Últimas Páginas (1912)/S. Christovam/XV: diferenças entre revisões

Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
m Sobrescrição *** sobrescrever texto ***
m corrigindo grafia no nome do autor utilizando AWB
Linha 1:
{{navegar
|obra=[[São Cristóvão]]
|autor=Eça de QueirozQueirós
|seção=Capítulo XV
|anterior=[[São Cristóvão/XIV|Capítulo XIV]]
Linha 48:
Então começou, de castelo em castelo, através das províncias, a marcha dos Jacques. Das aldeias por onde eles passavam corriam a juntar-se-lhes miseráveis, servos revoltados, mendigos. Agora era uma multidão imensa que enchia os caminhos. Mas não havia neles nem violência, nem cólera. Iam mostrando, através das baronias ricas, a sua miséria de servos, e sem violência pediam esmolas. Cristóvão era como um grande pai, que mendigava junto com os seus filhos, pelos caminhos. Ao chegar diante dos castelos, mostravam os seus andrajos, as faces maceradas, as cicatrizes da servidão, e gritavam por pão. As portas abriam-se com fragor, e uns por piedade, outros por temor, davam dos seus cofres e dos seus celeiros. Dia e noite, Cristóvão mantinha a ordem na turba imensa. Não permitiam que despojassem as árvores dos frutos, que se tomasse o gado nas pastagens. Só era aceite o que a caridade dava. Se encontrava mendigos, histriões famintos, gritava com um grande gesto: “Vinde também”. O seu coração queria abrigar toda a miséria humana, levá-la a esmolar pelas estradas do mundo. Do dinheiro recebido, repartia com as aldeias pobres. As crianças corriam, estendendo os saios, que ele às mãos-cheias enchia de grão, de fava. Uma doçura ia tomando aqueles corações da turba miserável. Alguns tinham arrojado a foice. Outros, ao passar pelas ermidas ou pelos cruzeiros, caíam de joelhos chorando.
 
E sempre adiante, Cristóvão ia como uma torre que marchava. Uma adoração subia para ele. “Santo é o nosso gigante” – diziam. E, na sua confiança, julgavam que a vida seria assim, eternamente, uma marcha pelos caminhos, recolhendo os bens que os nobres repartiam com os pobres. Decerto Jesus voltara à Terra. Em breve todos os castelos se abririam, e partilhadas as riquezas, quebradas as armas, não haveria fomes nem guerras, e apenas, na paz dos campos doces, irmãos abastados. O acampamento, quando paravam, era como aldeia em festa, onde a carne abunda no espeto, e todas as mãos têm uma fatia de pão. Já a marcha se abrandava, e por vezes ficavam num vale, ou à beira de um ribeiro, num repouso feliz, esquecidos de todas as misérias . Dos filhos, das mulheres que tinham ficado nas aldeias, ninguém se inquietava – porque, cada dia, partiam mensageiros a levar aos casebres dinheiro e provisões. Mas alguns, tendo feito o seu pecúlio, recolhiam às suas moradas distantes, sem receio, tanta era a confiança em Jesus.
 
E Cristóvão sentia uma alegria imensa. De dia e de noite vigiava a turba enorme, para que nela nada houvesse de violento ou de brutal. As questões que surgissem, aplacava-as estendendo os braços. Se alguém roubava as frutas dos caminhos, expulsava-o da turba. A todos distribuía a sua justiça. A todos dava a sua caridade. E era ele, não outro, que tirava os espinhos dos pés feridos, ou amparava os velhos fatigados das marchas.