São Cristóvão|Capítulo 15]]