Últimas Páginas (1912)/S. Christovam/XVI: diferenças entre revisões

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|obra=[[São Cristóvão]]
|autor=Eça de QueirósQueiroz
|seção=Capítulo XVI
|anterior=[[São Cristóvão/XV|Capítulo XV]]
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Nos caminhos, sentava-se nas encruzilhadas para guiar os peregrinos ou histriões. Se havia algum grande lamaçal, ficava à beira dele para passar aos ombros os homens e os animais. Era ele que partia as rochas, para se construírem caminhos. E nas florestas onde sabia que deviam passar caravanas de mercadores, acendia grandes fogueiras para afugentar os javalis.
 
Por vezes aceitava servir só um amo. Foi assim o servo de um curandeiro e puxava, como um macho, a grande carriola, onde tilintavam os boiões das ervas simples e dos ungüentos, e que parava nos adros das igrejas à tarde, depois das missas. Mas sentindo que o físico era interesseiro e duro — deixou o serviço. Foi depois o escudeiro de um cavaleiro errante, que encontrou banhando a ferida de uma perna à beira de uma fonte. Cristóvão sarou-lhe a ferida, e começou a seguí-lo nas suas aventuras, caminhando, atrás do seu corcel, com uma maça feita de um pinheiro. Com o cavaleiro fez grandes proezas. Libertou servos que um Senhor duro levara a enforcar por eles não lhe terem tirado o barrete na estrada; desbaratou salteadores que infestavam os bosques; restituiu a um órfão o condado que lhe haviam roubado parentes avaros: —- mas, como o cavaleiro tivesse ajudado a salvar uma dama, veio a casar com ela, teve um solar, abandonou os caminhos, e Cristóvão não querendo ficar naquela ociosidade, deixou o bom cavaleiro, levando, como paga, uma bolsa farta de ouro, bons vestidos quentes, que ele logo distribuiu aos pobres.
 
Então, seguindo o exemplo do cavaleiro, passou a socorrer os oprimidos. De noite, ao passar pelos castelos, derrubava as forcas patibulares. Se sabia de um campo que fora roubado, forçava o ladrão à restituição. Salvou os bandos de mercadores que os Senhores, com grandes lanças, assaltavam nos caminhos para os roubar. Onde soubesse que o Senhor tinha imposto um trabalho excessivo aos servos, ia ele, não outro, fazer o trabalho. Nunca diante dele deixava castigar uma criança. Se, passando num casal, ouvia uma mulher chorar, e rumor de pancadas, quebrava a porta, tirava o pau das mãos do marido. Quando soldados deviam passar numa aldeia, ele ficava de guarda, para impedir as crueldades da tropa. E ninguém ousava afrontá-lo. Já ia, então, envelhecendo. Os seus cabelos tinham se tornado mais crespos, hirsutos: trazia sobre o corpo farrapos, e a barba era rude e forte como um mato. Sob a barba, e sob as sobrancelhas ficava invisível a doçura incomparável do seu olhar, do seu sorrir — e para os que o viam, na verdade o seu aspecto era horrendo e temeroso.
 
Quando entrava nas cidades, as crianças fugiam, todas as portas se fechavam — e os homens de guarda acudiam a saber de onde viera, a que baronia pertencia, e se tinha licença de vaguear nos caminhos. Ele respondia que só queria trabalhar: e tão humilde e quieto ficava, junto de uma fonte ou ao canto de uma praça, que bem depressa as portas se abriam, e, já sorrindo, as crianças voltavam. Todas faziam lembrar a Cristóvão a Joana da sua aldeia. A essa hora ela devia ser mulher, e talvez, por seu turno, trouxesse pendurada das saias uma criança loura e graciosa como ela fora. Chamava algumas das crianças espantadas, fazia-as saltar sobre os joelhos. Das gelosias as mães sorriam. Já ninguém receava o gigante — e ele sentido-se aceite, começava logo a ajudar as trolhas que erguiam uma casa, ou a um empurrar um carro atolado nas lamas. Bem depressa, todos queriam os serviços daquela força imensa. E era ele que limpava os mercados, caiava as torres de fresco, transportava os fardos, apanhava a neve dos rios no Inverno, regava o pó das ruas no Verão, consertava os telhados, apagava os incêndios — e, sentado à porta dos hospitais, ia enterrar os mortos pobres. Colando a face às altas grades das prisões, consolava os presos, ajudava nos seus trabalhos os forçados, e tendo reunido o seu salário em pão ou em dinheiro, sentava-se num adro, e distribuía-o pelos mendigos.
 
Ora um dia, saindo de uma cidade, encontrou no caminho um pobre histrião, com uma perna de pau, e acompanhado pela mulher doente, que amamentava o filhinho. Eram tão miseráveis e tristes, ele com uma espada debaixo do braço, ela suspendendo aos ombros um saco de bolas e peloticas, que Cristóvão começou a caminhar ao seu lado. Assim soube que outrora percorriam os caminhos e as feiras, ganhando amplamente a sua vida, e (desde que ele, numa queda, perdera a perna) mostrando cães sábios e um macaco, que faziam sortes maravilhosas. Havia dias, porém, estando numa taberna, numa estrada, a repousar, tinham chegado os escudeiros e homens de armas de um Senhor, que, embriagados, e numa rixa, lhe tinham, a grandes cutiladas, morto o macaco e os pobres cães. Com eles se fora a sua fortuna. Trabalhar não podia, assim manco. E agora só lhes restava mendigarem, até que o frio, a fome, os prostrassem uma noite, a eles e à criança, mortos à beira de um caminho. E o saltimbanco acrescentava: “Bem“Bem feliz és tu, que te fez Deus tão grande, e te podes mostrar nas feiras ganhando mais que um letrado a escrever!” — Decerto, o saltimbanco o tomava a ele, Cristóvão por um desses gigantes que se mostram nas feiras. E apenas assim pensara, Cristóvão, com simplicidade, propôs ao saltimbanco que a troco do pão, e da metade do ganho, o levasse a uma feira, para o mostrar numa barraca. O pobre saltimbanco quase chorou de alegria — e logo dali partiram para uma grande feira, que todos os anos, pelo S. Miguel, se fazia junto de uma grande cidade murada.
 
Chegaram lá de noite, e tendo obtido licença dos guardas para entrar, o saltimbanco foi logo a um desses judeus que trocam dinheiro, pediu emprestado o que era necessário para construir uma barraca, erguer os estrados, lonas vermelhas, e possuir um tambor que anunciasse o gigante. O judeu, tendo examinado Cristóvão e certo que era um monstro de boa mostra e de boa renda, contou, uma a uma, dez peças de prata na palma do saltimbanco: —- e tendo assinado o papel diante do corregedor da feira, o saltimbanco partiu com Cristóvão, a construir a barraca. Toda a noite trabalharam, pregando, martelando, enquanto a mulher do palhaço cosia à pressa uma túnica escarlate para Cristóvão.
 
Ao outro dia tudo estava pronto, e posta sobre dois postes a grande peça de paninho branco, em que se anunciava o maior gigante e o maior atleta de Navarra e dos Mundos. Cristóvão, sentado numa vasta caixa que um tapete recobria, esperava, enquanto fora o saltimbanco, tocando o tambor, anunciava a maravilha, e a mulher, com cequins de metal nas tranças caídas, como uma moura, esperava diante de um prato de cobre, onde deviam cair as entradas.
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Apenas as portas da cidade se abriram, a multidão começou a encher as ruas da feira, onde a erva desaparecera sob os pés. E bem depressa começou o vozear dos pregões, os brados dos que chamavam fregueses, os atabales tocando à porta das tabernas, as sinetas repicando.
 
Mas ninguém fazia maior barulho que o saltimbanco coxo, rufando desesperadamente o tambor, diante da tenda onde aquele bom gigante esperava, pensativo. Bem depressa, homens do burgo, mulheres com crianças pela mão, os feirantes, começaram a entrar, deixando cair uma moeda de prata no vasto prato de cobre. E apenas se levantava a cortina, era em todos os lábios um longo ''ah!'' lento e maravilhado. A barraca era alta, em forma de torre: —- e, vestido com uma longa túnica escarlate, bordada a lantejoulas e ouropéis, com um turbante onde ondeavam enormes plumas verdes, um colossal alfanje de pau passado na cinta amarela, Cristóvão era, na verdade, um assombro, e como um ogro disforme dos contos de fadas. Cheio de timidez, não movia os braços: e um grande rubor invadia-o todo diante daquelas faces atônitas, onde havia terror da sua força, e como uma piedade da sua deformidade. As crianças escondiam-se nas saias das mães: —- e os homens espantados, queriam apalpar a rijeza dos seus músculos. Cada grupo que saía ia contar nas tabernas, espalhar por toda a feira a maravilha daquele gigante. Já uma lenda circulava — e era ele, não outro, que derrotara o imperador da Ocitânia, matara um grande dragão que infestara os Algarves, e, só com a empurra, derrubara a torre construída pelo Diabo para o Roberto de Normandia. Todo dia uma grande fila esperou à porta da barraca — e à noite sobre o prato de cobre havia um monte de dinheiro esboroado.
 
Pouco a pouco, Cristóvão habituara-se à multidão — e mesmo, para fazer rir as crianças, fazia esgares, ou agarrava um homem pelas pernas e erguia-o como uma palha ligeira. Depois levantou com dois dedos uma barrica cheia de pedras, torceu com os dentes grossas barras de ferro, e de uma só pancada, com o punho fechado, fendeu uma mó de moinho.
 
À noite estava coberto de suor: —- e enquanto o saltimbanco e a mulher, com a face radiante, faziam as pilhas do dinheiro, ele tomava ao colo e embalava a criancinha, que nos seus braços tinha um sono mais doce.
 
A sua fama correra no burgo — e o próprio príncipe que ali reinava, e o bispo, vieram em grande comitiva, com cavaleiros e pajens, ver o gigante. Foi grande neles a maravilha. E o príncipe, homem de grandes músculos, queria media as forças com Cristóvão, jogando a qual deles vergaria a mão do outro. E diante daqueles cavaleiros, por humildade, Cristóvão cedeu, e deixou que a mão cabeluda do príncipe vergasse a sua. Os cavaleiros aclamavam o Senhor. E o príncipe, radiante, despejou a sua bolsa cheia de ouro nas mãos de Cristóvão, isentou a barraca do saltimbanco de todos os impostos ao corregedor, e mandou, de noite, moços da cozinha com tochas, trazer uma perna de veado e empadões de sua mesa.
 
Toda a noite, os saltimbancos, partindo o dinheiro, dava a sua metade a Cristóvão — que ele guardava numa cova, a um canto da barraca, coberto com uma mó de moinho. Depois ia pela feira solitário, e todo o serviço era ele que o fazia. Carregava as barricas de vinho, descarregava os fardos, limpava o chão das barracas, e, à porta das cozinhas, fazia a lavagem dos pratos de estanho.
 
Mas o fim da feira chegara, e uma noite, em que sentia o barulho das barracas que se desmanchavam, o saltimbanco contou os seus ganhos — e as lágrimas bailaram-lhe na face, porque para sempre estava ao abrigo da miséria. Então Cristóvão desenterrou o seu tesouro e, em silêncio, veio juntá-lo ao dinheiro do saltimbanco, murmurando: “É“É para a criança”criança”. Duas moedas de cobre tinham rolado no chão. Cristóvão apanhou-as, beijou-as como uma esmola que lhe atirassem, beijou a criança, saiu da barraca. E, tendo comprado uma broa e um pichel de vinho, deixou a feira que se desmanchava.
 
[[Categoria:São Cristóvão|Capítulo 16]]