Historias de Reis e Principes: diferenças entre revisões

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Certo dia mandára chamar, por um moço da camara, Fernão da Silveira. D. João II não se queria referir ao secretario particular, mas a outro Fernão da Silveira, o coudel-mór, tambem poeta como o seu homonymo.
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Comparecendo o escrivão da puridade em vez do coudel-mór, D. João {{smaller|II}} agastou-se e perguntou ao moço da camara:
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Por mais de uma delação o soubera.
 
Tinha o bispo d'Evora certa manceba, de nome Margarida Tinoco, a cujo irmão, Diogo Tinoco, ella revelára o segredo da conspiração. Foi este homem que, disfarçado em frade, procurou o rei no convento
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de S. Francisco em Setubal, e lhe denunciou os conspiradores, recebendo em troca uma larga mercê, que a morte, devida talvez a peçonha mandada propinar pelos denunciados, lhe não deixou gozar.
 
D. João {{smaller|II}} recebeu outra denúncia por D. Vasco Coutinho, a quem seu irmão D. Guterres pozera ao facto da conspiração. D. Vasco arrecadou em premio o condado de Borba, importando-se pouco com perder o irmão, que veio a acabar preso na torre de Aviz.
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Os officiaes foram, e não acharam Fernão da Silveira. Encontraram apenas uma barjoleta com muitos cruzados, que lhe havia confiado o duque de Vizeu para occorrer ás despezas da conspiração.
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O escrivão da puridade, não tendo já tempo para fugir de Setubal, fôra esconder-se em casa de um velho escudeiro de seu pai, de nome João Pegas, que não duvidou recebel-o, a despeito do perigo que por esse facto podia correr.
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Mas o segredo do escondrijo de Fernão da Silveira ficou no fundo do poço, que era o que João Pegas queria conseguir.
 
Decorreu tempo, e o escudeiro tratou de fazer sahir de Portugal o seu hospede. Valeu-se para isso de um mercador, que se chamava Bartolo, e que levou
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comsigo para Sevilha Fernão da Silveira, disfarçado em mendigo.
 
Salvo em Castella, o foragido foi bem acceito na côrte de Izabel a Catholica, e lá lhe acudia com auxilios pecuniarios o conde de Benavente, fidalgo castelhano, que fôra grande amigo do pai de Fernão. Mandava-lhe todos os mezes um saco com duzentos escudos, mas Fernão da Silveira só tirava cinco, e devolvia o resto. O castelhano todos os mezes insistia em igual remessa, e o portuguez não deixava de insistir na recusa da quantia excedente a cinco escudos.
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—Fernão da Silveira aonde chegar ha de sempre ter lugar.
 
D. João {{smaller|II}} mandára citar por carta de éditos
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Fernão da Silveira, emquanto estivera escondido em casa de João Pegas, para que se apresentasse perante o rei e o seu conselho, no termo de quarenta dias, a fim de se livrar «da dita traição e maldade que contra nós e nosso real estado, e contra o bem, paz, e assesseguo de nossos reinos cometera, e para sobre todo ser ouvido com o dito procurador fiscal da nossa justiça.»
 
Passou-se o praso de quarenta dias, e Fernão da Silveira não appareceu. N'essa não cahia elle, que bem sabia a sorte que o esperava se apparecesse.
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Chegou o dia da audiencia, e o porteiro do tribunal, João Trancoso, apregoou o réo. Como se não apresentasse, nem outrem por elle, o procurador da justiça offereceu o libello articulado sobre os seguintes factos criminosos:
 
«Que nós criáramos o dito reo de moço pequeno, e que sempre lhe fizeramos muita honra, gasalhado, e mercê, casando-o, e dando-lhe muita renda com vontade, e tenção de o muito honrar, e acrecentar, e fiando nós d'elle nossos segredos, e conselhos, encarregando-o muitas vezes de nosso escrivão da Puridade, fiando nós nossa vida d'elle reo, e sempre o dito reo obrigado a nos guardar lealdade não sómente como nosso criado, mas ainda como vassalo, e nosso subdito, elle o fizera muito pelo contrario, antes como desleal desobediente Portuguez, fizera, tractára, ordenára e aconselhára contra nós, e nosso Real Estado, bem, paz e assesseguo, e prol comunal d'estes nossos reinos e senhorios, as coisas que se adiante
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seguem. A saber, que elle dito reo com o Bispo d'Evora, e com D. Diogo, que foi Duque de Vizeu, tractou, conjurou, e ordenou muitas desleadades contra nós, e contra o Principe meu sobre todos muito Amado, e Prezado Filho, tractando, e ordenando muitas vezes, assim na Cidade de Evora como nas Villas de Santarem e Setubal, e outros lugares de nos matarem, e ao dito Principe meu Filho, e de se alevantarem com as Villas, e Fortalezas que o dito Duque tinha, e outras quaesquer, que podessem haver, tractando de metter gente de fóra d'estes reinos para poderem pôr em obra o seu mau e desleal proposito, e para contra quem quer que lh'o embargar quizesse, sendo o dito reo o que principalmente tractava contra nós, induzindo para isso o dito Duque, como do feito induziu, e outros seus amigos, de que se elle reo fiava, e o principal conspirador e ajuntador, dos que no dito tracto e conspiração eram contra nós, e sendo o recebedor, e o que dispendia os dinheiros que para as ditas traições, e maldades eram juntos, e o pagador d'elles, a quem era ordenado, como dos ditos dinheiros pagára quinhentos cruzados a Pero de Albuquerque, para abastimento da Fortaleza do Sabugal, e assim a D. Alvaro d'Athayde, certa somma de dinheiro que vier em verdade. E que logo como o dito Duque D. Diogo foi morto, e o Bispo, e alguns dos outros conjurados presos, pelas ditas maldades e traições serem reveladas a nós, elle dito reo, temendo-se do que feito tinha, logo sem mais detença se partiu, e foi d'estes
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reinos, e amarou sem mais nunca n'elles apparecer, nem ser visto de seus parentes e amigos, e dos que com elle tinham conversação.»<ref name="Nt1">Documento que encontrámos na Torre do Tombo, gaveta 25, maço 1.º, n.º 47, de fol. 184 a 187.</ref>
 
Ouvido o libello pelo rei e seu conselho, foram julgados procedentes os artigos de accusação, ordenando D. João {{smaller|II}} que se o réo tivesse artigos contrarios, viesse com elles. Como não veio, correu o processo á revelia, sendo admittida a prova do procurador da justiça, o qual offereceu a inquirição devassa que por este motivo havia sido tirada.
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Fernão da Silveira teve conhecimento dos éditos de citação; mas só quando se viu salvo em Castella ousou denunciar o seu paradouro, não escrevendo uma justificação judicial, mas dirigindo particularmente ao rei uma carta audaciosa, de que vamos extrahir alguns periodos:
 
«... eu dias ha que estou n'esta Côrte de El-Rei e da Rainha de Castella, meus Senhores, e bem se sabe em Portugal: poderia tambem responder a elles (éditos) por direito, outras razões poderia dar n'este caso, mas não quero alongar a escriptura e ainda d'estes me quero lançar fóra; sómente digo que os éditos contra mim postos são mandados pôr por vós ante quem o direito nem justiça não vale nada, nem ousa ninguem de os julgar que claramente sobre os éditos que contra Ruy Lopes Coutinho
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mandaveis pôr, dizem de vós os letrados que não era de direito de se pôrem na forma que querieis, dissestes ''que quem aquillo dissesse o mandarieis esfolar e cobrir a cadeira de sua pelle'' e isto ao Doutor Nuno Gonçalves, que quizestes lançar a perder por uma sentença que deu segundo lhe parecia direito no feito de Cezimbra; d'estas taes pudera dizer muitas, mas, sobre cousa tão clara como a vossa injustiça, não cumpre muitas provas, bem se sabe que nenhum homem em vosso reino não ha de julgar, senão o que vós quizerdes, e bem se sabe que é o que vós quereis; e deixando todas estas cousas, sómente digo que apéllo de vós para Rei direito e justiçoso, e que o mereça e deve ser, e ainda que para isto ahi não houvesse prova senão as obras que fazeis abastariam afóra outras cousas que tenho caladas para quando cumprir, assim que vossos éditos para mim não são de nenhum valor, nem força, e protesto que cousa que n'elles digaes, nem sentença que por elles contra mim se der, não me possa damnar nem empécer em nenhum tempo que seja.
 
Ora, Senhor, vos quero dar conta de mim e da causa que em minha sahida d'esse Reino e o porque sei que tanto desejastes, e trabalhastes de me ver á mão, o que principalmente foi, porque eu não contasse a verdade d'este feito, e de como mal e como não devieis matastes o Duque de Vizeu que Deus haja, e eu ouvindo a crueldade de sua morte e lembrando-me o mal que muito tempo me querieis e mui sem causa, e quanto agora me quereis pelo bem
Ora, Senhor, vos quero dar conta de mim e da causa que em minha sahida d'esse Reino e o porque sei que tanto desejastes, e trabalhastes de me ver á mão, o que principalmente foi, porque eu não contasse a verdade d'este feito, e de como mal e como não devieis matastes o Duque de Vizeu que Deus haja, e eu ouvindo a crueldade de sua morte e lembrando-me o mal que muito tempo me querieis e mui sem causa, e quanto agora me quereis pelo bem que o Duque me queria, pareceu-me que não devia estar á misericordia de quem não tem nenhuma nem esperar vossas injustiças e crueldade, as quaes em mim sei que muito desejaveis executar que pela grande que com o Duque que Deus haja tinha cuidaveis que saberia a causa da sua morte, a qual não foi outra senão o grande mal que sempre lhe quizestes e os grandes aggravos e deshonras que lhe fazieis, as quaes seriam cousa larga de contar, se houvesse de contar das escripturas e doações que lhe furtastes do cofre que a Senhora Infanta sua mãe deixou em guarda da Rainha vossa mulher, e de como nunca lhe confirmastes cousa que tivesse, antes lhe quebrastes cada dia suas cartas e privilegios e mandaveis a letrados a revolver livros para lhe tirar a vintena da Guiné, afóra na paga d'ella terdes tal forma que a mór parte lhe levaveis, e quebrastes-lhe o trato da canella e fizestes que em Côrtes que vos requeressem que lhe tivesseis as saboarias e o montado, e tirastes-lhe o desembargador que trazia na casa e tirastes-lhe a jurisdicção dos rendimentos das suas rendas, e dissestes que se vos não tornasse a Ilha da Madeira por terras do Duque que lh'a deitarieis a perder, e deixando estas cousas e outras muitas que contra elle tendes feito e commettidas tocantes á sua fazenda, nas quaes ia a maior parte do seu estado e em muitas todo lhe fazieis e ordenaveis outras em que lhe ia honra e vida, são tratal-o mui descortez e soberbamente e fallares n'elle mui feiamente chamando-lhe rapaz e necio, e que não era para nada, e trazerdel-o em vossa Côrte a seu pesar, que por preso o haviam todos, não querieis consentir que casasse com uma filha d'El-Rei meu Senhor, e mui honradamente casára, nem quizestes que casasse Irman com elle desejando-o ella, e tendo vós promettido á Infante sua Mãe que farieis n'isso o que pudesseis, fizestes o contrario, por onde visto está, que querieis que elle não casasse com ninguem por não haver filhos que herdassem o seu, e d'isto ha outra mui mais certa prova que estas, que é certo que lhe mandaveis dar cousa para não haver geração, e foi-lhe descoberto, depois lhe foi dito como mandaveis alguns que o matassem de noite indo elle fóra só, fingindo que o não conheciam, e foi avisado, e guardou-se, e depois foi avisado agora em Santarem, que com um cosinheiro trataveis para lhe dar peçonha, assim que claro está que dias ha que tinheis determinado de fazer o que fizestes e mais o matastes porque vos elle devia matar que por querer matar, que se elle tal quizera, não andára tão mal apparelhado para tal negocio nem viera só ver-vos e deixára-vos os mais dos seus em Palmella, nem os que com elle culpaes não estiveramos tão mal apercebidos, que eu n'esse mesmo mez não mandára com meus Irmãos os meus escudeiros e encavalgados, nem lhe déra os meus cavallos e armas de minha pessoa e áquella hora estava em casa de meu Pai que Deus haja, sem saber que o Duque era ido nem D. Alvaro de Athayde vos houvera de matar em Santarem nem D. Pedro de Athayde inda no ventre, eu muitas cousas pudera dizer em prova d'isto, mas abasta o que todo o mundo sabe, que matastes o Duque mal, e como não devieis e por mau respeito, e isto pudera bem provar por direito e leis e ordenações, mas porque seria longura será melhor que vamos pôr a batalha: eu estou aqui e affirmo uma duas ou tres vezes, que matastes o Duque mal e como não devieis, e aleivosamente, e o defenderei a quem por vossa parte me desafiar, e isto darei empreza para vós mandares tomar a D. Vasco não já que elle tomou, e d'esta guiza me devieis vós mandar matar que não á traição, ''como me dizem que mandais'' e se por vossa pessoa isto houvera de ser feito, bem sei que vos não porieis n'este risco, assim porque sabieis a verdade como por ali, e se isto se ordenar para que venha a fim, por aqui se saberá a verdade, porque eu espero que será n'isto tão inteiro juizo como em tudo, e se vos disto escuzardes n'elle espero que mostrará tal juizo de vós o qual merecem essas obras, e que vingará no sangue dos mortos, por mãos dos vivos, etc...»<ref name="Nt2">Existente na Torre do Tombo, cella M, maço 1:104, fol. 381.</ref>
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que o Duque me queria, pareceu-me que não devia estar á misericordia de quem não tem nenhuma nem esperar vossas injustiças e crueldade, as quaes em mim sei que muito desejaveis executar que pela grande que com o Duque que Deus haja tinha cuidaveis que saberia a causa da sua morte, a qual não foi outra senão o grande mal que sempre lhe quizestes e os grandes aggravos e deshonras que lhe fazieis, as quaes seriam cousa larga de contar, se houvesse de contar das escripturas e doações que lhe furtastes do cofre que a Senhora Infanta sua mãe deixou em guarda da Rainha vossa mulher, e de como nunca lhe confirmastes cousa que tivesse, antes lhe quebrastes cada dia suas cartas e privilegios e mandaveis a letrados a revolver livros para lhe tirar a vintena da Guiné, afóra na paga d'ella terdes tal forma que a mór parte lhe levaveis, e quebrastes-lhe o trato da canella e fizestes que em Côrtes que vos requeressem que lhe tivesseis as saboarias e o montado, e tirastes-lhe o desembargador que trazia na casa e tirastes-lhe a jurisdicção dos rendimentos das suas rendas, e dissestes que se vos não tornasse a Ilha da Madeira por terras do Duque que lh'a deitarieis a perder, e deixando estas cousas e outras muitas que contra elle tendes feito e commettidas tocantes á sua fazenda, nas quaes ia a maior parte do seu estado e em muitas todo lhe fazieis e ordenaveis outras em que lhe ia honra e vida, são tratal-o mui descortez e soberbamente e fallares n'elle mui feiamente chamando-lhe rapaz e necio, e que não
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era para nada, e trazerdel-o em vossa Côrte a seu pesar, que por preso o haviam todos, não querieis consentir que casasse com uma filha d'El-Rei meu Senhor, e mui honradamente casára, nem quizestes que casasse Irman com elle desejando-o ella, e tendo vós promettido á Infante sua Mãe que farieis n'isso o que pudesseis, fizestes o contrario, por onde visto está, que querieis que elle não casasse com ninguem por não haver filhos que herdassem o seu, e d'isto ha outra mui mais certa prova que estas, que é certo que lhe mandaveis dar cousa para não haver geração, e foi-lhe descoberto, depois lhe foi dito como mandaveis alguns que o matassem de noite indo elle fóra só, fingindo que o não conheciam, e foi avisado, e guardou-se, e depois foi avisado agora em Santarem, que com um cosinheiro trataveis para lhe dar peçonha, assim que claro está que dias ha que tinheis determinado de fazer o que fizestes e mais o matastes porque vos elle devia matar que por querer matar, que se elle tal quizera, não andára tão mal apparelhado para tal negocio nem viera só ver-vos e deixára-vos os mais dos seus em Palmella, nem os que com elle culpaes não estiveramos tão mal apercebidos, que eu n'esse mesmo mez não mandára com meus Irmãos os meus escudeiros e encavalgados, nem lhe déra os meus cavallos e armas de minha pessoa e áquella hora estava em casa de meu Pai que Deus haja, sem saber que o Duque era ido nem D. Alvaro de Athayde vos houvera de matar em Santarem nem D. Pedro de Athayde inda no
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ventre, eu muitas cousas pudera dizer em prova d'isto, mas abasta o que todo o mundo sabe, que matastes o Duque mal, e como não devieis e por mau respeito, e isto pudera bem provar por direito e leis e ordenações, mas porque seria longura será melhor que vamos pôr a batalha: eu estou aqui e affirmo uma duas ou tres vezes, que matastes o Duque mal e como não devieis, e aleivosamente, e o defenderei a quem por vossa parte me desafiar, e isto darei empreza para vós mandares tomar a D. Vasco não já que elle tomou, e d'esta guiza me devieis vós mandar matar que não á traição, ''como me dizem que mandais'' e se por vossa pessoa isto houvera de ser feito, bem sei que vos não porieis n'este risco, assim porque sabieis a verdade como por ali, e se isto se ordenar para que venha a fim, por aqui se saberá a verdade, porque eu espero que será n'isto tão inteiro juizo como em tudo, e se vos disto escuzardes n'elle espero que mostrará tal juizo de vós o qual merecem essas obras, e que vingará no sangue dos mortos, por mãos dos vivos, etc...»<ref name="Nt2">Existente na Torre do Tombo, cella M, maço 1:104, fol. 381.</ref>
 
No final da carta, que é um documento importantissimo para a historia da época, allude Fernão da Silveira á phrase dita por D. João {{smaller|II}} ao moço da camara, phrase que determinou o seu procedimento contra o rei:
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«... mas como natural e amigo d'esses reinos e por bem d'elles vos desservirei em tudo o que puder, porque todo o desserviço e nojo que fizer a vós vem a essa terra e gente d'ella assim grandes como pequenos, os quaes praza a Nosso Senhor livrar da sujeição e captiveiro em que vivem, e de mim digo que serei sempre tal inimigo como devem de ser todos os ''bons''...»
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Dois annos depois, ainda Fernão da Silveira estava em Castella, protegido pelos reis catholicos, que se recusavam a entregal-o a D. João {{smaller|II}}.
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Em 1487, n'um conselho realisado em Santarem, ventilou-se a questão de assentar no destino a dar ás mulheres dos conspiradores, sobre as quaes recahiam suspeitas de estarem em intelligencia com os maridos.
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Ora um documento da época, que suppomos inedito, diz qual foi a resposta de D. Brites de Sousa:
 
«Esta parte tomou el-rei de as não mandar constrangidamente, e mandou a esta de Fernão da Silveira
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/26]]==
saber se se queria ir, e ella escolheu a parte de estar no reino por então.»<ref name="Nt3">Torre do Tombo, cella M, maço 1:163, fol. 495.</ref>
 
Uma tal resposta surprehendeu decerto o leitor, por não ser conforme com a declaração que no conselho d'el-rei fizera Ruy de Sousa.
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Eis-aqui a rasão que determinou a recusa de D. Brites.
 
O certo era que Fernão da Silveira vivia em Castella sem disfarces de mancebia. A sua existencia,
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cortada de continuos sobresaltos e receios, que o faziam esperar a toda a hora o punhal assalariado por D. João {{smaller|II}}, achava lenitivo nas expressões affectuosas da manceba, que na desgraça se tornára mais dedicada.
 
Sabia o foragido que o rei de Portugal procurava constantemente actuar no animo de Fernando e Izabel para leval-os a entregarem-lhe o conspirador. Receiava que os reis catholicos viessem a ceder, e n'esse caso contava com uma infallivel morte ignominiosa, com uma vingança terrivel que nem os seus restos mortaes respeitaria. A pelle do seu corpo serviria para cobrir a cadeira de D. João {{smaller|II}}.
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Perante a rigidez indomavel do rei de Portugal, antolhava-se-lhe desolador o futuro. Se lograsse escapar aos sicarios armados pela colera de D. João {{smaller|II}}, o que era muito pouco provavel, teria que viver e morrer longe da patria com o labéo de conspirador, sempre vexado pela necessidade de receber agasalho e protecção.
 
As sombras da noite punham-lhe no espirito o constante receio de emboscadas; atravessava as ruas com o sobresalto com que póde atravessar-se um sertão povoado de féras. Não se permittia a fraqueza
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do medo, não evitava as horas sinistras da noite, por mais que Izabel Rodrigues lh'o pedisse; mas tinha sempre presente o espectro da morte por traição.
 
Quando recolhia a casa, esquecia nos braços carinhosos da manceba, que lhe apresentava o filho, os sobresaltos d'aquelle dia, e repousava como o naufrago n'um porto de abrigo.
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Lembrava-lhe que o odio de D. João {{smaller|II}} costumava ser tão profundo e sanguinario, que não respeitava nem as regalias de nascimento nem os laços de parentesco.
 
Perguntava-lhe se não sabia que o duque de Bragança fôra decepado no cadafalso da praça de Evora; que em Abrantes cevára D. João {{smaller|II}} a sua
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vingança na estatua do marquez de Montemór já que, por se ter refugiado em Castella, não podéra ceval-a no seu corpo; que o duque de Vizeu, cunhado do rei, fôra por elle proprio assassinado em Setubal. Agradecia á Providencia o ter-se encarnado na pessoa de João de Pegas para o salvar; senão, haver-lhe-ia acontecido o que acontecêra a D. Pedro de Athayde, que fugindo de Setubal para Santarem fôra preso no caminho, publicamente degolado e feito em quartos.
 
Os fidalgos castelhanos continuamente estavam avisando Fernão da Silveira das repetidas instancias que D. João {{smaller|II}} fazia junto dos reis catholicos para que lh'o entregassem. O conspirador teimava em não querer parecer fraco, deixava-se ficar, sempre intimamente sobresaltado e desconfiado.
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Não devia, porém, considerar-se muito seguro em França um conspirador representante da nobreza insurgida contra o poder absoluto dos reis.
 
Luiz {{smaller|XI}}, que tinha morrido poucos annos antes, em 1483, havia sido um inimigo implacavel dos poderosos senhores do seu reino, que formaram contra elle a celebre liga do ''Bem publico''. Sabe o leitor que
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Luiz {{smaller|XI}} se fizera rodear de gente de baixa estofa, que continuamente atiçava a colera do rei contra a nobreza. Vivêra mano a mano com o seu barbeiro Olivier Le Daim, e tratava por compadre o preboste Tristan, executor dos seus planos sanguinarios.
 
Estava ainda muito viva a lembrança das crudelissimas represalias de Luiz {{smaller|XI}},—da vingança que tirára do seu ministro Jean Balue, que de simples presbytero chegára a ser cardeal de Santa Suzana e que, suspeito de ter atraiçoado o rei com o duque de Borgonha, fôra, no castello de Plessis, encerrado n'uma gaiola de ferro, onde não podia conservar-se deitado nem de pé; do supplicio horrivel de Jacques d'Armagnac, duque de Nemours, e de seus filhos, na fortaleza de Loches; finalmente do drama tragico-burlesco dos ultimos tempos da sua vida n'aquelle mesmo castello de Plessis, onde Jean Balue padecêra, e onde Luiz {{smaller|XI}}, assaltado pelos terrores da morte, fazia vigiar as avenidas pelo barbeiro Olivier e pelo compadre Tristan, que se encarregavam de enforcar nas arvores do parque todo o individuo que podesse inspirar-lhes desconfiança.
 
Luiz {{smaller|XI}} havia pois morrido em Plessis, onde passára os ultimos dias passeiando ao longo d'uma vasta galeria, torturado pelo medo da justiça eterna, sem que podessem tranquilizal-o o espectaculo dos combates de gatos e ratos, as danças dos camponezes, as orações e as penitencias a que se entregava, e sem que podesse avigoral-o o uso de beber o sangue das creanças no intuito de fortalecer-se e remoçar.
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Nem este tonico vivificante, nem o soccorro do eremita da Calabria, que mandára buscar para consultal-o, e ao qual pedia a vida chorando, haviam podido salvar da morte Luiz {{smaller|XI}}.
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Petrarcha apaixonára-se aos vinte annos pela bella Laura, que nunca foi sua, pois que desposára Hugues de Sade, a quem, victima da peste de 1348, deixára viuvo com a descendencia bem pouco lyrica de onze filhos.
 
Fernão da Silveira, menos infeliz pelo que respeitava ao feminino, tinha comsigo, em mancebia adulterina, a sua Laura, a qual procurava suavisar-
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lhe as horas amargas da vida, que eram todas ou quasi todas.
 
Mas como poeta e exilado, comprehendia a solidão dolorosa de Petrarcha em Valchiusa, á beira de cuja fonte o portuguez ia muitas vezes sentar-se juntando idealmente as suas angustias ás do poeta que, tendo alli cantado um seculo antes, vivêra solitario como elle e como elle perseguido pela fatalidade do destino.
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Recommendava-lhe que, no caso d'elle morrer assassinado por ordem de D. João {{smaller|II}}, como presentia, educasse seu filho no odio ao tyranno e no amor da liberdade.
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Mostrava alimentar a esperança de que a sua morte e a dos outros conspiradores seria vingada pelo veneno ou pelo punhal na pessoa do rei.
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Fernão da Silveira dizia muitas vezes a Izabel Rodrigues:
 
—A cada silvo do vendaval sinto-me estremecer interiormente, como um predio que vai desabar... É o presagio da morte, Izabel. Morro longe da patria, longe da familia que eu constitui em tempos de felicidade. Morro ao pé de um filho, e tenho saudades de outro. O coração é assim feito. Foi o tyranno que me casou, porque na côrte dos reis poderosos nem o coração é livre. Nunca tive nem podia ter por minha mulher a febre de amor com que tu me incendiaste os sentidos. É a ti que eu amo, boa alma, que tanto te tens doído das minhas dôres. Vivo comtigo com o mesmo direito com que o tyranno abandonava a rainha para se ir emboscar em Cernache do Bom Jardim com D. Anna de Mendonça, a mãe do bastardo. Se alguem n'este ponto podesse tomar-me contas, não era por certo o tyranno, tão fragil com mulheres. Mas da esposa que não amei nunca,
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tenho um filho que sempre tenho amado, e peza-me que elle haja de arrastar na sociedade a infamia com que o tyranno enlameou protervamente o meu nome. Outro filho tenho... é o teu, é o nosso, Izabel, e d'esse me peza duplamente, porque só póde ser meu filho para compartir da deshonra do pai com o irmão.
 
Izabel Rodrigues acudia com palavras carinhosas a desviar-lhe o espirito para menos lastimosos pensamentos, mas o conspirador quedava-se triste, calado, dando a perceber que continuava mentalmente os raciocinios que a manceba meigamente pretendêra interromper.
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Foram, caminho fóra, conversando os dois.
 
Obedecendo á teimosia dos seus pensamentos,
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Fernão da Silveira ia fallando de Portugal ao filho, gravando na sua memoria, a traços de fogo, o retrato odiento do tyranno.
 
Á volta de uma rua, encontraram-se a pequena distancia com um fidalgo catalão, cujo nome e situação Fernão da Silveira muito bem conhecia. Era, como elle, um conspirador, que andava foragido de Castella: o conde de Palhaes.
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O conde de Palhaes foi logo preso, conduzido ao carcere em nome do rei de França, que não era já Luiz {{smaller|XI}}, como sabemos, porque Luiz {{smaller|XI}} havia morrido seis annos antes.
 
A opinião publica alvorotára-se com este acontecimento, pela significação que realmente tinha. O braço do conde de Palhaes fôra manifestamente armado por D. João {{smaller|II}}, que ao catalão fizera ''mercê de muita somma de ouro, em que se primeiro concertou'', como escreve Garcia de Rezende. Não podéra o rei de Portugal ser feliz nas negociações que para haver á mão Fernão da Silveira entabolára com os reis catholicos e com o rei de França. Ter-lhe-ia sido por
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certo bem mais agradavel que essas negociações houvessem surtido effeito, porque lhe permittiriam vingar-se do escrivão da puridade pelo seu proprio braço, como fizera ao duque de Vizeu, ou pelo braço do algoz, como fizera ao duque de Bragança. Mas, posto falhassem os meios a que primeiro recorrêra, não desistíra da vingança. Empregou outros, o da corrupção pelo ouro, sob promessa talvez de que, além do ouro, a sua protecção salvaria o sicario.
 
N'este ponto enganou-se D. João {{smaller|II}}.
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A mãe abraçou-se chorando ao filho, e rompeu em apostrophes violentas contra o tyranno que assalariára o sicario para que elle, á luz do dia, perpetrasse um homicidio dentro da cidade dos papas.
 
Na memoria infantil do pequeno Alvaro condensaram-
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se, em torno da recordação do cadaver do pai, todos estes lugubres accessorios, que as lagrimas e os clamores da mãe a cada momento renovavam.
 
Quando a noticia chegou a Portugal, outra mãe, D. Brites de Sousa, esquecendo na sua dôr as infidelidades do marido, recordou a João da Silveira, seu filho, a historia lacrimosa do pai. Era então menino de poucos annos João da Silveira, mas a recordação do pai, sempre avivada pela narrativa da viuva, fez-lhe grave e triste o caracter. Demais a mais, João da Silveira herdára o talento poetico do pai. Foi, mais tarde, um dos glosadores dos serões da côrte, e um dos poetas do {{sc|Cancioneiro}} de Garcia de Rezende.
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<span id="chapII">{{c|{{larger|II}}}}
 
{{c|{{larger|'''Seis rainhas para um rei'''}}}}
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Seis rainhas para um rei'''}}}}
 
 
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Aqui principia, pois, todo o interesse do conto, porque, por causa de uma mulher, como sempre acontece, separou-se a Inglaterra da communhão catholica de Roma.
 
Aquelle rei dos bretões, que ao depois havia de sahir tão voluvel e tyranno, foi na sua mocidade um bom principe, muito amante da musica e das letras e, no respeitante a religião, muito orthodoxo. Seu pai, o primeiro soberano Tudor, acabára dominado pela mania da ambição, que o levára a vexar o povo, de
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modo que sorrira com Henrique {{smaller|VIII}} a esperança de uma nova época melhor auspiciada, tanto mais que o rei, acclamado em 1509, tinha casado aos dezeseis annos com a viuva de seu irmão o principe de Galles, D. Catharina de Aragão, princeza virtuosa, que o devia aconselhar prudentemente, sendo que este casamento era duplamente vantajoso, porque d'elle dependia a alliança com a Hespanha e porque evitava que a Inglaterra tivesse que restituir o dote da princeza.
 
Tão orthodoxo era o joven rei Henrique, que se condecorava com o titulo de ''defensor da fé'' porque, tendo rebentado o grande scisma de que Luthero fôra a cabeça visivel, escrevêra contra o lutheranismo, guiado pelas suas predilectas leituras de S. Thomaz d'Aquino, um livro que intitulou ''De septem sacramentis''.
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Conhecendo que Henrique {{smaller|VIII}} estava namorado de Anna Boleyn, filha do gentilhomem Thomaz Boleyn, procurou despertar na alma do rei certas duvidas a respeito da legalidade do seu casamento com D. Catharina d'Aragão, casamento que aliás havia sido realisado por auctoridade de uma bulla do papa Julio {{smaller|II}}.
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A rainha Catharina, mais velha seis annos do que Henrique {{smaller|VIII}}, tinha-lhe dado cinco filhos, mas só uma sobrevivêra: a princeza Maria. N'isto quiz o cardeal Wolsey vêr castigo do céo, porque o Levitico fulmina penas contra todo aquelle que desposar a viuva do irmão. S. Thomaz d'Aquino, o auctor predilecto do rei, parece que tambem diz a este respeito alguma coisa. Mas dissesse que não dissesse. O que o cardeal queria era explorar em proveito proprio a paixão do rei por Anna Boleyn.
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E ordenou que, durante dez dias, ninguem, a não ser o seu emissario de confiança, podesse sahir para Roma.
 
A rainha, como isto soube, valeu-se ainda de Montoya para que sem demora partisse occultamente
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para Antuerpia, e d'alli, tomando um navio flamengo, procurasse chegar a Roma primeiro do que o postilhão do rei.
 
Assim aconteceu. O papa, recebendo Montoya, disse-lhe que a bulla era verdadeira, e que a enviaria a Inglaterra por mão do cardeal Campeggio. E o mesmo respondeu ao emissario de Henrique {{smaller|VIII}}, que ficou desesperado quando teve conhecimento do modo como as coisas haviam corrido.
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A rainha, ouvindo isto, levantou-se indignada, replicando:
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—Que o testemunho era aleivoso, por quanto o rei Henrique bem sabia como a havia encontrado.
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Despedindo o cardeal Campeggio, Henrique {{smaller|VIII}} fez-lhe saber que estava resolvido a não reconhecer por mais tempo a auctoridade do bispo de Roma, e logo, reunindo o seu conselho, communicára-lhe esta resolução, bem como a de desposar Anna Boleyn.
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Foi resolvido que se convocassem côrtes.
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Tres dias depois, Henrique {{smaller|VIII}} embarcou com Anna Boleyn no bergantim real, seguido de uma flotilha flammante, sendo saudado tão estrondosamente pela artilheria, que não ficou n'aquelle dia vidraça inteira desde Greenwich até Londres.
 
O rei e a rainha pernoitaram na Torre e, no dia seguinte, Henrique {{smaller|VIII}} foi no bergantim real para
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Westminster, sahindo pouco depois Anna Boleyn com igual destino, n'umas andas descobertas, precedida de toda a cavallaria e de gentishomens e damas em hacaneas e coches.
 
Anna Boleyn levava um vestido de brocado carmezim constellado de pedraria, no collo um collar de perolas maiores do que amendoas, na cabeça uma grinalda á maneira de corôa, e nas mãos um ''bouquet'' de flôres raras e bellas.
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Á porta de Westminster, o rei Henrique {{smaller|VIII}} esperava a rainha Anna, e, dirigindo-se todos para o templo, foi a rainha coroada, havendo durante oito dias grandes justas e torneios, coisa espantosa de se vêr.
 
Ora o parlamento confirmou tudo quanto o rei havia feito: ratificou o casamento com Anna Boleyn, jurou a legitimidade da successão que d'elle resultasse, reconheceu a Henrique {{smaller|VIII}} o titulo e o poder espiritual de chefe supremo de igreja anglicana, e outorgou-
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lhe os rendimentos outr'ora destinados ao thesouro pontificio.
 
Como alguns catholicos permanecessem firmes na sua antiga crença, e não quizessem jurar, foram presos e executados: entre outros João Fisher, bispo de Rochester, e o chanceller e escriptor Thomaz Moore, a quem Erasmo dedicou o ''Elogio da loucura'', e que fôra, junto de Henrique {{smaller|VIII}}, o successor do cardeal de Wolsey.
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Mas o rei Henrique fez ouvidos de mercador, e ordenou que a filha de Anna Boleyn, que veio depois a reinar com o nome de Izabel e o cognome de ''Virgem'' (que virgem!) fosse jurada princeza de Galles, sendo declarada bastarda madama Maria, que tambem foi rainha, filha de Catharina de Aragão.
 
Desde que na rua de Cheapside a rainha Anna tinha arrecadado a bolsa com as mil libras sterlinas, que lhe dera a cidade de Londres, ficou-se sabendo
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que, na balança do seu coração, o amor ao rei não pesava mais do que o amor ao dinheiro.
 
Assim foi que ella cobiçou a corda e as joias que pertenciam á rainha Catharina.
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«Senhor meu e rei meu e marido amantissimo:
 
«O profundo amor que vos tenho faz-me escrever-vos n'esta hora e agonia de morte, para admoestar-vos e lembrar-vos que tenhaes conta da saude eterna da vossa alma mais que de todas as coisas fallazes d'esta vida e de todos os regalos e deleites de vosso corpo, por cuja causa me haveis dado tantas penas e fadigas e vos haveis embrenhado n'um labyrintho e pélago de cuidados e angustias. Perdôo-vos de boa mente tudo o que tendes feito contra
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mim, e supplico a Nosso Senhor que tambem vos perdoe. O que vos rogo é que olheis por Maria, nossa filha, a qual vos recommendo; e vos peço que para com ella tenhaes cuidados de pai. Tambem vos recommendo as minhas tres criadas, e que as cazeis honradamente, e todos os outros criados, para que não padeçam privações; e além do que se lhes deve, desejo que se lhes entregue o salario inteiro de um anno. E, para concluir, senhor, certifico-vos e affirmo-vos que não ha coisa mortal que os meus olhos mais desejem do que vós.»
 
Boa e santa alma de mulher, que morre amando o seu verdugo!
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Porque, a proposito vem dizel-o, uma das tragedias de Shakspeare tem por assumpto e titulo Henrique {{smaller|VIII}}. Foi Izabel, a filha de Anna Boleyn, que lhe pediu que a escrevesse. Ora a obra do tragico inglez, a respeito de Henrique {{smaller|VIII}}, é um producto convencional, destinado á filha da rainha intrusa que depoz Catharina de Aragão.
 
Anna Boleyn tinha estado na côrte galante de França, fazendo parte da comitiva da princeza Maria, irmã de Henrique {{smaller|VIII}}, ultima esposa de Luiz {{smaller|XII}}, e saboreára ahi nas festas ruidosas do castello de Blois a vida alegre e frivola cuja effervescencia é capitosa. Quando a viuva de Luiz {{smaller|XII}}, que por amor d'ella se
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extenuára, voltou a Inglaterra, Anna Boleyn, educada á franceza, acompanhou-a. Vinha ''coquette''. De mais a mais Henrique {{smaller|VIII}} era um marido que se saciava de afogadilho, e que nos seus caprichos amorosos tinha azas como a borboleta, para voar de flôr em flôr.
 
Anna Boleyn, que começára amando a dança e a musica, acabou por amar os dançarinos e os musicos.
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Conta André de Rezende, na ''Vida do Infante D. Duarte'', que este infante tomára por companheiro um tangedor castelhano de appellido Ortiz, que lhe tocava na guitarra ''fados'' contra o papa, e trocava em sucia com o principe graçolas obscenas de calão fadista.
 
Marcos Smeaton entrára com o pé direito nos aposentos
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e nas danças da rainha Anna, porque, pouco tempo volvido, uma servilheta velha, alcoveta industriosa, levava de noite o Marcos até ao leito da rainha.
 
Sir Henry Norreys e William Brereton descobriram mouro na costa, e recalcitaram. Armou-se uma embrulhada de ciumes, tanto maior quanta era a pompa de vestuario e galanices que o Marcos exhibia, indicando tolamente as boas fortunas de que gozava junto da rainha Anna.
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D'alli foi Marcos Smeaton mandado para a Torre de Londres, onde não tardaram a ser igualmente encerrados Henry Norreys, William Brereton e o poeta Thomaz Wyat, muito protegido do ministro Cromwell.
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N'este lance da nossa historia precisamos conversar um pouco a respeito do poeta Wyat, aliás famoso, comquanto amorosamente fosse mais pateta do que poeta.
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Foi a isto que eu chamei metaphoricamente iguarias do peccado.
 
O pobre Wyat, quando Anna Boleyn subiu de marqueza de Pembroke a rainha de Inglaterra, o mais que fez foi chorar sobre as ruinas do seu proprio platonismo. Compoz, ahi por 1535, uma elegia
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com o titulo de ''Forget not yet'', que, em versão descolorida, sôa pouco mais ou menos assim:
 
{{margem esquerda|10%}}<poem>Não te esqueça a constancia que meu peito
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Mas o sentimentalismo levava Wyat por caminho errado. Anna Boleyn, na côrte de Inglaterra, gostava mais dos musicos que das elegias.
 
Pensam alguns auctores que Thomaz Wiat nunca mais se avistára com Anna Boleyn. O chronista castelhano desfaz, porém, este equivoco, dando conta
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da prisão de Wyat, pouco antes da propria rainha ser presa em Greenwich, onde acabava de se celebrar um torneio e onde a sua ultima galanteria fôra deixar cahir o lenço, como favor concedido aos seus amantes. Mas quem categoricamente tira todas as duvidas é o proprio Wyat n'uma carta que escreveu ao rei.
 
Quando os escandalos da rainha chegaram ao conhecimento de Wyat, aggravados até pela suspeita de incesto commettido com o visconde de Rochford, seu irmão, achou elle que o melhor que tinha a fazer era chorar menos e atirar-se mais.
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Mas oito dias depois, como era justo, pois que tanto chorára e esperára, o poeta Thomaz Wiat não foi menos feliz do que Marcos Smeaton e outros musicos.
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Tudo isto contou Wyat ao rei, n'uma carta escripta da Torre de Londres, e o rei, depois de a lêr, mandou soltar o poeta e ficou estimando-o tanto, que em 1541 o enviou como embaixador á côrte de Carlos {{smaller|V}}, mas Wyat morreu dos incommodos d'esta viagem.
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Sobre o cadafalso, Anna Boleyn pronunciou um discurso muito habil para não enganar Deus nem os homens.
 
—Não penseis, bom povo, que me peza morrer, nem que eu fizesse coisa que merecesse esta morte: tudo procede da minha grande ambição e do grande peccado que commetti fazendo com que o rei abandonasse a boa rainha Catharina por minha causa. Rogo a Deus que ella me perdôe. E para que todos o ouçaes, digo que sou injustamente accusada. A principal
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razão da minha morte é Joanna Seymour, como eu fui a razão da morte da boa rainha Catharina.
 
E assim, humilhando-se diante de Deus sem se penitenciar diante dos homens, foi decapitada no dia 19 de maio de 1536.
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Na chronica castelhana de Julian de Pliego vem a designação de que o auctor, talvez acobertado pelo pseudonymo, fôra contemporaneo dos factos que narra.
 
É certo que elle commette alguns anachronismos, como nota o marquez de Molins, mas não padece duvida que na sua chronica, facilmente escripta, com
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uma discreta sobriedade de rhetorica, pouco vulgar nos historiadores hespanhoes, ha grande copia de preciosas noticias, de interessantes pormenores, que a fazem estimabilissima.
 
Em Portugal Anna Boleyn ficou sendo, na tradição popular, sob a translitteração de ''Anna Bolena'', o typo da mulher corrupta e corruptora, enredadeira e devassa, perturbadora e intrigante.
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Fizeram-se grandes festas para solemnisar o casamento de Henrique {{smaller|VIII}} com Joanna Seymour, que, tendo sido ''dama de honor'' da rainha D. Catharina, se mostrava muito affeiçoada á princeza Maria, a qual o rei seu pai não tinha visto havia mais de tres annos.
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Esta princeza, que, como se sabe, depois do casamento de Henrique {{smaller|VIII}} com Anna Boleyn apenas recebia o tratamento de ''madama'', foi educada mais ou menos sob a influencia dos conselhos de sua mãi, D. Catharina de Aragão, de quem Rivadaneyra publíca uma carta, dirigida á filha, na qual se lê o seguinte periodo: «Dá recommendaçoes minhas á condessa de Salisbury: dize-lhe da minha parte que tenha firmeza de animo, porque não podêmos ganhar o reino dos céos sem cruz e attribulações.»
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Mas Joanna Seymour déra tambem á luz um filho, ''o mais lindo que jámais se viu'', diz Julian de Pliego.
 
O nascimento de um herdeiro varão causou alegria a Henrique {{smaller|VIII}}, não obstante as difficuldades que esse facto trazia para resolver a questão dynastica,
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e ter custado a vida de Joanna Seymour, que morreu doze dias depois do parto.
 
Como diz Hume, a dôr do esposo foi absorvida pela satisfação do pai, que fez jurar principe de Galles o filho de Joanna Seymour, concedendo por essa occasião a dignidade de conde de Hertford a Eduardo Seymour, irmão da mallograda rainha, já anteriormente nomeado lord Beauchamp.
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Mas o rei, apesar do grande sentimento que lhe causára a morte de Joanna Seymour, pensou logo em casar.
 
Deitou primeiro as suas vistas para a duqueza viuva de Longueville, filha do duque de Guise. Mandou pedil-a a Francisco {{smaller|I}}. A resposta foi que a duqueza
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estava já promettida ao rei da Escocia. Henrique {{smaller|VIII}} ficou desesperado, e enviou a França um emissario para o informar da impressão que a duqueza produzia. O emissario disse que era bonita e gorda. Esta ultima informação coroou a primeira, porque o rei, que estava então muito nutrido, preferia uma esposa de gordura condigna á sua.
 
Francisco {{smaller|I}}, posto reconhecesse que a alliança da Inglaterra lhe seria mais proveitosa do que a da Escocia, manteve a sua palavra, mas offereceu a Henrique {{smaller|VIII}}, para lhe calmar o animo, Maria de Bourbon, filha do duque de Vendome.
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Francisco {{smaller|I}} não obtemperou ao pedido. ''Picou-se'', como dizem os francezes, fosse que lhe repugnasse o papel de alcaiote officioso ou que, sendo elle proprio galanteador do bello sexo, lhe desagradasse a idéa de expôr mulheres ''comme des chevaux au marché''.
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Então Henrique {{smaller|VIII}} lançou vistas para a Allemanha, o que politicamente não deixava de convir-lhe para encontrar allianças nos principes da liga protestante contra o imperador Carlos {{smaller|V}}.
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—Eu posso facilmente fazer sete condes como vós; mas de sete condes não poderei fazer um Holbein.
 
Holbein, comquanto cultivasse a pintura historica, não faltando quem pense que elle seria o auctor do famoso quadro da Misericordia do Porto, foi principalmente notavel nos retratos. Pois apesar da habitual fidelidade do seu desenho e da exacta expressão do seu pincel, Holbein, no retrato de Anna de Cleves, obedeceu um pouco á adulação palaciana que
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mandava alindar os retratos das princezas, embora ficassem menos parecidos.
 
Um seculo depois dizia o joven Luiz {{smaller|XIV}} a respeito de Margarida de Saboya: ''Elle est agréable, et, contre l'habitude, ressemble à ses portraits''. O nosso grande José Estevão, apesar de inventada já a photographia, disse uma vez no parlamento que todas as princezas eram formosas.
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O rei reuniu conselho para vêr se seria possivel romper o contracto de casamento, mas acobardou-o uma consideração politica.
 
Carlos {{smaller|V}} e Francisco {{smaller|I}} estavam então reconciliados. Como surgissem novas perturbações na Hollanda, principalmente em Gand, Carlos {{smaller|V}}, que residia em Hespanha, quiz ir pessoalmente calmal-as. Mas como a viagem por Italia e Allemanha seria muito longa, o imperador pediu ao seu prisioneiro de Pavia licença para atravessar a França. Francisco {{smaller|I}} mostrou-
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se magnanimo, deu a licença pedida e recebeu com grandes festas Carlos {{smaller|V}}. Alexandre Dumas, como o leitor deve estar lembrado, descreve-as no seu romance ''Ascanio''. Ora, dada a conciliação de Francisco {{smaller|I}} e Carlos {{smaller|V}}, bem podiam estes dois principes, movidos pelo zelo religioso, cahir sobre a Inglaterra com todo o pezo dos seus exercitos.
 
Portanto, mais do que nunca, importava a Henrique {{smaller|VIII}} uma alliança com os principes allemães, para o que désse e viesse.
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Partiu Vaughan com dinheiro á ufa e, chegando a Cleves, reuniu em banquete alguns gentishomens, com o proposito de os embriagar. ''In vino veritas.'' Depois de haverem esgotado os picheis, elles diriam o que soubessem. Assim aconteceu. Um d'elles, mais expansivo na embriaguez, posto fosse criado do duque de Cleves, disse á mesa que a princeza havia desposado um cavalleiro, que morrêra na Allemanha de desgosto quando soube que acabavam de casal-a com Henrique {{smaller|VIII}}.
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Surprehendido este fio da meada, Vaughan procurou desfial-a, fazendo-se acompanhar de cartas justificativas.
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O seu temperamento frio de allemã não soffreu pois grandemente com o divorcio, mas altivo, como todos os de sua raça, levou-a a não querer voltar para a Allemanha.
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Diz-se que escrevêra uma carta ao irmão, pois que o pai tinha fallecido, affirmando-lhe que fôra sempre bem tratada na Inglaterra.
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O casamento fez-se logo, e Henrique {{smaller|VIII}} delirava de jubilo por possuir uma esposa bella e graciosa, julgava-se o mais feliz dos maridos, instituira na capella real uma oração em acção de graças, e exigira que o bispo de Lincoln compozesse, pelo mesmo motivo, um hymno gratulatorio.
 
Catharina, vendo cingidos os seus cabellos com a corôa de Inglaterra, pompeou esplendores de ''toilettes''
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e joias nunca vistas. Era uma ''coquette'' de peior estofa que Anna Boleyn. Não precisára ter estado em França para se desmoralisar; o vicio era-lhe ingenito. ''Coquette'' e dominadora. Ciosa das honras dispensadas á princeza Maria e ao principe de Galles, fez com que o rei lhes pozesse casa á parte. E o rei, preso nos seus amavios, obedecera-lhe.
 
Comprehende-se facilmente que um marido de cincoenta annos não bastasse ás exigencias voluptuosas de uma ''coquette'' como Catharina Howard.
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Henrique {{smaller|VIII}} foi uma victima da dança,—sempre que as rainhas dançavam.
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Certo dia Catharina procurou sondar uma criada sua, Maria se chamava ella, dizendo-lhe:
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Disse-lhe que amava Colepeper, que pensára mesmo em casar com elle antes do rei a requestar. E pediu-lhe que a auxiliasse para ter uma entrevista com Colepeper, visto que o rei ia sahir para Rionsirche.
 
A criada teve medo, recusou-se e foi denunciar a rainha ao arcebispo do Cantorbery. Mas parece que outra criada, menos timida, favorecêra os intentos de Catharina, porque depois se averiguou, como vamos
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/66]]==
vêr, que a rainha tivera effectivamente um ''tête-à-tête'' com Colepeper.
 
O arcebispo soube mais por um individuo chamado Lascelles, cuja irmã havia estado ao serviço da velha duqueza de Norfolk, e lhe revelára segredos da vida de Catharina quando solteira, que dois officiaes da casa da duqueza, Derban e Mannoc, haviam sido admittidos no seu leito, sem que d'isso fizessem mysterio.
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Todos os depoimentos foram lidos ao rei que, apesar de estar habituado a estes lances, chorou.
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Interrogada a rainha sobre as accusações que lhe eram feitas, negou-as a principio; mas quando lhe apresentaram todas as provas, confessou que effectivamente se havia conduzido mal antes do casamento, insistindo, porém, na declaração de que não tinha trahido o rei.
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No outro dia foi decapitado Colepeper, que se limitou a pedir ao povo que rogasse a Deus por elle.
 
Tambem morreu decapitada a viscondessa de Rochford, com applauso do publico, que se lembrava de
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que fôra ella quem mais contribuira para a perda de Anna Boleyn.
 
Henrique {{smaller|VIII}}, afim de se precaver contra novos desastres conjugaes, levou o parlamento a votar uma lei em que a todos os cidadãos se impunha a obrigação de denunciarem secretamente ao rei quaesquer infidelidades da real consorte, e á real consorte o dever, sob pena de alta traição, de revelar ao rei as faltas que porventura houvesse commettido antes do casamento.
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O casamento fez-se um pouco á capucha. Sem embargo, Anna de Cleves assistiu e, longe de se mostrar pezarosa, gracejou sobre o caso.
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—Que grande peso, disse ella, vai tomar Catharina Parr!
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Catharina esquivou-se tenaz e artificiosamente a entrar na questão, dizendo:
 
—As mulheres estão sujeitas ao homem desde a origem do mundo. O homem foi creado á imagem de
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Deus, e a mulher á imagem do homem; é pois ao esposo que cumpre regular as opiniões da esposa. Mas, como quer que seja, o dever da mulher é adoptar cegamente os principios do marido. Quanto a mim, obriga-me um duplo dever, pois que tenho a felicidade de possuir um esposo que, por sua intelligencia e saber, póde illustrar não sómente a sua familia, mas até os mais eruditos espiritos de todas as nações.
 
O rei, muito lisongeado, respondeu:
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—Pobre tontinha! Nem tu sabes o que deves a este homem!...
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/71]]==
 
Não sabia a rainha outra coisa! Mas a sua astucia feminil e a experiencia de um terceiro casamento seguram-lhe a cabeça sobre os hombros.
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Accrescenta ingenuamente o chronista castelhano: E a boa rainha não pôde responder pelo muito que chorava.
 
A sinceridade d'essas lagrimas avalia-se pela fogosa paixão que Catharina Parr desentranhou pelo almirante Thomaz Seymour, que era amante de Isabel, filha do rei e de Anna Boleyn. O almirante desposou a rainha viuva, mas os ciumes de Isabel e a inveja que sua cunhada, a duqueza de Somerset, tinha da rainha atormentavam-n'o grandemente. Catharina Parr morreu envenenada, segundo se diz. Havia dado á luz uma creança que não vingou, sem que se soubesse ao certo se era filha do rei ou do
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almirante, tão pouco tempo depois da morte do rei casára ella com o almirante.
 
Catharina Parr, a respeito de casamentos, lia pela cartilha de Henrique {{smaller|VIII}}. A terra lhe seja leve, já que os maridos o não foram.
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Elle mesmo, ao expirar, se accusou de não ter poupado algum homem na sua colera, nem alguma mulher nos seus desejos.
 
Mas, como quer que fosse, a igreja catholica,
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inspirando-se na misericordia christã, deve perdoar-lhe, tanto mais que Henrique {{smaller|VIII}}, que depois de velho não cria no Purgatorio, deixou muitas missas com medo d'elle.
 
Eu até me sentia disposto a rezar um Padre-Nosso por alma de Henrique {{smaller|VIII}}, se me não lembrasse de que alfim deve já lá em cima ter recebido alguma compensação de haver sido casado seis vezes, quasi sempre com maior peso do que o que canonicamente era justo.
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<span id="chapIII">{{c|{{larger|III}}}}
 
{{c|{{larger|'''D. Beatriz de Portugal'''}}}}
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D. Beatriz de Portugal'''}}}}
 
 
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Por sua parte diz Barbosa Machado:
 
{{margem esquerda|2em}}«
{{margem esquerda|2em}}«Arrebatado de impulsos amorosos (Bernardino ou Bernardim Ribeyro) passava muitas noites entre a espessura e solidão dos bosques, explicando junto á corrente das aguas, com suspiros e lagrimas, a vehemencia de paixão tão violenta que o obrigou a emprehender impossiveis dedicando os seus affectos á infanta D. Beatriz, filha do serenissimo rei D. Manuel, como elegantemente o contou Manuel de Faria e Sousa...»</div>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/75]]==
Arrebatado de impulsos amorosos (Bernardino ou Bernardim Ribeyro) passava muitas noites entre a espessura e solidão dos bosques, explicando junto á corrente das aguas, com suspiros e lagrimas, a vehemencia de paixão tão violenta que o obrigou a emprehender impossiveis dedicando os seus affectos á infanta D. Beatriz, filha do serenissimo rei D. Manuel, como elegantemente o contou Manuel de Faria e Sousa...»</div>
 
Costa e Silva, no {{sc|Ensaio Biographico-critico}}, reproduziu a lenda d'esses suppostos amores do poeta, desventurosos por desiguaes. Conta-nos o seu desespero quando o rei de Portugal concedeu a mão da infanta ao duque de Saboya; o seu ermar solitario pela serra de Cintra, bradando ás penhas e entalhando no tronco das arvores o nome de Beatriz; finalmente, a partida do trovador para Saboya, sob o disfarce de peregrino, e o seu furtivo encontro em Saboya com D. Beatriz:
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—Já lá vai o tempo dos antigos galanteios.»</div>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/76]]==
 
Segundo a versão de Costa e Silva, Bernardim Ribeiro, recolhendo á patria, e voltando á serra de Cintra, ahi ''terminou em breve os seus dias''.
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Pelos andrajos do mendigo amante.
Vel-o-ha, o objecto de suspiros tantos,
</poem>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/77]]==
<poem>
De saudade tão longa, da romage
Devota, mas só vêl-o, e adeus eterno,
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No {{sc|Auto de Gil Vicente}}, representado com grande applauso no theatro da rua dos Condes, Bernardim Ribeiro inspira uma dupla paixão a Paula Vicente, filha de Gil Vicente, e á infanta D. Beatriz. A dedicação de Paula pela infanta vai até o ponto de sacrificar o seu proprio coração á paixão que a infanta nutre pelo trovador. Todo o entrecho d'esta peça inicial do moderno theatro portuguez é fornecido por um auto de Gil Vicente, de que a seu tempo nos occuparemos. O casamento da infanta realisa-se, e ella parte para Italia a bordo do galeão «Santa Catharina». Bernardim conseguiu ir a bordo dizer o ultimo adeus á infanta; mas el-rei D. Manuel chega pouco depois para se despedir da filha. Bernardim encontra-se n'uma situação desesperada, receiando comprometter a infanta e Paula Vicente. Prefere morrer a desacredital-as: precipita-se no Tejo.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/78]]==
 
O lance é de effeito para um final d'acto, que de mais a mais é o ultimo. E a responsabilidade historica de Garrett salva-se de algum modo, porque Bernardim Ribeiro póde não ter perecido no Tejo. Isto mesmo diz Garrett em nota á segunda edição do {{sc|Camões}}: «... Bernardim Ribeiro lança-se ao mar, no {{sc|Auto de Gil Vicente}}, mas nenhum ''nuncius'', nenhum ''koros'' veio fóra, como na comedia ou tragedia antiga, dizer ao publico: «Bernardim Ribeiro afogou-se com effeito; ''nunc plaudite''.»
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«Aprendei aqui, ó Beatrizes d'este mundo!»</div>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/79]]==
 
No terceiro volume do {{sc|Romanceiro}} encorporou Garrett dois romances extrahidos da {{sc|Menina e Moça}}, de Bernardim Ribeiro: {{sc|A Ama, Avalor}}; e o soláo {{sc|Cuidado e Desejo}}, que se encontra entre as eclogas do poeta, appensas á edição da {{sc|Menina e Moça}}, feita em 1852 pela empreza da ''Bibliotheca portugueza'' (Lisboa).
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Fica pois bem accentuada a grande influencia que a tradição poetica dos amores de Bernardim Ribeiro exerceu no espirito delicado e na imaginação romantica de Garrett. O caso, em verdade, não era para menos. Cintra, a formosissima Cintra, como tablado; como actores, uma princeza e um trovador. E depois ainda a corrente tradicional dos costumes trovadorescos: «não estava tão longe o tempo em que princezas e rainhas ouviam sem enfado e acceitavam sem desaire as homenagens dos trovadores.»
 
Alexandre Herculano, no 3.º volume do {{sc|Panorama}}, escreveu um artigo a respeito dos amores de Bernardim Ribeiro com a infanta D. Beatriz. Acha escuro este problema historico, mas acceita a lenda. Lamenta que Garcia de Rezende, que tão curiosas informações nos legou sobre a partida da infanta para Saboya, se abstivesse, talvez por considerações palacianas, de tocar o assumpto. Cita Damião de Goes para mostrar que o casamento fôra mal recebido dos portuguezes, que não reconheciam no duque de Saboya qualidades nem de nascimento nem de posição
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/80]]==
para tomar por mulher uma filha do rei D. Manuel. E não lhe parece que estas razões fossem as unicas que imperaram no animo dos portuguezes para desestimar o casamento. Copía, em reforço da sua opinião, um codice da primeira metade do seculo {{smaller|XVI}}, existente na bibliotheca real, da qual transcreve os seguintes periodos com relação á viagem da infanta:
 
{{margem esquerda|2em}}«... e a um domingo, dia de S. Miguel, de setembro do anno de 521, chegaram a Villa-Franca de Niça, porto do duque de Saboya, a uma hora depois do meio-dia; e assi das náus como da villa se fez grão festa d'artilharia. E o duque mandou pedir á infante, que não dormisse na nau; e ella se escusou de sair por aquella noite; e vendo o duque sua escusa, foi lá em pessoa com alguns gentishomens, e lhe pediu que com toda maneira saisse: ella o fez por conselho do conde, contra sua vontade, e de todos, e saiu com tochas; onde achou doze facas guarnecidas, para si, e para as damas, e alguns chibaos para os fidalgos, porque d'alli a Niça, onde era a povoação, pelo rio acima, era meia legua; e ahi foram ter. E a duqueza de Nemuns (''Nemours'') irman do duque, e mãe d'el-rei de França, que ahi estava, saiu fóra ao terreiro das casas, onde o duque pousava, a receber; e ahi se fizeram grandes ceremonias e cortezias. E alli foi com a infante para dentro, e assi a rainha por hospeda aquella noite. Ao outro dia pela manhã foram ouvir missa a um mosteiro
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/81]]==
de S. Domingos, pegado com as casas; e um cardeal, que ahi era, disse missa, e os benzeu...
 
«O duque é homem pequeno de corpo, e alvo; de rosto comprido, e fêo de tudo: tem um hombro mais alto que o outro, e é um pouco azumbado, e as pernas delgadas, e muito prudente. A este casamento, eram vindos um cardeal e tres bispos, e um marquez, e tres condes, e logo se tornaram. Em Niça estiveram oito dias, nos quaes alguns justaram, e o duque deu banquete aos portuguezes: e a cabo dos oito dias partiu com a infante para Piamonte: e á partida a infante se achou só em uma faca, com dous moços d'estribeira; e como ia de cá acostumada de andar d'outra maneira, achava-se corrida, e não soube que fazer, senão tornar-se ás lagrimas, porque a mór parte dos portuguezes eram já embarcados para se tornar. E alguns outros que por a servir aqui se iam acompanhar, não o consentiram, que assi lhes era ordenado do duque: e ao passar de uma ponte, uns cem alabardeiros lhes pozeram as alabardas nos peitos, e não consentiram que passassem ávante. As damas iam em chibaos d'aluguer, com varas nas mãos, sem nenhuma companhia d'homem, caindo a cada passo por seguir a infante pranteando e chorando sua orfandade, e a pouca honra e gasalhado que dos saboianos recebiam; e dizendo d'elle muitas pragas, e a pouca virtude e honra com que os tratava.»</div>
 
D'estas passagens do codice tira Alexandre Herculano as conclusões que fazem ao seu proposito.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/82]]==
Ainda explica a repugnancia da infanta em desembarcar por estar informada da figura despicienda do duque; mas para explicar a dureza com que Carlos de Saboya trata D. Beatriz, poucos dias depois de casada, sendo certo que empregára grandes esforços para obter a sua mão, recorre Alexandre Herculano á conjectura de que «a noticia dos amores da infanta com um cavalleiro portuguez teria chegado aos ouvidos do senhor Vallaison (Claudio) que revelaria a seu amo, depois das nupcias, o terrivel segredo que levára de Portugal, e porventura o receio de que entre os que na viagem a acompanharam existisse o seu rival, e de que alguma das damas o favorecesse.»
 
O quadro da desamoravel lua de mel, que a infanta D. Beatriz, segundo o author do manuscripto, tivera em Saboya, não obstante a tradicional formosura da infanta, contrastaria asperamente com as alegrias com que os esponsaes foram celebrados na côrte de Portugal, onde Gil Vicente fez representar a tragicomedia das {{sc|Côrtes de Jupiter}}, um dos autos que, a nosso vêr, melhor caracterisam a funcção truanesca que Gil Vicente desempenhava no paço, pelas allusões pessoaes a personagens importantes que elle irrisoriamente converte em peixes,—baleia, raia do alto, çafio, etc.
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{{c|{{x-smaller|II}}}}
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/83]]==
 
Em 1867 publicava Camillo Castello Branco o livro intitulado {{sc|Cousas leves e pezadas}}, e ahi, em nota á pagina 17, escrevia o seguinte:
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«E continúa:
 
{{margem esquerda|10%}}<poem>Toda a terra foi perdida;
</poem>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/84]]==
<poem>
Toda a terra foi perdida;
No campo do Tejo só
Achava o gado guarida.
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</poem></div>
 
«Quanto ao governo de S. Jorge, capitania-mór das armadas da India e commenda de Villa Cova, é tudo isso um equivoco do auctor da {{sc|Bibliotheca Lusitana}}, com o qual se bandeou a boa fé de escriptores de grande porte. O Bernardim Ribeiro, governador de S. Jorge da Mina, assistiu em 1526
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/85]]==
ao cêrco de Mazagão, d'onde sahiu abrasado d'uma explosão de polvora. (Veja a {{sc|Chronica de D. Sebastião}}, por D. Manuel de Menezes).»</div>
 
Innocencio Francisco da Silva, no tomo {{smaller|VIII}} do {{sc|Diccionario Bibliographico}}, pag. 379, não acceitára como definitivos os reparos de Camillo Castello Branco e appellára para investigações ulteriores.
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O snr. Theophilo Braga publicou em 1872 o volume dedicado, na sua {{sc|Historia Litteraria de Portugal}}, a Bernardim Ribeiro.
 
Ahi, procurando reconstruir a biographia do poeta pela interpretação critica das suas obras, sustenta que Bernardim Ribeiro viera do Torrão para Lisboa em 1496, quando tinha vinte e um annos (Ecloga 2.ª),
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/86]]==
o que permitte fixar a época do seu nascimento em 1475.
 
Parece ao snr. Theophilo Braga que já o poeta teria tido em 1496 o primeiro amor, inspirado por D. Maria Gonçalves Coresma, que casára com um viuvo do Alemtejo, chamado Alvaro Mendes Casco.
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Eu a vós a liberdade
Vos dei, e o pensamento.
</poem>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/87]]==
<poem>
 
N'isto não me achei contento
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A affirmação do poeta, na hypothese de que o vilancete seja realmente seu, é tão categorica:
 
{{margem esquerda|10%}}<poem>Não me engeiteis por casado,
</poem>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/88]]==
<poem>
Não me engeiteis por casado,
Que se a outra dei a mão,
Dei a vós o coração
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Este casamento é a ''catastrophe'' que ensombra a vida do poeta. Na {{sc|Menina e Moça}}, ''Bimnarder'', anagramma de Bernardim, sabendo do casamento de ''Aonia'' «se foi, e não no viram mais.»
 
Francisco Antonio Varnhagem, que morreu visconde de Porto Seguro, publicou um livro, que precedeu o do snr. Theophilo Braga, pois que este escriptor a elle se refere desfavoravelmente (pag. 107), e que
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/89]]==
se intitula {{sc|Da Litteratura dos Livros de Cavallaria}} (Vienna, 1872).
 
Varnhagem, que se dedicou muito ao estudo da nossa historia litteraria, interpretou do seguinte modo os anagrammas da {{sc|Menina e Moça}}:
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O snr. Theophilo Braga interpreta ''Bimnarder'' como outro anagramma de Bernardim, e ''Olania'' por Oriana. Eis os pontos de divergencia entre as duas interpretações.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/90]]==
 
Varnhagem commenta:
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Como se vê, a opinião dominante nos ultimos quinze annos é contraria á lenda dos amores de Bernardim Ribeiro com a infanta D. Beatriz.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/91]]==
 
O snr. Theophilo Braga explica a formação da lenda pelo supposto facto de ter o poeta amado uma dama altamente collocada na côrte, parenta de el-rei D. Manuel, D. Joanna de Vilhena; pela prohibição, no ''Index'' de 1581, da novella {{sc|Menina e Moça}}, o que lançou suspeitas sobre o conteúdo da novella; e pela coincidencia de Bernardim Ribeiro ter sahido de Portugal quando a infanta, em 1521, partiu para Saboya.
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A nós não nos repugna o facto de Bernardim Ribeiro, um poeta, se ter apaixonado por uma dama da côrte, que todavia, como diremos, não suppomos fosse a infanta, não obstante a desproporção das idades.
 
Mas, se D. Beatriz foi a inspiradora da paixão do poeta, o que podêmos provar com documentos historicos
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/92]]==
é que ella o esqueceu em Saboya, se algum dia o amou ou se soube que foi amada por elle.
 
Não é natural que D. Beatriz, tão magoada como o codice publicado por Herculano nol-a pinta, se absorvesse tão profundamente, e tão estranha ao seu proprio passado, nos deveres de esposa e princeza, como realmente acontecêra em Saboya, e como vamos mostrar.
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Se, como quer o snr. Theophilo Braga, a ''Aonia'' da {{sc|Menina e Moça}} é D. Joanna de Vilhena, primeira condessa de Vimioso, a ''Condessa Santa'', completo foi o seu esquecimento do amor que inspirára ao poeta.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/93]]==
 
«Emquanto viveu o conde, escreve o padre Francisco da Fonseca na {{sc|Evora Gloriosa}}, o imitou, e acompanhou em todas as obras virtuosas, attendendo cuidadosamente á educação de seus filhos, e ao prudente governo da sua familia, e casa, que debaixo da sua direcção era convento com apparencias de palacio. Era inimicissima do ocio, e por isso assim ella, como todas as suas criadas, se occupavam continuamente nos exercicios proprios do seu estado, umas cosiam, outras fiavam, outras faziam rendas ou fios para curar os necessitados. O mesmo usava com as senhoras, que a vinham visitar, dando a cada uma d'ellas algum trabalhinho, com que se entreter; e entretanto, ou lhe lia algum capitulo dos documentos, que o conde tinha composto, e lhe contava algum exemplo, ou historia santa, com que adoçar o trabalho; o que fazia com tanta graça, que assim sua irmã D. Brites, duqueza de Coimbra e Aveiro, com todas as mais senhoras continuavam e frequentavam com gosto a escóla de D. Joanna. Morto o conde, se deu totalmente a Deus, e, abraçando a terceira ordem de Santo Agostinho, fez uma vida verdadeiramente de santa. Remendava por suas proprias mãos os habitos dos frades, e lhes fazia o comer, quando estavam enfermos, amando-os e consolando-os a todos, como se fossem seus filhos: o mesmo praticava com as religiosas de Santa Catharina, e porque viu as lagrimas e suspiros da pobreza eborense por causa da falta que lhe fazia a morte de seu querido esposo, tomou muito a sua conta enxugar-lhe as lagrimas
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/94]]==
com opportuno remedio: escolheu para capellães e esmoleres a dous sacerdotes exemplares, em cuja companhia ia todos os dias visitar os enfermos da sua parochia: seguiam-n'a dous escravos, carregados de tudo aquillo de que podiam necessitar os enfermos, e ella por si mesma lhe repartia todos os mimos e os regalos: com estas, e outras muitas santas obras, continuou a nossa condessa a sua exemplarissima vida até os 24 de julho de 1559 em que Deus a chamou para a gloria.»
 
A dama que inspirára a paixão de Bernardim Ribeiro tinha os olhos verdes.
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</poem></div>
 
Entre as eclogas de Bernardim Ribeiro encontra-se outro romance, que Almeida Garrett tambem reproduziu com o titulo de ''Cuidado e desejo'', e ahi depara-
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/95]]==
se-nos uma outra referencia á côr dos olhos da sua dama:
 
{{margem esquerda|10%}}<poem>Seus ''olhos verdes rasgados''
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O snr. Dantas fez acompanhar a copia d'esse retrato, que deve considerar-se authentico, das seguintes indicações:
 
{{margem esquerda|2em}}«Rosto claro, ''olhos castanhos escuros'', cabellos castanhos claro, bonet de velludo preto adornado de pedraria, e uma pluma branca; no pescoço um adresse de pedras roxas engastadas em oiro, acabando com uma perola. Uma especie de lenço, ao que parece de cambraia, com muito feitio occupa o espaço do decote—em roda uma bordadura de ouro. O vestido é de fazenda (não velludo) côr de castanha, atirando para roxo, com tufos brancos nas mangas, rematados
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/96]]==
com pedras roxas tambem engastadas em ouro, punhos brancos de renda, collar de perolas acabando com tres pedras iguaes ás outras: desde a cintura até ao chão ha um cordão formado de pedras azuladas engastadas em ouro.»</div>
 
Pela descripção d'este retrato, existente na galeria de Turim, e que para todos os effeitos, repetimos, se deve considerar authentico, sabemos que os olhos da infanta D. Beatriz não eram ''verdes'', como os que descreve Bernardim Ribeiro, mas ''castanhos escuros''.
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Não tinhamos a menor noticia d'este livro, que versava um dos mais interessantes assumptos da historia de Portugal, não obstante haver sido publicado em 1863.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/97]]==
 
E como temos por indispensavel estudar a historia portugueza, para apural-a com segurança, pelo confronto do que escreveram os nossos historiadores com os dos paizes que comnosco tiveram relações politicas em determinadas épocas, fossem essas relações devidas a um casamento, a um tratado, a uma guerra ou a qualquer outra causa—systema este em que principalmente baseamos o nosso estudo historico ácerca da Excellente Senhora, ''Rainha sem reino'',—procuramos a todo o custo obter esse livro, para nós desconhecido, cujo titulo nos aguçára a curiosidade e o interesse de possuil-o.
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Um argumento salta desde já aos bicos da penna.
 
Se Carlos {{smaller|III}} tivesse menospresado sua mulher
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/98]]==
pela revelação do segredo dos seus amores com um cavalleiro portuguez, como Herculano deprehende do codice por elle publicado no {{sc|Panorama}}, não haveria decerto manifestado pela morte da duqueza um tão profundo sentimento como aquelle que se traduz pelo facto de haver mandado cunhar não apenas uma só medalha commemorativa—mas duas.
 
A effigie de D. Beatriz, gravada na segunda medalha, é claro que nada póde aproveitar para tirarmos a limpo a côr dos seus olhos. Mas a este respeito basta o testemunho fidedigno, a que já nos referimos, do snr. Miguel Martins Dantas. Em todo caso, a medalha é muito interessante, pois que reproduz, e devemos suppôr que com fidelidade official, as feições da infanta portugueza e a sua ''toilette''.
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{{c|{{x-smaller|III}}}}
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/99]]==
 
Vamos porém á historia do casamento da infanta D. Beatriz de Portugal com Carlos {{smaller|III}}, duque de Saboya.
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O casamento realisou-se no 1.º de outubro de 1521, na igreja dos dominicanos de Niza, lançando a benção nupcial o bispo de Vercelli, Bonifacio Ferrero, que mais tarde se tornou conhecido pelo nome de cardeal de Ivrea.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/100]]==
 
Realisaram-se pomposos festejos publicos, primando entre elles, pelo seu luzimento, o torneio celebrado junto á porta Marina, no qual cavalleiros hespanhoes, portuguezes e italianos quebraram lanças em honra dos augustos esposos.
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Vejamos porém o que diz o texto da {{sc|Memoria}} de Claretta:
 
{{margem esquerda|2em}}«Seguendo ora il racconto del Revelli, narra questo storico che il giorno 29 verso ''le tre ore di notte'' sbarcó la principessa a Villafranca, dove di comandamento del Duca eransi portati per riceverla e complimentarla Lodovico dei Malingri, Gioanni d'Orliè, il vescovo Geronimo d'Arsagis, Onorato Cays ed i consoli seguiti dai primi gentiluomini del paese. L'ora era già avanzata, ''ma pur volle l'infante Beatrice'' la sera medesima recarsi a Nizza traversando il colle di Montalban al chiaror di molte faci, ed assisa su di una sedia soppannata di velluto e d'armellino, sostenuta da quattro gentiluomini portoghesi. Giunta la comitiva ai molini di Riquieri le acclamazioni più vive degli astanti annunziarono l'incontro del Duca,
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/101]]==
il quale era giunto quella sera all'abbazia di San Ponzio e non aveva voluto far l'ingresso nella città prima che fosse arrivata la sposa.»</div>
 
Vão grifadas as expressões que contrariam a versão do codice publicado por Herculano.
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{{margem esquerda|2em}}«... habes uxorem pulcherimam (''ei gli dice'') venustissimamque ut cernere est virtutis lacte et cura ut scimus nutritam (''e questo era vero'') fæcundam ut optamus.»</div>
 
Claretta publíca na integra o epithalamio, tambem latino, que foi recitado pela menina Veronica Leone,
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/102]]==
de quatro annos de idade apenas—''giovinetta di quattro anni''.
 
N'esse epithalamio são grandemente exaltadas a belleza e castidade da infanta D. Beatriz.
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{{margem esquerda|2em}}«Soggiunge il citato storico (Revelli) che i Portoghesi sommarono a ben cinque mila, e che fu cosa ammirabile il vedere tanti ornamenti d'oro, gemme, selle de cavalli com briglie, staffe, speroni e cose simili tutte formate di lame e piastre di puro oro, uccelli ed animali peregrini, quantità incredibile de aromi di specie diversa, in una parola, tutto che di prezioso dall' Africa e dalle Indie, con l'occasione dell' navigazioni alle più remote parti, era stato apportato al re di Portogallo.»</div>
 
Ahi fica mais essa recordação do nosso passado
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/103]]==
esplendor n'um tempo em que a riqueza dos cavalleiros igualava a dos arreios dos cavallos, tudo constellado do ouro e pedrarias, que o descobrimento da India nos permittia exhibir por entre nuvens de exquisitos perfumes orientaes.
 
Segundo Claretta, foi no dia 8 de outubro que os noivos partiram de Niza para o Piemonte.
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A 10 de fevereiro de 1522 expedia Carlos III patente de assentamento, a favor de D. Beatriz, da quantia de nove mil e setecentos florins, com hypotheca sobre diversos rendimentos publicos, e a 22 de abril passava quitação ao rei de Portugal da somma de cento e cincoenta mil ducados, com que a infanta fôra dotada por seu pai.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/104]]==
 
Os duques demoraram-se em Vigone até ao mez de março, recebendo ahi D. Beatriz, por parte do estado do Piemonte, um donativo de cincoenta mil florins, e o duque outro de duzentos mil.
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A scena da ponte, descripta no codice do {{sc|Panorama}}, quando uns cem alabardeiros pozeram as alabardas aos peitos dos portuguezes, que queriam acompanhar a infanta, teria uma explicação inverosimil pela versão de Herculano, visto como o duque não havia ainda regulado a situação financeira de um casamento que tanto lhe convinha e por que tanto instára.
 
Sendo tamanha, como refere Claretta, a multidão de portuguezes que assistiram á recepção da infanta D. Beatriz, explica-se facilmente o acto de violencia praticado pelos alabardeiros como medida prophylatica adoptada pelo duque contra a invasão de uma epidemia que desde longos annos não tinha deixado de fazer grande numero de victimas em Portugal. Póde mesmo ter acontecido que um ou outro caso de peste se houvesse manifestado entre os cinco mil portuguezes que por occasião das festas do casamento se encontravam em Niza, incluindo os marinheiros dos
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/105]]==
dezoito navios que constituiam a frota portugueza. É porém natural que os portuguezes se offendessem com essa precaução, e desfigurassem as intenções de Carlos III tomando-as á conta de descortezes para com a infanta, e de hostis para com elles.
 
As condições hygienicas de Portugal eram realmente deploraveis então. A peste tinha devastado o reino annos antes, e, referindo-se á morte de D. Manuel, diz Garcia de Rezende na ''Miscellania'':
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D. Beatriz tinha sido educada na opulencia e, como era natural, não perdêra facilmente esse habito. Os saboyanos achavam-na altiva, orgulhosa, e criticavam n'ella os costumes de Portugal.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/106]]==
 
O duque, bem ao contrario dos sentimentos que lhe attribue o codice citado por Herculano, transigia com a esposa.
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Desprendida de todos os defeitos de educação, mostrando um espirito desassombrado, como o de quem não está impressionado por a saudade de um amor infeliz, como teria sido o de Bernardim Ribeiro, Beatriz de Portugal principia a cuidar seriamente dos negocios internos do paiz.
 
Logo em 1524 escrevia ao marquez de Pescara
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/107]]==
para que fizesse cessar as violencias que os soldados do imperador Carlos {{smaller|V}}, depois da victoria de Pavia, commettiam no ducado de Saboya com grande vexame para os habitantes. Carlos {{smaller|III}} implorava tambem no mesmo sentido.
 
A 13 d'agosto d'esse mesmo anno, D. Beatriz instava de novo, dirigindo-se ao capitão imperial Fernando d'Alençon para que deixasse de opprimir os povos do Piemonte, em particular os de Borge e Bognolo ''in maniera che li nostri subdicti li quali gia tanto hano patito non seano in tutto ruynati''.
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Mas os vexames, as humilhações continuavam.
 
A 22 de fevereiro, a duqueza energicamente recommendava á communa d'Ivrea que lhe enviasse
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/108]]==
duzentos homens, dos melhores, a fim de policiarem os logares vexados pelos soldados do imperador.
 
Em abril, como continuassem as coisas no mesmo pé, D. Beatriz escrevia ao marquez del Guasto, pedindo-lhe que fizesse retirar as tropas que devastavam Racconigi.
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Em 1524 D. Beatriz dera á luz um filho.
 
Os seus deveres de mãi não a inhibiam comtudo de interferir solicitamente nos negocios politicos do ducado,—com tal zelo, com tal dedicação, que não deixa no nosso espirito sombra de suspeita de que ella, no caso de ter sido amada por Bernardim Ribeiro,
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podesse lembrar-se ainda do infeliz trovador portuguez.
 
O duque de Saboya tinha fixado a sua residencia em Chambery, cujo clima molestava D. Beatriz, nascida e educada nas regiões temperadas do occidente. Além do que, conservando-se no Piemonte, podia Carlos {{smaller|III}} observar de mais perto os acontecimentos da Italia.
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Diz a carta:
 
{{margem esquerda|2em}}«Ma femme. J'ay receu toutes vos lettres par Chasteaufort et par luy entendu de vos nouuelles que me sont a tel aise et plaisir que plus me porrient mesmes vous voyant en bonne santé et les afferez reduitz a souhet dons auons a louer notre seigneur
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et de tant plus quaues heu si bon heurt que de faire vne si belle oeuure au bien et soulagement des subgectz et a votre gros honneur et reputation. Que vous sera succes et accroissement de vertu. Jay ausplus veu vos aduys et vous asseure que estre ces gens entierement vuydes ie ne tarderay a vous aller veoir et cependant ie men vey des demain Annessy car a... se fait le baptesme qui na este retarde que pour attendre les ambassadeurs des ligues et ne fault au demorant quaye nul soucy de ma personne car aidan Dieu elle vos sera conseruee et de notre fils. Je vous asseure quil fait graces a Dieu auquel ie prie qui vous donne ma femme le bien que ie vous desire De Cambery le {{smaller|XVIIII}} jour de juins—Votre bon mary, ''Charles''.»</div>
 
A situação era realmente difficil para Carlos {{smaller|III}}. Precisava um Cyrineu dedicado, e encontrou-o em sua mulher, D. Beatriz de Portugal.
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Citaremos um trecho de uma carta sua, varonilmente energica, escripta ao duque:
 
{{margem esquerda|2em}}«Quant a la ligue de sept cantons suisses quoy que le pape saiche dire ie vous conforte si vous la pouvez conclure a la fere car la nature du marchant n'est que de voir a grandir vos voisins et sa mayson pour ruiner s'il pouvait la votre ou votre etat et tous
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les aultres quelque dissimulation quil face au contraire.»</div>
 
Como se sabe, depois do tratado de Madrid, tão vexatorio para a França, recomeçára a lucta entre Francisco {{smaller|I}} e Carlos {{smaller|V}}.
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Mas era esse o momento em que Carlos {{smaller|V}} devia realisar a definitiva submissão da Italia.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/112]]==
 
Todos os principes d'aquella peninsula rodeiaram o imperador suzerano: Carlos {{smaller|III}}, teve, junto de Carlos {{smaller|V}}, um logar de honra. D. Beatriz offereceu ao imperador uma coberta de leito, do valor de dez mil escudos, e Carlos V presenteou-a, em troca, com quatro vestidos de igual valor.
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N'uma carta ao duque dizia ella:
 
{{margem esquerda|2em}}«Touchant ma despense Monseigneur j ay prins
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le premier payement de ceulx de Cargnan pour contenter partie de ce quest deheu tant seullement du vin et vous plaira nen estre marry vous asseheurant que la crierie et lextremité y estoit plus grosse que je ne vous ay jamais escript...»</div>
 
Parece mais uma carta de uma boa mãi de familia burgueza, informando seu marido, com uma grande dedicação conjugal, do mau estado das finanças domesticas, do que a carta d'uma princeza, bella e joven, dirigida a um marido pobre e ''um pouco azumbado'', como lhe chama o author do codice citado por Herculano.
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{{margem esquerda|2em}}«Mais la difficulté y est quil ny a moyen d'auoir argent por leuer gens pour y enuoyer et sans y fere quelque bonne entreprinse et demonstration de iustice la chose ne peult tomber que a pis.»</div>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/114]]==
 
As circumstancias pecuniarias da côrte de Saboya tornaram-se cada vez mais apertadas, a ponto de não haver dinheiro para pagar aos fornecedores.
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Tendo de receber como hospedes alguns capitães do imperador, que a encontraram em Rivoli e a acompanharam por distincção palaciana até Turim, dizia D. Beatriz ao marido:
 
{{margem esquerda|2em}}«Reste Monseigneur que ie suis assez mal en
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/115]]==
ordre de caddretz dune naugiere potz flascons platz chandelliers et aultre veisselle dargent. Et ne scay si le duc de Millan viene comme le pourray recepuoir a votre honneur et myen. Semblablement nya icy aulcune tappisserie ny donzelletz de soy combien que iay fait accoustrer le chasteau au myeulx que ma este possible.»</div>
 
Nem baixella, nem tapeçaria, nada! A isto estava reduzida uma filha de D. Manuel de Portugal, forçada aliás, pela sua alta posição social, a receber como hospedes os generaes de Carlos {{smaller|V}}.
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Ella propria deu noticia d'este acontecimento a seu marido dizendo-lhe:
 
{{margem esquerda|2em}}«...
{{margem esquerda|2em}}«... et le commancement du debat a tyrer les epes ont este les vallets de sorte quy sont venus aus meytres tant quy ly auet byen synt sans espes desgenes dedans le glisse et de sorte quy la faglu layser de dyre ma messe pour me retirer et jey heu peur pour ce que ''tous me disoynt que je retyrasse mon fys cuydant quy fut este fet tout espres totefoys ce na este synon chosse quy tochet a tus memes''...»</div>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/116]]==
et le commancement du debat a tyrer les epes ont este les vallets de sorte quy sont venus aus meytres tant quy ly auet byen synt sans espes desgenes dedans le glisse et de sorte quy la faglu layser de dyre ma messe pour me retirer et jey heu peur pour ce que ''tous me disoynt que je retyrasse mon fys cuydant quy fut este fet tout espres totefoys ce na este synon chosse quy tochet a tus memes''...»</div>
 
Quando a gente deletrea á luz d'esta realidade cruel a biographia de D. Beatriz de Portugal, como que sente em torno de si um esvoaçar de aves que fogem amedrontadas, para não mais voltar.
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Emquanto Carlos {{smaller|III}}, que continuava no Piemonte, via escapar-se-lhe das mãos a alliança dos genovezes, a duqueza de Saboya, esposa dedicada, estremecia de cuidados pela saude do duque: «... quil vous plaise ne trauailler tant votre personne que tomberiez en aulcune malladie car le plus gros malheur qui sceust venu et a vos enfants seroit qui fussiez mal desposé.»
 
N'uma outra carta da duqueza ha ainda um trecho mais expressivo do seu carinho conjugal: «... si devan lundy ie nen ay nouuelles je deslivre me mectre en chemin que ne sera encoures bien au long
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iusquez ie soie aupres de vous ''quest la chose que plus ie desire en ce monde''.»
 
Se não recebesse noticias, que a tranquillisassem, a respeito da saude do duque, D. Beatriz dar-se-ia pressa em partir para reunir-se ao marido, pois que era essa a felicidade que mais desejava n'este mundo.
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D. Beatriz de Portugal, que, de longe, acompanhava todas as questões politicas em que o marido se via lançado, revelava o heroismo do seu animo apoiando o conselho com resoluta firmeza: «le vrai expedient et moyen de vostre affere et ni ayez respect ni regard a personne ni a chose du monde.»
 
Uma dama de tão rija tempera, como D. Beatriz se mostrou em Saboya, não só nos negocios politicos,
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mas tambem nos domesticos, não menos apertados e difficeis, se se houvesse apaixonado por Bernardim Ribeiro, se tivesse acceitado os galanteios do famoso trovador portuguez, haveria tido a coragem de resistir a todas as vicissitudes que combatessem os designios do coração amoroso.
 
Ao contrario de sua mulher, Carlos {{smaller|III}}, sempre vacillante, continuava hesitando entre a França e a Hespanha, entre Francisco {{smaller|I}} e Carlos {{smaller|V}}.
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Todavia as circumstancias eram de geito para entibiar qualquer animo menos forte que o de D. Beatriz de Portugal.
 
Longe do marido, soffrendo pela saude e pela situação politica d'elle continuados sobresaltos; luctando com a falta de recursos pecuniarios cada vez mais aggravada; tendo perdido seu filho Luiz, que expirára em Hespanha, na companhia de Carlos {{smaller|V}}, em dezembro de 1536; compromettida, no anno seguinte, a sua delicada saude pelo extremo estado de gravidez em que se encontrava; D. Beatriz de Portugal luctára, emquanto pudera, com animo varonil e esforçado, mas, presentindo a morte, que se avisinhava,
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preparou-se serenamente para a viagem eterna, ditando as suas disposições testamentarias.
 
Era, nas circumstancias em que se encontrava, uma princeza pobre.
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O testamenteiro nomeado por D. Beatriz foi Francisco de Carvalho, embaixador portuguez junto á côrte de Saboya.
 
A duqueza déra á luz uma creança do sexo masculino, que recebeu o nome de João Maria. Mas a
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saude de D. Beatriz estava de tal modo damnificada, a sua fraqueza era tamanha, que rendeu a alma ao Creador no dia 8 de Janeiro de 1538.
 
O duque não assistiu ao passamento de D. Beatriz; o duque, a quem ella ''sempre cosi teneramente aveva amato'', diz Claretta. Sendo informado do perigo que corria a vida da duqueza, Carlos {{smaller|III}} dera-se pressa em partir para Niza, mas foi no caminho, em Genova, que recebêra a fatal noticia.
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Aqui fica pois reconstruida, graças á monographia de Claretta, a vida da infanta D. Beatriz depois que sahiu de Portugal.
 
É o proprio Claretta quem confessa que a duqueza
É o proprio Claretta quem confessa que a duqueza de Saboya tem sido apreciada por modos diversos; mas a sua opinião exalça-lhe a memoria. Notando que Brantome faz referencia á altivez de D. Beatriz, diz que, tendo a duqueza seguido a causa de Hespanha, este facto explica o resentimento de Brantome. Dueros, na sua {{sc|Histoire d'Emmanuel Philibert}}, explica essa altivez pela firmeza de caracter, que contrastava com a indecisão do marido, e entende que D. Beatriz deve ser collocada a par das mulheres fortes que a historia celebra.
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de Saboya tem sido apreciada por modos diversos; mas a sua opinião exalça-lhe a memoria. Notando que Brantome faz referencia á altivez de D. Beatriz, diz que, tendo a duqueza seguido a causa de Hespanha, este facto explica o resentimento de Brantome. Dueros, na sua {{sc|Histoire d'Emmanuel Philibert}}, explica essa altivez pela firmeza de caracter, que contrastava com a indecisão do marido, e entende que D. Beatriz deve ser collocada a par das mulheres fortes que a historia celebra.
 
Hoje, conhecidos os importantes documentos que Claretta deu á estampa, a lenda d'essa paixão contrariada, em que D. Beatriz e Bernardim Ribeiro durante tantos annos figuraram como victimas, recebeu por certo mais um golpe.
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E, se por hypothese, D. Beatriz se soube algum dia amada de Bernardim Ribeiro, a noção do dever apagou completamente no seu coração a recordação d'esse amor infeliz. Seria, n'esse caso, um idyllio que tivera a duração de um meteoro, e cujas proporções a historia, rigorosamente descarnada, não póde avultar.
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A nossa convicção, pelos factos que longamente indicamos, é que a tradição dos amores de Bernardim Ribeiro e D. Beatriz pertence aos dominios da lenda; que se alguma paixão vehemente infernou a existencia do poeta da {{sc|Menina e Moça}}, não foi D. Beatriz que a inspirou; mas não achamos sufficientes os elementos até agora apurados para nos determinarmos pela opinião de Varnhagem ou pela opinião do snr. Theophilo Braga, quanto ao nome da dama que deve occupar o lugar em que a lenda collocou, no coração do poeta, a infanta D. Beatriz.
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==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/123]]==
 
<span id="chapIV">{{c|{{larger|IV}}}}
 
{{c|{{larger|'''Rei e Pastor'''}}}}
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/124]]==
Rei e Pastor'''}}}}
 
{{margem esquerda|2em}}«O rei James V, que morreu de trinta e tres annos em 13 de dezembro de 1542, era um joven rei, tunante e maganão, que se disfarçava em trajos de mendigo, de adello, ou que taes, para andar correndo baixas aventuras pelas aldeias ou pelos bairros escusos das cidades.»
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Grinaldas e festões, cantando uma canção
Em que menos cantava a voz que o coração.
</poem>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/125]]==
<poem>
 
Assim tambem se eleva o cantico suave
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{{c|{{x-smaller|II}}}}
 
{{margem esquerda|10%}}<poem>Era o rei James V um joven rei feliz,
</poem>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/126]]==
<poem>
Era o rei James V um joven rei feliz,
Que de lendas de amor encheu todo o paiz
Da sua bella Escocia, alcantilada e fria,
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{{brecha|9.10em}}—«Sou pobre, bem sabeis.
Ninguem rouba á pobreza. Ella de si é escassa.»
—«
—«Excepto quando é o rei que n'estes sitios passa...»
</poem>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/127]]==
<poem>
Excepto quando é o rei que n'estes sitios passa...»
—«Piedade!»
{{brecha|3.50em}}E o louco rei, sem resposta volver,
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<span id="chapV">{{c|{{larger|V}}}}
 
{{c|{{larger|'''Mãi e Filhos'''}}}}
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/128]]==
Mãi e Filhos'''}}}}
 
 
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Não vão suppôr que me estou dando ares de poeta funebre da realeza ou de philosopho merencorio dado a scismar no problema da morte: ''to be or not to be''. Nada d'isso. Sou apenas um ''dilettante'' de estudos historicos; tenho por vezes o mau gosto de preferir os dramas do passado aos do presente, e as epopêas da historia ás ''partituras'' de S. Carlos.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/129]]==
 
Sabendo que se tratava de remover para S. Vicente de Fóra os restos mortaes da rainha D. Luiza de Gusmão, e que o feretro ia ser aberto para se verificar se havia sido violado como constava ás justiças da Boa Hora, não quiz perder a occasião de examinar por meus proprios olhos os ultimos despojos d'essa notavel dama do seculo {{smaller|XVII}}, tão energica junto de seu marido, tão resoluta na fragilidade do seu sexo, mas tão sincera na firmeza da sua justa ambição.
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A abundancia de altares—pois vimos n'um a designação de 193—denuncía que o culto era alli fervoroso, e que não se podia dar um passo no interior do convento sem ter diante dos olhos a imagem de um santo, de uma santa ou do Redemptor.
 
Mas os nichos dos altares estão vazios, as imagens e as reliquias desappareceram; conventoconve
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/130]]==
nto e igreja foram brutalmente despojados; diz-se que até o sino, apesar do campanario ser alto, desapparecêra!
 
A rainha D. Luiza de Gusmão, afastada duramente da côrte pelos conselheiros de seu filho D. Affonso {{smaller|VI}}, acabou por decidir-se a entrar n'aquelle convento, mas nada ha alli que denuncie grandeza de aposentos reaes. Pareceu-nos que esses aposentos seriam uns que ficam voltados ao Tejo—por serem um pouco melhores do que os outros—constando de uma sala com chaminé e uma pequena cella, contigua á sala, da qual recebe luz por uma janella interior.
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Mas, em compensação, a igreja, comquanto não seja grande, é boa, coberta de azulejos de valor e de quadros, hoje completamente estragados pela humidade. A teia do cruzeiro é magnifica, de ébano e mosaico florentino, com as armas de Portugal e da casa de Medina-Sidonia.
 
Era dentro da teia que estava o caixão da rainha, coberto com um rico panno, deteriorado pelo tempo, e
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encimado pela corôa real, sobre almofada de estofo igual ao do panno.
 
Levantada esta cobertura com as formalidades judiciaes que o acto exigia, reconheceu-se que o caixão, de pau Brazil, excellentemente conservado, tinha sido violado nas fechaduras lateraes, pelo menos em duas que estavam encravadas com pregos de arame.
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Da energica e virtuosa rainha de outro tempo restava apenas aquillo!
 
A renda do véo dava a illusão, como já disse, de que a testa da rainha era de uma estreiteza simiana, quando em verdade D. Luiza de Gusmão, como se sabe pelo retrato existente na Bibliotheca Nacional de Lisboa, reproduzido por Benevides nas {{sc|Rainhas de Portugal}}, fôra uma bonita mulher, de feições
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/132]]==
muito regulares: testa espaçosa, olhos grandes e pretos, bocca pequena, rosto redondo.
 
O que nós hoje podêmos apenas estranhar n'esse retrato são as exaggeradas dimensões dos ''bandeaux'', que eram moda n'esse tempo, sendo costume adornal-os com marabuths e estrellas de pedras preciosas.
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«En la villa de Huelva, jueves veinte y quatro dias del mes de octubre, año de Nuestro Salvador Jesu Christo de mil y seiscientos y trece años, yo el Lic. Diego Muniz de Leon, Visitador General del Arzobispado de Sevilla, baptizé á la señora Doña Luiza Francisca, hija del señor D. Manoel Alonso Perez de Guzman el Bueno, y de la señora Doña Juana de Sandoval, condes de Niebla: fué su padrinho el señor D. Gaspar Alonso Peres de Guzman el Bueno, Marqués de Casaza, y le adverti la cognacion espiritual, y lo firmé: fecho ut supra.—Lic. Diego Muniz de Leon.»</div>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/133]]==
 
Por este documento fica rectificado o nome do pai de D. Luiza de Gusmão, que o snr. Benevides diz chamar-se João Manuel Peres de Gusmão.
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A historia fornece-nos sobejas provas de que D. Pedro {{smaller|II}} não sabia respeitar melhor do que seu irmão os vinculos de familia.
 
O bispo do Porto D. Fernando Corrêa de Lacerda
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/134]]==
diz na {{sc|Catastrophe}} que o rei e o infante acompanharam o cadaver da mãi até ao coche funebre:
 
{{margem esquerda|2em}}«Na segunda feira se dispozeram os funeraes com religiosa, e decente pompa, e á terça á noite depois d'el-rei e S. A. lançarem agua benta ao cadaver, e o acompanharem á liteira, foi levado á igreja do mosteiro do Sacramento de religiosos Carmelitas Descalços, que havia edificado, d'onde se sepultou por deposito, até se acabar a igreja das religiosas Descalças da recolecção de Santo Agostinho, de que era fundadora, na qual tinha mandado escolher a ultima sepultura.»</div>
Linha 1 629 ⟶ 1 848:
 
O auctor das {{sc|Monstruosidades do tempo e da fortuna}}, qualquer que seja, diz que nenhum dos filhos lhe assistiu, supposto chegassem uma hora antes da rainha expirar, ''por estorvados de quem sabia que os conselhos d'aquella hora, como mais desenganados, são fielmente cridos e ficam na memoria mais estampados''.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/135]]==
 
A verdade deve estar no meio termo: os dois filhos importaram-se pouco com a morte da rainha, quer lhe deitassem agua benta quer não.
Linha 1 637 ⟶ 1 857:
 
 
{{c|{{x-smaller|II}}}}
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/136]]==
II}}}}
 
{{c|'''A faca do marquez de Cascaes'''}}
Linha 1 658 ⟶ 1 880:
 
É preciso não ter... alma!
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/137]]==
 
Vai o marquez, e diz:
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Fizesse-se assim sempre, e em tudo, e as coisas iriam melhor...
 
Sabe a gente estes e outros factos, que testemunhas contemporaneas deixaram memorados; sem embargo,
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/138]]==
D. Affonso {{smaller|VI}} tem uma tradição galante, de aventuras amorosas... armadas no ar como os castellos de Hespanha.
 
Eu sei que me corre o dever de ser mais discreto do que a historia. Sei isso. Não irei revolver as monstruosidades escandalosas da nullidade do casamento de D. Affonso {{smaller|VI}}. Nada d'isso. Procurarei apenas, na vida do successor de D. João {{smaller|IV}}, o que possa haver de contavel em materia de galanteria com mulheres.
Linha 1 698 ⟶ 1 923:
 
{{margem esquerda|2em}}«Acabado o dia soube a rainha que em uma janella do Paço estivera vendo a festa uma mulher conhecida tanto pelo nome, como pela vida, celebrada pela alcunha de ''Calcanhares'', sustentada para feitiço de sua magestade.»</div>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/139]]==
 
A este simples periodo de um manuscripto do seculo {{smaller|XVII}} foi o snr. Corvo buscar habilmente todos os magnificos episodios a que, no seu romance, a ''Calcanhares'' serve de pretexto.
Linha 1 715 ⟶ 1 941:
Este monarcha não tinha papas na lingua, e por isso não estranhou a descompostura, núa e crúa, que lhe pregou o marquez de Cascaes.
 
Eu possuo um livro precioso como subsidio para a historia do reinado de Affonso {{smaller|VI}}. Intitula-se {{sc|Vita di Maria Francesca di Savoia-Nemours, regina di Portogallo, per il barone Gaudenzio Claretta}}.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/140]]==
O meu exemplar, comprado no espolio do visconde de Borges de Castro, é ricamente encadernado, e tem uma dedicatoria do proprio author.
 
Pois ahi, a pag. 100, lê-se esta passagem, referente ao rei:
Linha 1 730 ⟶ 1 958:
 
Umas d'estas freiras era D. Anna Angelica de Moura, conhecida em Odivellas pela alcunha galante de ''Flôr do Sol''.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/141]]==
 
«Tomou el-rei amizade illicita com D. Anna de Moura, freira de Odivellas; fazia-lhe continuas assistencias com grande indecencia, e geral reprovação de toda a côrte. O dia em que D. Anna de Moura fazia annos, foi el-rei tourear no pateo de Odivellas: deu uma grande queda, de que esteve sangrado, fazendo-lhe D. Anna de Moura a fineza de se sangrar tambem, lhe mandou um grande presente, e quando a tornou a vêr, lhe disse que desejava fazel-a rainha de Portugal.» ({{sc|Vida d'elrei D. Affonso vi}}, publicada por Camillo Castello Branco, e attribuida ao duque de Cadaval).
Linha 1 751 ⟶ 1 980:
</poem></div>
 
Decididamente: não ha nada novo n'este mundo.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/142]]==
O caso está em saber a gente onde os outros foram fazer mão baixa.
 
Ora havia em Odivellas outra freira, que D. Affonso {{smaller|VI}} deixou para fazer a côrte a D. Anna de Moura.
Linha 1 781 ⟶ 2 012:
Anna deidade parece,
Feliciana ''de idade''.
</poem>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/143]]==
<poem>
Deixai pois essa vaidade
porque a todos nos enfada,
Linha 1 813 ⟶ 2 047:
 
{{c|{{x-smaller|III}}}}
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/144]]==
 
{{c|'''A filha de D. Luiza de Gusmão'''}}
Linha 1 824 ⟶ 2 059:
«O snr. Mac-Murdo entendeu que devia presentear com essa tela historica el-rei de Portugal, e pediu-lhe licença para lh'o offerecer. Hontem o snr. Levis, ministro dos Estados-Unidos em Lisboa, devia ter entregado na Ajuda a el-rei D. Luiz a preciosa dadiva do seu compatriota.
 
«Dizem que este retrato, magnifico e muito bem conservado, desmente a lenda da fealdade da mulher de Carlos {{smaller|II}}, lenda que se fazia correr talvez para desculpar as numerosas infidelidades conjugaes do
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/145]]==
amante da duqueza de Portsmouth. A rainha D. Catharina, tal como o retrato a apresenta, sem ser uma formosura, é todavia uma gentil senhora, sobretudo com uma grande expressão de bondade.»</div>
 
''Sem ser uma formosura'', diz o texto da noticia, não era comtudo D. Catharina de Bragança, rainha de Inglaterra, uma dama despicienda, segundo o retrato feito por um pintor inglez contemporaneo.
Linha 1 835 ⟶ 2 072:
 
O que é certo é que o casamento custou a realisar-se, e que Portugal, para vêr no throno inglez a filha de D. João {{smaller|IV}}, teve que desapossar-se, effectivamente, de Tanger, que não aproveitou muito aos inglezes, e de Bombaim, de que elles vieram a fazer uma das primeiras cidades do mundo.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/146]]==
 
A infeliz princeza não tirou, porém, d'esse casamento as vantagens que se esperavam. Viveu humilhada pelas leviandades amorosas de Carlos {{smaller|II}}, preterida pelas amantes do rei, especialmente pela condessa de Castlemaine, e, guerreada pelos protestantes, chegou a ser accusada de querer envenenar o marido.
Linha 1 850 ⟶ 2 088:
Villasboas, na sua qualidade de poeta, tomou a liberdade, que n'essa qualidade lhe era permittida, de celebrar D. Catharina como um sol de belleza, uma maravilha de formosura.
 
Disse uma vez um notavel homem politico do nosso paiz que todas as princezas eram formosas. O poeta Villasboas justifica plenamente esta espirituosa affirmação. Ninguem dissera nunca que D. Catharina fosse uma dama formosa, nem mesmo o proprio retrato,
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/147]]==
que apenas põe em evidencia ''uma grande expressão de bondade''. No {{sc|Peveril of the Peak}}, de Walter Scott, a rainha, que atravessa os ultimos capitulos d'este romance, resalta com essa mesma expressão de bondade, annuveada de melancholia. Mas Antonio de Villasboas não se prendeu com estas pequenas teias de aranha, e saudou em D. Catharina de Bragança a oitava maravilha do mundo, quanto a belleza.
 
Oiçamol-o:
Linha 1 868 ⟶ 2 108:
''Não em tudo, que a elle lhe faltava''
''Da bella infanta a graça e bisarria'':
</poem>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/148]]==
<poem>
De noite co'as estrellas conversava,
E de todo o meu siso lhe dizia:
Linha 1 893 ⟶ 2 136:
{{sc|Festas reaes na côrte de Lisboa}} ''ao feliz casamento dos reis da Grã-Bretanha Carlos e Catharina em os touros que se correram no Terreiro do Paço em outubro de 1661. Dedicadas a Europa Princeza da Phenicia e escritas por Izandro, Aonio e Luzindo, toureiros de forcado. Em Lisboa, 1661.''
 
{{sc|Epithalamio}} ''aos augustos desposorios de Carlos
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/149]]==
II e a Senhora D. Catharina, Reys de Inglaterra, por Antonio Raposo, natural de Aviz''. Em verso heroico.
 
Como se vê, os poetas não tiveram mãos a medir por occasião d'este casamento realengo.
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É o mesmo padre, sempre com ''pello'' e sempre ''cappellão''—com dobrada.
 
{{sc|Relaçam}} ''das festas de palacio, e grandezas de Londres, dedicada á magestade da serenissima rainha de Gran-Bretanha. Londres, 1663''.
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, 1663''.
 
É ainda padre Sebastião o author.
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«A nova rainha em nada augmentou o brilho do palacio, nem pela sua presença, nem pela sua comitiva. O sequito da rainha compunha-se da condessa de Panetra, na qualidade de açafata; de seis monstros, que se diziam damas de honor, e de uma aia, outro monstro, que se inculcava governanta d'estas raras beldades.
 
«Os homens eram: Francisco de Mello, irmão da
«Os homens eram: Francisco de Mello, irmão da Panetra; um certo Taurauvédez, que se appellidava D. Pedro Francisco Correo da Silva, feito ao pintar, mas só elle mais tolo do que todos os portuguezes juntos. Era mais altivo do seu nome que da sua boa figura; ora o duque de Buckingham, ainda mais tolo do que elle, e mais zombeteiro, atrambolhou-lhe a alcunha de ''Pierre du Bois''. O pobre Correo da Silva indignou-se a tal ponto que, depois de muitas queixas inuteis e algumas ameaças sem effeito, teve que deixar a Inglaterra, ao passo que o feliz duque de Buckingham herdava d'elle uma nympha portugueza, que lhe tinha roubado, bem como dois dos seus appellidos, a qual nympha era ainda mais horrorosa que as damas da rainha. Completavam o sequito seis capellães, quatro padeiros, um perfumista judeu, e um certo official, apparentemente sem funcção, que se denominava o barbeiro da infanta ''(sic)''. Catharina de Bragança não se preoccupou de brilhar na côrte encantadora onde vinha ser rainha, se bem que mais tarde conseguisse evidenciar-se algum tanto. O cavalheiro de Grammont, desde longo tempo conhecido da familia real e da maior parte dos homens da côrte, não teve mais do que fazer conhecimento com as damas. Para isso não lhe era preciso interprete. Ellas fallavam o bastante para explicar-se, e entendiam o francez preciso para comprehenderem o que se lhes dizia.
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Panetra; um certo Taurauvédez, que se appellidava D. Pedro Francisco Correo da Silva, feito ao pintar, mas só elle mais tolo do que todos os portuguezes juntos. Era mais altivo do seu nome que da sua boa figura; ora o duque de Buckingham, ainda mais tolo do que elle, e mais zombeteiro, atrambolhou-lhe a alcunha de ''Pierre du Bois''. O pobre Correo da Silva indignou-se a tal ponto que, depois de muitas queixas inuteis e algumas ameaças sem effeito, teve que deixar a Inglaterra, ao passo que o feliz duque de Buckingham herdava d'elle uma nympha portugueza, que lhe tinha roubado, bem como dois dos seus appellidos, a qual nympha era ainda mais horrorosa que as damas da rainha. Completavam o sequito seis capellães, quatro padeiros, um perfumista judeu, e um certo official, apparentemente sem funcção, que se denominava o barbeiro da infanta ''(sic)''. Catharina de Bragança não se preoccupou de brilhar na côrte encantadora onde vinha ser rainha, se bem que mais tarde conseguisse evidenciar-se algum tanto. O cavalheiro de Grammont, desde longo tempo conhecido da familia real e da maior parte dos homens da côrte, não teve mais do que fazer conhecimento com as damas. Para isso não lhe era preciso interprete. Ellas fallavam o bastante para explicar-se, e entendiam o francez preciso para comprehenderem o que se lhes dizia.
 
«A côrte era sempre numerosa junto da rainha; junto da princeza era menor, comquanto fosse mais escolhida.»</div>
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Esta narração carece de rectificações.
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{{sc|Oraçoens gratulatorias}} ''na feliz vinda da muita alta e muito poderosa rainha da Gram Bretanha, compostas e recitadas na igreja da Divina Providencia á nobreza de Portugal nas trez ultimas tardes do mez de janeiro de 1693 pelo padre D. Raphael Bluteau. Lisboa, 1693''.
 
Seis annos depois, apparecia um folheto em latim, {{sc|Agilulphus}}, impresso em Evora, cujo argumento é
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o seguinte: Agilulfo, rei da Lombardia, idólatra e perseguidor dos christãos, feito christão pelas orações e industria de sua esposa, a rainha Teodolinda.
 
Este opusculo allude ao passamento de Carlos {{smaller|II}}, que, como conta Macaulay na sua ''History of England'', morreu reconciliado com a igreja catholica, graças á piedosa intervenção da rainha e do conde de Castel-Melhor.
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<span id="chapVI">{{c|{{larger|VI}}}}
 
{{c|{{larger|'''Tradição galante de D. Miguel'''}}}}
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galante de D. Miguel'''}}}}
 
 
Toda a gente tem mais ou menos ouvido contar aventuras amorosas do rei D. Miguel de Bragança. Chamo-lhe rei porque de facto, senão de direito, o foi. Escrevem falsa historia os authores de compendios que na lista dos reis portuguezes supprimem o nome de D. Miguel, por o considerarem rei intruso. Mas os tres Filippes, tambem intrusos, não deixam de apparecer em todos os compendios de historia elementar. Nós temos cá esta especie de critica, e já agora havemos de ir assim. Mas o que importa ao nosso proposito é dizer que as aventuras amorosas de D. Miguel, mais ou menos conhecidas de toda a gente, não deixam este rei n'um plano inferior aos seus collegas em absolutismo os galantes Henrique {{smaller|IV}}, Francisco {{smaller|I}}, Luiz {{smaller|XIV}} e Luiz {{smaller|XV}}.
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Fico por aqui para não desdobrar um estendal de nomes... estrangeiros. N'isto é que eu sou patriota.
 
Ha meio seculo apenas, raro principe sahia lettrado. A educação, vasada ainda tradicionalmente nos moldes medievaes, tendia a fazer d'elles mais homens do que sabios. É certo que, mesmo entre nós, D. Diniz, D. João {{smaller|I}} e D. Duarte cultivaram as lettras, mas só de passagem. E assim aconteceu até ao tempo em que floresceram os filhos d'el-rei D. João {{smaller|VI}}. Equitação, caça, jogo de armas, alguma musica, e pouco mais como prendas de educação. Ora D. Miguel foi educativamente modelado á feição e similhança dos seus antecessores. Sahiu, pois, completamente, um principe do seu tempo.
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As mulheres, sentindo a correria doida d'um cavallo, vinham á janella para vêr passar D. Miguel, que era joven, bem posto, e rei absoluto. Rei absoluto! A personificação viva de todo o poder terreno, emanado do poder divino! Era para deslumbrar os homens, quanto mais as mulheres!
 
Muitas trovas populares fallam ainda hoje da
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belleza de D. Miguel de Bragança, conservando através dos tempos um como rescaldo do enthusiasmo popular com que o endeusavam:
 
{{margem esquerda|10%}}<poem>O senhor D. Miguel,
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Fôra n'uma d'essas correrias doidas, não a cavallo, mas em trem, que D. Miguel déra uma queda no dia 9 de novembro de 1828. Esse desastre, de que resultou para o rei fractura d'uma perna, foi, segundo uma versão vulgarisada, a origem de se dar a alcunha de ''malhados'' aos constitucionaes, porque as mulas infieis que tiravam a carruagem eram malhadas.
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Sem embargo, encontrei outra versão, que é pouco conhecida, para não dizer desconhecida. É o caso de repetir: ''Se non é vero, e bene trovato''. Achei-a no livro {{sc|Don Miguel}}, ''ses aventures scandaleuses, ses crimes et son usurpation, par un portugais de distinction; traduit par J. B. Mesnard. Paris, 1833''.
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Ha em Braga uma escadaria de pedra, que do Campo Novo sobe para a ermida da Senhora de Guadalupe, dividida por patamares, mas altissima e extensa.
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Diz a tradição bracharense que n'um dos predios lateraes d'aquellas escadas vivia uma mulher galanteada pelo rei, e que D. Miguel, em 1832, quando de Lisboa sahira para Braga, ia todas as tardes vêl-a, subindo e descendo as escadas a cavallo.
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D. Miguel primeiro!
</poem></div>
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E toda a pena das mulheres do Minho era não serem soldados, não serem granadeiros,
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—''Ah! dame! quand on monte à âne, il faut être en état d'en tomber.''
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Não me demorarei pela decencia devida aos leitores de menor idade, e aos outros, em considerações philosophicas relativamente á estopa das damas e ao fogo do rei.
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Com o auxilio do snr. Pamplona, official da bibliotheca da Academia e perito germanista, pude verificar que eu tinha diante dos olhos o original allemão, cuja traducção franceza possuia.
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Restava saber quem era o allemão, G. de E., ''testemunha ocular'', qualidade com que elle proprio se abonava.
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Estava com licença na Allemanha, quando morreu em Wolfsanger, no dia 1 de fevereiro de 1855.
 
D. Miguel sae das mãos do barão de Eschwege com a figuração de um monstro sanguinario, que se refocillava na perpetração de atrocidades selvagens.
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Outras testemunhas oculares fornecem depoimentos que podem servir de contestação a este. Guilherme de Eschwege era um ferrenho adversario de D. Miguel de Bragança e, para nol-o pintar horrendo de alma, deixa em silencio os actos que podem igualmente deslustrar o caracter de D. Pedro. Escreveu quando D. Miguel reinava em Portugal, isto é, escreveu para combatel-o como adversario irreconciliavel. É preciso que esta consideração entre em linha de conta.
 
Mas que subsidio nos póde fornecer o seu livro para uma ligeira monographia sobre a tradição galante de D. Miguel?
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Diz-nos que D. Miguel não teve como rei nem como infante uma favorita, posto que em Vienna d'Austria se pensasse que a tivera. ''Gosta muito de variar, o que não pouco contribuiu para o engrandecimento do visconde de Queluz.'' São palavras do opusculo. Depois Eschwege conta que o visconde de Queluz fôra barbeiro, e que n'essa qualidade assistira ás enfermidades secretas de D. Miguel.
 
Noticía que as damas abundavam na côrte, durante os annos em que D. Miguel reinára; que nos serões do paço se faziam representações, n'uma das quaes o rei desempenhára o papel de D. Quichote, e
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que outras noites se organisavam jogos de prendas, sendo sempre D. Miguel quem ''sentenciava'', e sendo muito seu predilecto o castigo de dar palmatoadas.
 
Esta pena da palmatoria, aliás usada ainda hoje nos serões de provincia em que os jogos de prendas florescem, não constitue decerto uma das provas mais eloquentes e ponderosas para acreditar nos instinctos sanguinarios de D. Miguel de Bragança.
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Conta que D. Miguel dava duas recepções por semana, uma aos homens, outra ''ás damas''. Estranha que de joelhos lhe beijassem a mão, mas informa que a concorrencia ás recepções era tamanha, que algumas vezes houve conflictos á porta. Esta accusação tambem me não parece capital. As damas e os cavalheiros queriam beijar a mão do senhor D. Miguel, e elle dava-lh'a a beijar. Quem corre por gosto não cansa. É mesmo possivel que o rei alguma vez retribuisse beijo por beijo. Que monstruosidade é esta?!
 
De D. Miguel infante refere uma aventura vulgarissima com uma franceza da rua ''des Vieilles-
De D. Miguel infante refere uma aventura vulgarissima com uma franceza da rua ''des Vieilles-Étuves'' em Paris. Esta mulher tinha uma vida tão aventurosa quanto escandalosa, e o infante, que não devia ficar extremamente encantado com a boneja, que era feia, pediu-lhe que reduzisse a escripta a autobiographia com que lhe prendera a attenção. A franceza annuiu ao pedido, que o infante provavelmente remunerou, e o autographo foi subtrahido em Vienna aos papeis de D. Miguel, como consta de uma nota. O facto denunciado é vulgarissimo na vida dos principes e dos outros; mas a subtracção de um papel particular, que andava na bagagem de um principe moço, não me parece grandemente abonatoria da seriedade de quem a praticou. D. Miguel, que restituiu á corôa portugueza as joias que usofruiu, não presumia decerto que lhe roubariam as memorias de uma rameira, escriptas por ella mesma, não podendo valorisar-se como joias nem a escriptora nem as memorias.
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Étuves'' em Paris. Esta mulher tinha uma vida tão aventurosa quanto escandalosa, e o infante, que não devia ficar extremamente encantado com a boneja, que era feia, pediu-lhe que reduzisse a escripta a autobiographia com que lhe prendera a attenção. A franceza annuiu ao pedido, que o infante provavelmente remunerou, e o autographo foi subtrahido em Vienna aos papeis de D. Miguel, como consta de uma nota. O facto denunciado é vulgarissimo na vida dos principes e dos outros; mas a subtracção de um papel particular, que andava na bagagem de um principe moço, não me parece grandemente abonatoria da seriedade de quem a praticou. D. Miguel, que restituiu á corôa portugueza as joias que usofruiu, não presumia decerto que lhe roubariam as memorias de uma rameira, escriptas por ella mesma, não podendo valorisar-se como joias nem a escriptora nem as memorias.
 
Refere o opusculo outra aventura do infante D. Miguel em Paris, e esta é mais consentanea á sua indole de principe estouvado e desenvolto.
 
Deu-se o caso com uma capellista da rua ''des Fossés-Saint-Germain''. A franceza era encantadora: ''charmante'', diz Mesnard. D. Miguel, não fazendo reparo ou não se temendo de um sujeito que estava á porta, e que era o amante da capellista, quiz, como pretexto para demorar-se, que ella ''deitasse a loja abaixo'', que lhe mostrasse muitas das mercadorias guardadas nos armarios. A franceza trepou ao balcão para descer um pacote, e o infante beliscou-a ou
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palpou-a. A capellista gritou, e o amante sovou D. Miguel, que teve de recolher-se ao leito no ''Hotel Meurice'', onde se havia hospedado.
 
Isto sim, isto é verosimil e concorda com outra aventura que D. Miguel praticára, quando já desthronado, em Roma, e que logo contaremos.
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Duas mulheres e um official pereceram no incendio, e D. Miguel, cujo fato ficára queimado, correu grande risco.
 
Não serei eu que prodigalise elogios á patuscada e ao ''punch'', se bem que honestos varões (já não direi o mesmo das donas concomitantes) teem, com o
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baptismo do ''punch'', sahido excellentes maridos. Mas tambem não lançarei á conta das responsabilidades de D. Miguel o desastre da mesa e a coincidencia de haver palha em baixo quando elles comiam em cima.
 
Aqui está o que pudémos obter da collaboração de tres homens: o barão de Eschwege, J. B. Mesnard e Barreto Feio.
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Não vou inventar um caso, mas unicamente apoiar-me n'uma pagina das {{sc|Noites parisienses}}, de Méry, que, para maior escrupulo, traduzirei quanto possivel acostado ao texto.
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Eis-aqui a narrativa do primoroso estylista francez:
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«Era a 20 de março, domingo da paixão, ''vide'' calendario: que paixão dominava D. Miguel? N'esse dia estava elle na tribuna, visinha do tumulo de Paulo {{smaller|II}}, perto do sarcophago onde dorme essa mulher divina que tanto inglez haveria desposado, se estatuas de marmore podessem desposar-se. D. Miguel, principe catholico, dava pouquissima attenção ao evangelho dominical, e devorava com o olhar madame Aldobrandini Borghese, joven huguenote que exhibia os seus encantos acirrantes aos olhos dos cantores effeminados da capella Sixtina. O papa Gregorio {{smaller|VII}} officiava sob o baldaquino de bronze, fronteiro ao tumulo de S. Pedro; os peregrinos beijavam o pé de Jupiter Stator, transformado em principe dos apostolos, segundo a metamorphose do raio em chaves; D. Miguel não via senão madame Aldobrandini.
 
«Ah! não conheceis esta mulher, cujo nome lêdes! Roma inteira se namorou d'ella! Figurai-vos a Venus
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do museu secreto de Napoles; mas com am pé a mais, cabellos loiros, e uns contornos capazes de fulminarem os Sátyros nos bosques. D. Miguel ardia; escutava o ruge-ruge do setim inglez, e esse ''duo'' voluptuoso que canta a luva d'uma mulher quando acaricía as dobras ondulosas do vestido! Oh! que se eu estivesse em Lisboa! dizia D. Miguel em voz baixa e ''patois'' portuguez. Á força de contemplar o corpo flexivel da sua encantadora visinha, D. Miguel julgou-se transportado a Lisboa, deixou pender uma das suas reaes mãos até tocar no hombro de madame Aldobrandini.
 
«—''Mylord!'' exclamou madame Aldobrandini, repellindo o contacto.
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«D. Miguel respondeu:
 
«—Sou rei, e ungido do Senhor. Sou assaz bom
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para vos poupar um sacrilegio e uma excommunhão. Boa tarde.
 
«Entretanto chegavam o commissario de policia e o cardeal Somaglia, com trinta suissos, vestidos de valetes de oiros.
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<span id="chapVII">{{c|{{larger|VII}}}}
 
{{c|{{larger|'''Maximiliano em Portugal'''}}}}
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Maximiliano em Portugal'''}}}}
 
 
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A idéa de fazer uma edição para o publico acudiu ao espirito de Maximiliano em 1863, pouco tempo antes de lhe ser offerecida a corôa do Mexico. Foi ao barão Münch-Bellinghausen, honrosamente conhecido na litteratura allemã pelo pseudonymo de Frederico Halm, que o archiduque confiou o trabalho da edição definitiva das suas {{sc|Memorias}}, que principiaram a ser impressas em Leipzig.
 
No Mexico, apesar das incessantes attribulações que dolorosamente lhe preoccupavam o espirito, Maximiliano
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reviu ainda algumas provas, indicou correcções especialmente motivadas pelas circumstancias politicas, que tinham variado desde 1851. Mas a tragica morte do imperador do Mexico roubaria á publicidade as suas {{sc|Memorias}}, se o imperador Francisco José, por um terno movimento de piedade fraternal, não tivesse dado ordem para que se concluisse a impressão.
 
A obra, em allemão, consta de sete volumes e intitula-se {{sc|Aus meinem Leben. Reiseskizzen. Aphorismen. Gedichte}}. (Recordações da minha vida. Impressões de viagem. Aphorismos. Poesias).
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Foi em julho de 1851 que Maximiliano sahiu da bahia de Trieste, a bordo da fragata ''Novara'', para uma viagem de longo curso, seu ardente desejo. A mesma fragata o conduziu ao Mexico, quando já imperador. É notavel a coincidencia.
 
Jules Gaillard não traduziu integralmente as {{sc|Memorias
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de Maximiliano}}. Fez um apanhado do que lhe pareceu mais proprio a interessar o leitor francez, a caracterisar o espirito e imaginação do author ou a tornar conhecidas as suas relações com as côrtes estrangeiras.
 
Portanto temos que contentar-nos, relativamente a Portugal, com as impressões que a Jules Gaillard aprouve traduzir; mas reputamol-as bastantes a darem uma idéa precisa do modo de sentir e pensar de Maximiliano a nosso respeito.
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O archiduque descreve Lisboa, vista do Tejo, como uma agglomeração de casas sem o caracteristico de edificios distinctos e originaes, e sem o pittoresco que resulta da harmonia da perspectiva. Lamenta a falta de uma floresta onde a vista possa repousar, e acha que o ceu e a agua não possuem o colorido quente e brilhante dos paizes meridionaes.
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«Não se vêem nem palmeiras, nem cyprestes, tudo é frio e monotono como em certas regiões da Allemanha; cidade por cidade, Praga é muito mais pittoresca. A ''Outra banda'' é a unica parte que resalta verdadeiramente bella, ainda que sem a grandeza precisa para que a impressão que produz aproveite ao conjunto.»
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Ora Maximiliano veio a Lisboa em 1852, e é certo que no decurso de 37 annos a cidade tem tido um grande desenvolvimento material, mas o aspecto da casaria, disposta caprichosamente ao sabor das ondulações do terreno, quer-nos parecer de um bello effeito pittoresco, de uma variedade de perspectiva encantadora. É tambem certo que falta aos edificios de Lisboa a originalidade bysantina, a magnificencia oriental de Constantinopla, das suas mesquitas, minaretos, bazares e ''caravansérails'', que se debruçam sobre as aguas do Bosphoro, produzindo uma impressão surprehendente, tanto quanto pela photographia se póde avaliar. Mas os edificios de Lisboa, se não teem uma architectura typica como os de Constantinopla, são comtudo, pela variedade da construcção e pela sua disposição irregular, mas graciosa, de um ''ensemble'' que alegra os olhos e impressiona agradavelmente o espirito.
 
A bahia do Tejo poderá ser inferior á vasta toalha de agua do lago Mœlar, mosqueada de mil duzentas e sessenta ilhas, que torna deslumbrante a situação de Stockolmo; poderá ser inferior ao golpho de Napoles, cuja belleza se opulenta com o espectaculo
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maravilhoso do Vesuvio, quando em erupção; poderá ainda ser inferior á bahia do Rio de Janeiro com as suas grandes massas montanhosas, o ''Pão de assucar'', o ''Corcovado'', a ''Tijuca'', ao fundo a ''Serra dos Orgãos'', e com as suas ilhas numerosas e sorridentes. Não discutimos primazias pueris. Mas a bahia do Tejo é de uma belleza ampla e suave, de uma vastidão harmonica e dôce, que seguramente a torna uma das mais bellas do mundo.
 
O Tejo teve a infelicidade de ser visto por Maximiliano n'um dia brumoso e triste, que prejudicava ''os tons quentes e brilhantes dos paizes meridionaes''. Não sei se o ceu de Lisboa é menos azul que o de Napoles, tão gabado; mas o que sei é que, nos dias claros, o nosso firmamento é de uma doçura de saphyra incomparavel, de um azul doirado que satisfaz plenamente as nossas almas de meridionaes.
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Maximiliano estranhou a falta de arvoredo, mas, por Deus! não faltam arvores no conjunto panoramico de Lisboa, vista do Tejo. É verdade que é núa e arida a serra de Monsanto, pedregoso o corucheu da serra de Cintra, mas que opulencia de vegetação no pendor e na base d'esta serra famosa! E o arvoredo da Tapada da Ajuda? E o da cêrca das Necessidades? E ainda o do cemiterio dos Prazeres? E as manchas verdes com que tantos jardins particulares cortam a brancura alegre da casaria? Decididamente, o archiduque Maximiliano teve um mau dia de chegada, escuro e melancolico.
 
Mas o que eu admiro são as suas saudades pelo
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cypreste, arvore funebre, de que todavia alguns exemplares poderia enxergar no cemiterio dos Prazeres, que aliás menciona. Quanto á palmeira, que é realmente uma bella arvore ornamental, Maximiliano deveria saber que essa arvore é filha dos climas orientaes, e que só exoticamente vegeta nos paizes do occidente.
 
Depois de poucas linhas consagradas á impressão geral que lhe causára o panorama de Lisboa, Maximiliano principia logo a descrever o interior da cidade.
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Á rua da ''Boavista'' chama-lhe de ''Buanavista'', e menciona-a talvez pela circumstancia de conduzir ao palacio das Necessidades, onde a rainha D. Maria {{smaller|II}} habitava.
 
«N'estas diversas ruas encontram-se vastos edificios,
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verdadeiramente dignos de uma grande cidade, com estabelecimentos ricamente adornados. Perto das Necessidades as casas tornam-se mais irregulares e menos bem alinhadas: conforme ao gosto portuguez, são pintadas a oleo em tons assanhados (''criards'') verdes ou azues.»
 
 
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Ha trinta e sete annos os despejos faziam-se ainda da janella abaixo, depois da famosa prevenção do ''agua-vai''. Ás vezes nem a prevenção se fazia. Uma anecdota de Bocage conta que, achando-se o poeta n'uma situação muito naturalista, recebêra sobre o dorso uma baldada d'agua chilra, que lhe despejára uma criada, a qual elle apostrophou n'este chistoso improviso:
 
{{margem esquerda|10%}}<poem>Ó menina do toucado,
</poem>
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<poem>
Ó menina do toucado,
Já que tem a mão tão certa,
Venha buscar a offerta,
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Já expungimos, é certo, o sujo costume do ''agua-vai'', mas os ratos mortos e as cabeças de carapau perfumam ainda as ruas de Lisboa.
 
É porém injusto o archiduque quando diz que os portuguezes nem por todo o ouro do mundo quereriam vêr-se livres d'estas montanhas de immundicie. As narinas nacionaes protestam contra a phrase. Mas é que cêrca de quarenta annos de incessantes reclamações não teem conseguido ainda estabelecer uma policia municipal tão vigilante, que ponha cobro a este abuso. De mais a mais Lisboa é, a respeito dos gatos, uma cidade fetichista. Lisboa adora o gato, não só o gato domestico, mas tambem o gato vadio, ''callejero'', como diriam os hespanhoes. Toda a
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gente se julga constituida na obrigação de alimentar os gatos tunantes atirando-lhes para o meio da rua as cabeças dos carapaus e as miudezas das pescadas. Em Lisboa o gato não faz nada; quem caça os ratos não são os gatos, são as ratoeiras. E ao passo que se dá de comer aos gatos bohemios com uma piedade tradicional, toda a gente compra uma ratoeira para demonstrar a inutilidade do gato alfacinha. Na capital portugueza, o gato é um sultão, que tem o seu serralho de bichanas ao ar livre. Mas se houver uma camara municipal que se proponha arcar com o gato, não haverá ''gatos'' eleitoraes que a aguentem, n'uma reconducção, á bocca da urna.
 
Maximiliano impressionou-se em Lisboa com a abundancia dos papagaios. Parece, diz elle, que estamos n'uma floresta virgem do Brazil. E accrescenta que as parlendas dos papagaios são de ensurdecer a gente. Digam que tambem não é verdade, se são capazes! A abundancia de papagaios é talvez um vestigio do nosso antigo dominio colonial. Dos bons tempos em que fomos os primeiros a pôr o pé na costa d'Africa e no Brazil restam hoje apenas as chronicas e os papagaios. O que é certo é que rara casa não só de Lisboa mas tambem de todo o reino deixa de ter um papagaio, seja pardo ou verde, da Africa ou do Brazil. Cada brazileiro que chega, traz um papagaio para si, e tres papagaios para os parentes. E na tradição popular anda o estribilho dos papagaios, que tem passado de geração em geração com o ''Bernal francez'' e a ''Silvaninha'':
 
{{margem esquerda|10%}}<poem>Papagaio real,
</poem>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/179]]==
<poem>
Papagaio real,
Por Portugal,
Quem passa?
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Que trocára a côr.
</poem></div>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/180]]==
 
Por isso, é certo, lhe fez troça um poeta anonymo da época:
Linha 2 305 ⟶ 2 607:
</poem></div>
 
Maximiliano falla de uma especie de equipagem, o ''sech'', montada sobre duas rodas enormes, tirada
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/181]]==
por dois cavallos, muito usada então em Lisboa. Ainda cá temos pouco mais ou menos o ''sech'', mas hoje serve principalmente para conduzir os mortos ao cemiterio. É um dos espectaculos mais tristemente irrisorios de Lisboa.
 
Passa depois a occupar-se dos trajos nacionaes.
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E Simão Machado:
 
{{margem esquerda|10%}}<poem>Vel-os-has, disse, ''á franceza'',
</poem>
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<poem>
Vel-os-has, disse, ''á franceza'',
Depois d'isso á castelhana,
Ámanhã á sevilhana,
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</poem></div>
 
Isto, leitor, não póde ir de uma assentada. Seguiremos
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a jornadas vagarosas o itinerario do infeliz archiduque.
 
 
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A fallar verdade, que culpa podêmos nós ter do que os outros sonham a nosso respeito?! Que responsabilidade nos póde advir do facto de ter o archiduque Maximiliano, commandante da marinha austriaca, imaginado em Lisboa uma vegetação ''tropical?! Tropical!'' é forte. Pois não sabia sua alteza qual era a nossa situação geographica no mappa-mundi?! Suppunha-nos na Africa ou na America?! Imaginava-nos talvez em Borneo ou Sumatra, na Oceania? Ah! infeliz archiduque, que culpa tinhamos nós dos erros geographicos de sua alteza e dos seus compatriotas?!
 
E as gondolas doiradas?! Quem nos inculcou na Austria
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como sendo o paiz das gondolas?! Vossa alteza sonhou! E nas memorias nublosas d'um sonho confundiu Veneza com Lisboa.
 
Quanto aos galeões carregados de metaes preciosos, bem poderia sua alteza tel-os visto, se se lembrasse de visitar Lisboa no seculo {{smaller|XVI}}. Com uma antecipaçãosinha de trezentos annos—uma bagatella!—teria sahido o sonho verdadeiro. Se vossa alteza, desventuroso archiduque, houvesse chegado a tempo de encontrar el-rei D. Manuel, poderia, visto que estamos em maré de anachronismos, apostrophar com Julio de Castilho os famosos galeões da India:
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</poem></div>
 
Quanto a monumentos historicos, uma pirangaria! Já é ter falta de vista! Nem meio. O campo, um horror. A abundancia de moinhos de vento fez-lhe lembrar Leipzig, as longas cordilheiras de collinas recordaram-lhe a Allemanha. As laranjeiras portuguezas,
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tão celebradas na Europa, cá estavam e não eram feias, mas não se podia parar um momento a olhar para ellas, porque era o mesmo que ter uma constipação no corpo, por causa de um golpe de sol ''tropical'' ou de um golpe de vento igualmente... ''tropical''.
 
E tristes, muito tristes os lisboetas. Mas que diabo de teima a do Paulus em dizer ainda hoje que
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Sua alteza achou-nos muito parecidos com os macacos. N'este ponto não podêmos deixar de fazer honra á orientação transformista de sua alteza. Chegamos a estar convencidos de que foi Portugal que suscitou a Darwin a concepção scientifica da sua theoria; o sabio inglez, tendo conhecido em Lamarck a lei da hereditariedade e a lei do desenvolvimento dos orgãos, pôde, graças ao estudo anthropologico que fizera dos portuguezes, ir além de Lamarck. Foi isto, por força.
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E a lingua portugueza?! Como sua alteza a achou desafinada e charra! Tem graça, porque nós pagamos-lhe na mesma moeda, quanto a lingua. Não ha portuguez nenhum que não esteja de accôrdo com a opinião de Carlos {{smaller|V}},—de que o allemão é uma lingua para se fallar aos cavallos. Mas para chamar desafinada á lingua portugueza já é preciso ter dureza de ouvido! E não dizia o pateta do Filinto:
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Quem o archiduque encontrou primeiro a esperal-o no palacio das Necessidades foi o marechal duque de Saldanha, a quem chama o ''genio universal, o deus ex-machina'', o sol do nosso paiz n'aquelle tempo. N'isto acerta. Triumphante o movimento politico da regeneração, Saldanha, coberto do prestigio que lhe haviam dado as campanhas da liberdade, succedêra no poder ao conde de Thomar. Quando o archiduque Maximiliano chegou a Lisboa, o ministerio era composto por Saldanha, presidencia e guerra; Rodrigo, reino; Seabra, justiça; Garrett, estrangeiros; Fontes, fazenda e obras publicas; Athouguia, marinha.
 
A Garrett faz o archiduque uma referencia especial, sem o nomear, dizendo: «Entre os ministros mencionarei o dos negocios estrangeiros que, segundo
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me disseram, é o mais celebre escriptor de Portugal. Suspeito-o mais escriptor que estadista: de resto, falla perfeitamente o francez.»
 
Maximiliano ''esquissa'' o perfil do marechal: «um homem gordo, constellado de condecorações, com os cabellos crespos e brancos de neve, bigode retorcido, côr de azeitona e lunetas escuras com aro de aço.»
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Este esboço não destoa dos retratos que conhecemos da rainha e nos quaes é facil encontrar exacta semelhança com o perfil traçado pelo snr. D. Antonio da Costa na {{sc|Historia do marechal Saldanha}}: «gentil, como os seus quatorze annos, a pelle, setim; a côr, alva; olhos, celestes; cabellos, como o oiro; porte, nobre; rosto, reflexivo; etc.»
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Com taes predicados physicos não ha mulher feia, ainda mesmo que, no dobar dos annos, o ''embonpoint'' se torne um pouco exaggerado.
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Estranhou que o marido da rainha fosse rodeado por taes homenagens, que, n'uma viagem á provincia, o povo pediu-lhe a benção. E o rei deu-a. A fallar verdade, o beija-mão não se distanciava muito da benção.
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«Os tres filhos mais velhos estavam presentes, cada um com seu uniforme: o principe D. Pedro, de general; D. Luiz, meu camarada, de official de marinha; D. João, de official de infanteria (aliás lanceiros).
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{{c|{{x-smaller|IV}}}}
 
Conta o archiduque que assistíra com a rainha D. Maria {{smaller|II}} e com el-rei D. Fernando a um espectaculo
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no theatro de S. Carlos, que, apesar das suas amplas dimensões, considera inferior ao ''San Carlo'' de Napoles.
 
Exhibia-se n'essa noite o panorama do Mississipi, que tinha já feito, diz Maximiliano, ''le tour du monde''.
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Fallou-se tambem de Lisboa, de Portugal. D. Fernando citou com louvor o livro do principe de Lichnowsky<ref name="Nt6">{{sc|Recordações de Portugal.}}</ref>, o unico que tinha por exacto, parecendo, diz Maximiliano, fazer pouco caso do que a condessa Hahn-Hahn escreveu sobre o mesmo assumpto.
 
A rainha mostrou-se resentida da surpreza com que a condessa viu na camara real o bastidor em que sua magestade costumava bordar. Uma pessoa que governa, havia dito a condessa, não deve occupar-se de taes coisas. A rainha, que é uma mulher da sua casa (''une femme d'intérieur''), diz o archiduque,
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glosava a observação da condessa ironisando-a: «Queria talvez que eu escrevesse livros!»
 
Maximiliano teve occasião de assistir á festa do Coração de Jesus na basilica da Estrella.
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É textual. Apesar de parente da rainha, o archiduque não lhe poupa este epigramma publico. Maximiliano ficou tão indignado, que chamou ''bobo'' ao marechal por estar fazendo espirito na igreja da Estrella. Nós, os portuguezes, não somos certamente o povo que mais compostamente assiste aos actos religiosos. Mas no seculo {{smaller|XVII}} ainda era peor. Foi preciso tomar medidas repressivas contra as liberdades que se praticavam nos templos.
 
«A mais encantadora e seguramente a mais espirituosa pessoa da côrte é a imperatriz viuva Amelia, segunda esposa de D. Pedro. Um cruel destino
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tem perseguido com cega obstinação esta soberana desde a sua primeira mocidade. Ao tempo da minha viagem a Lisboa, a imperatriz vivia em Bemfico (masculinisação de Bemfica) com sua amavel filha, princeza distincta, peregrinamente prendada, e que a morte não tardou a arrebatar. ''Bemfico'' é uma deliciosa ''quinta'', onde recebi o mais cordeal e o mais digno acolhimento de uma boa parenta.»
 
Maximiliano revela, em todas as suas apreciações, uma refinada intransigencia tudesca. Ora é sabido que a imperatriz Amelia era bávara, e é justamente a esta princeza que o archiduque elogia sem restricções. Não podendo deixar de reconhecer as virtudes domesticas da rainha D. Maria {{smaller|II}}, não se abstem comtudo de fazer esvoaçar sobre o seu retrato a sombra de mais de um epigramma. Nem mesmo lhe perdoou o ser nutrida, e chega a dizer que a rainha convidava sempre para os jantares de gala a duqueza de Palmella, que, por ser igualmente nutrida, servia para lhe fazer contrapeso.
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O archiduque, a respeito das touradas portuguezas, dá inteira razão á propaganda que contra ellas tem feito no parlamento o snr. Carlos Testa.
 
Não as considera um combate cavalheiresco como na Hespanha. Chama a este divertimento, tal como ainda hoje o temos, um brinquedo ignobil e despiciendo; uma mascarada, uma ''jonglerie''. Acha cobardes
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os nossos picadores, e sente a falta do ''bello matador, que tão habilmente sabe provocar o enthusiasmo''.
 
Ralha dos intervallos comicos dos pretos, que ficavam espapaçados na arena, e da exhibição dos forcados que, enchumaçados com almofadas, se atiravam á cabeça dos touros. Classifica de arlequinada insipida este espectaculo, onde a coragem brilha pela sua ausencia, e que faz rir o povo n'uma hilaridade boçal.
 
«Estes vis tormentos por que fazem passar o animal e os homens constituem um espectaculo que não póde deixar de exercer sobre o povo uma influencia perniciosa; é um alimento fornecido aos seus instinctos grosseiros, ao passo que em Hespanha uma lucta ardente e generosa põe em evidencia o homem. Lá, o touro empenha toda a sua força, o homem toda a sua coragem; combatem corpo a corpo, o sangue corre, e ha commoções extraordinarias n'essa lucta; o homem não desce até ao nivel da besta, e a besta até ao nivel das coisas inanimadas. Em Hespanha, onde ha um combate, aliás leal, este divertimento popular não chega a parecer cruel; mas aqui, onde apenas se trata de uma folia baixa e ignobil, a menor desgraça avulta revoltantemente. Em Sevilha vi cahir numerosos touros, sem que homem algum fosse ferido; aqui, dois dos luctadores, encarregados de pegar o touro, ficaram horrivelmente maltratados; cahiram entre as pontas do animal que os lançou por terra, rasgando-os no ventre e no peito com temerosas
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marradas; finalmente, arrastaram-nos para fóra da arena todos ensanguentados e semi-mortos. Asseguraram-me, porém, que uma pouca de terra do circo, deitada n'um copo d'agua, bastaria a cural-os prodigiosamente, e que poderiam reapparecer na lide do domingo seguinte. Tudo isso me fazia horror, ao passo que em Hespanha senti-me, á vista do combate, emocionado e arrebatado.»
 
Mas o archiduque confessa que o divertiu muito o facto de um touro ter saltado duas vezes á trincheira, e de um outro touro ter investido com um cavalleiro, que se não desestribou, mas que no embate perdeu a cabelleira.
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Aquillo é que eram touros á castelhana, no tempo do senhor D. José!
 
Maximiliano foi convidado para um dos grandes bailes do marquez de Vianna, n'aquella época tão faustosos. Viu ahi a primeira sociedade de Lisboa.
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Mas o seu exclusivismo germanico não ficou lisonjeado com os cabellos negros e as faces morenas que se estadeavam no palacio do Rato. ''Poucas'' ou ''nenhumas'' bellezas viu.
 
Faz justiça á opulencia das salas, que eu proprio ainda pude vêr no dia do leilão. Por isso digo que ''faz justiça''. Mas accrescenta que denunciavam uma absoluta falta de gosto, ''um verdadeiro luxo de «parvenu»''. Ora isto não é exacto. O que seria se Maximiliano tivesse entrado em salas menos remotamente fidalgas que as do marquez de Vianna!
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Muito hymneiro este infeliz archiduque!
 
E a proposito d'aquelles dois jantares de gala diz Maximiliano que, não obstante a parcimonia habitual da côrte, a mesa era esplendida, e a cosinha
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primorosa; que, a ter que queixar-se de alguma coisa, seria da abundancia dos pratos.
 
Se não se houvessem esquecido do hymno austriaco, Maximiliano, apesar de declarar-se abstemio, ter-se-ia levantado da mesa trauteando mentalmente o antigo ''vaudeville'':
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Para Maximiliano, os cemiterios antigos, em cujos cyprestes e plátanos as avesinhas cantavam n'uma grande paz melancolica, eram o unico typo admissivel para necropole. Sob este ponto de vista encantaram-n'o o ''Campo Santo'' de Pisa e as sepulturas da Turquia.
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Ora eu posso dar ao leitor dois traços descriptivos do ''Campo Santo''. Fornece-m'os madame Colet, a notavel ''touriste'' que tão minuciosamente visitou a Italia: «''O Campo Santo'' fórma um longo quadrado fechado por quatro galerias muradas exteriormente, e cobertas de ''frescos''; interiormente, elegantes columnas cingem o recinto destinado aos mortos. Estas arcadas são de uma leveza maravilhosa, constituidas por duas finas columnas que emmolduram um pilar quadrado. A sua base assenta sobre a herva verde e cuidada; o fuste desabrocha em ogivas que recortam flôres sobre o azul do céo. Aos quatro cantos do prado elevam-se outros tantos cyprestes enormes figurando guardas taciturnos dos sepulchros. Ao meio uma roseira, opulentamente florida, balouça-se de encontro ao fuste de uma columna; sorri aos mortos como um derradeiro amigo. Comecei a minha visita entrando pela porta do occidente. Antes de examinar os ''frescos'' attentei nas sepulturas cavadas no solo que eu ia pisando: cavalleiros das cruzadas, nobres, principes, cardeaes e monges estão ahi confundidos na terra. Sarcophagos antigos descobertos nas escavações e mausoleos modernos avultam de cada lado da galeria, traçando uma especie de alêa sepulchral.»
 
Como se vê, o ''Campo Santo'' de Pisa não é tão despido de ornatos esculpturaes como a referencia de Maximiliano poderia fazer suppôr. Eu acho que o melhor de tudo seria adoptar a incineração, e ter cada um no seu proprio lar as cinzas dos seus mortos
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queridos. Os romanos davam o nome de ''Columbaria'' aos nichos, abertos nas camaras sepulchraes, onde cabiam duas urnas com cinzas, á semelhança de dois pombos em um ninho. D'aqui a origem da palavra, que poderiamos traduzir por ''pombaes dos mortos''. Sem embargo havia tambem em Roma os sepulchros faustosos, de dois e tres andares. Mas o que da civilisação dos romanos poderiamos adoptar era o systema da incineração. Emquanto o não fazemos, o meu ideal de cemiterio é muito mais exigente em simplicidade que o ideal de Maximiliano. Ha vinte e um annos publiquei n'um poemeto infantil, que Castilho se dignou prefaciar, o bosquejo de um cemiterio verdadeiramente christão, segundo o meu ideal:
 
{{margem esquerda|10%}}<poem>D'aldeia o cemiterio era modesto,
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O vem contemplar.
</poem></div>
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/199]]==
 
Para contrastar com a pagina melancolica em que discretêa sobre a morte, dá-nos Maximiliano a descripção de uma burricada em Cacilhas, a pretexto de um ''lunch'', em que certamente foram convivas os officiaes da fragata ''Novara'', porque o archiduque diz-nos que nem elle nem os seus companheiros de equitação sabiam uma palavra de portuguez.
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Os pobres burros é que não acharam decerto graça nenhuma á patuscada furiosa dos austriacos. Mas vingaram-se, olá! porque um burro vinga-se sempre. Cada burro de Cacilhas tem na vingança, mal comparado, o coração de D. Pedro {{smaller|I}}. Pregaram com os austriacos no chão, enrodilharam-n'os na poeira do caminho, fizeram d'elles, incluindo o archiduque, gato-sapato. Oh! triumpho do patriotismo asinino sobre a tyrannia estrangeira! Desconfio que os austriacos se deram finalmente por vencidos; pois que, desistindo da perigosa equitação, se agruparam n'um pinheiral para almoçar,—''sur la verdure''.
 
Quem imaginam os senhores que pretendeu estorvar-lhes o almoço? Os burros? Parece á primeira
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vista, attendendo a que almoçavam sobre a verdura, e os burros deviam ter fome. Não, senhores: foi uma velha, uma megera, diz Maximiliano, que os descompoz e ameaçou. Faço idéa das bonitas coisas que a velha lhes disse, e que elles decerto entenderam se a philippica da heroina foi acompanhada dos respectivos gestos... philippicos.
 
Ora, naturalmente, a velha era a burriqueira, que vinha desaffrontar os sendeiros escalavrados. N'aquelle tempo não estava ainda organisada, com uma succursal em Cacilhas, a sociedade protectora dos animaes. A velha demosthenava ''pro domo sua: domo'' é synonymo de burro.
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Mas quem sabe se a derrota soffrida em Cacilhas não contribuiu para azedar a impressão com que Maximiliano sahiu de Lisboa!
 
As suas ultimas palavras são accentuadamente pessimistas. Acha que Lisboa não tem caracter proprio. As edificaçoes apresentam aspecto allemão; as ''toilettes'' são parisienses; a educação nacional é ingleza. Lisboa, emfim, é uma cidade de Marrocos, morta e triste. Culpa de tudo isto: os nevoeiros frequentes, a frialdade do ar, e os capotes das mulheres!
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/201]]==
Uma verdadeira descoberta do infeliz archiduque.
 
Achou-nos colonialmente decadentes, e n'isso não exaggerou. Mas, de descoberta em descoberta, pareceu-lhe que o abatimento nacional provinha da gordura hydropica dos nacionaes, que degenerava em lympha, e que nos arrastava á doença e á morte.
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<span id="chapVIII">{{c|{{larger|VIII}}}}
 
{{c|{{larger|'''Duas imperatrizes'''}}}}
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/202]]==
imperatrizes'''}}}}
 
 
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Sua irmã, a filha primogenita do conde de Montijo, casou aos dezoito annos com o duque d'Alba, descendente dos Stuarts pelo marechal de Berwich. Foi uma das estrellas da côrte de Izabel {{smaller|II}}. Deixou tres filhos: o actual duque d'Alba, que casou com a filha do duque de Fernan-Nuñez: a duqueza de Tamamés e a duqueza de Medina Cœli, que morreu alguns mezes depois de casada.
 
Em 1860, a imperatriz Eugenia, estando na Algeria com o imperador, soubera, depois de sahir de um baile, que a duqueza d'Alba tinha morrido. As
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duas irmãs estremeciam-se, a imperatriz sentira profundamente a morte da duqueza. Pela primeira vez experimentára a imperatriz uma dôr intima; fôra esse, em meio da vida faustuosa das Tulherias, o primeiro golpe da má fortuna.
 
Até ahi, a existencia de Eugenia de Montijo tinha sido um triumpho ininterrompido de formosura e felicidade, a marcha gloriosa de uma mulher incomparavelmente bella através da vida.
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Já Luiz Napoleão era presidente da Republica quando, por occasião de um baile no Elyseu, se encontrou com a condessa de Montijo, e com sua filha Eugenia, condessa de Teba. Foi n'essa noite que principiou o romance de amor. Luiz Napoleão ficou encantado com a bella castelhana.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/204]]==
 
Apesar de se estar em plena republica, o presidente fizera-lhe a ''côrte'' na côrte, porque o presidente rodeava-se de esplendores verdadeiramente realengos. Preparava elle então o golpe d'estado, e dissera a Eugenia de Montijo:
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Tinha sido o premio com que a fortuna a favorecera n'uma loteria organisada pelo presidente da republica em Compiégne. Conservou-o sempre, e só se desapossou d'esse alfinete fatidico depois da morte do principe imperial. Então, vendo desmoronado todo o castello das suas esperanças de mãi, disse um dia, em Chislehurst, á duqueza de Mouchy:
 
—Considerei toda a minha vida este alfinete
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como um talisman encantado. Era a minha mais querida reliquia. Não quero que fique abandonado: dou-vol-o como um penhor de felicidade e de terna amizade.
 
A duqueza de Mouchy nunca mais deixou de trazer o alfinete da imperatriz.
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A proclamação do novo imperador terminava por estas palavras:
 
{{margem esquerda|2em}}«Venho, pois, meus senhores, dizer á França: Prefiro uma mulher que eu amo e que respeito a uma mulher desconhecida, cuja alliança apenas traria vantagens contrariadas por sacrificios. Sem desdenhar de ninguem, cedo á minha inclinação, mas só depois de ter consultado a minha razão e as minhas
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convicções. Finalmente, antepondo a independencia, as qualidades de coração, a honra de familia aos preconceitos dynasticos e aos calculos da ambição, não serei menos forte, porque serei mais livre.
 
«Brevemente, dirigindo-me a Notre-Dame, apresentarei a imperatriz ao povo e ao exercito; a confiança que elles depositam em mim asseguram a sua sympathia por aquella que eu escolhi, e vós, meus senhores, desde que a conheçais, ficareis convencidos de que ainda d'esta vez fui inspirado pela Providencia.»</div>
Linha 2 620 ⟶ 2 970:
 
Vinte e quatro horas depois do casamento, os noivos passeavam n'um phaeton, que o imperador guiava, através dos bosques estrellados de neve, que um bello sol de inverno doirava.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/207]]==
 
Que importava que a neve espelhasse a desolação do inverno, se os corações dos noivos, ardentes de amor e florescentes de esperanças, cantavam o epithalamio das suas nupcias, n'essa melopea intima que é a melodia do silencio!
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Revela-se aqui a mulher, ''Chassez le naturel, il revient au galop''.
 
As recordações de madame Carette teem, é certo,
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/208]]==
o peccado original da parcialidade fanatica, da dedicação amavel, mas, em compensação, levantam o véo da vida intima das Tulherias, e põem em evidencia alguns factos interessantes do ''ménage'' imperial.
 
Madame Carette não é precisamente uma estylista. Nas Tulherias o seu cargo de leitora era apenas um pretexto. Não teve por isso occasião de cultivar estheticamente o espirito com os primores litterarios de que a França é tão opulenta. Mas escreve com a facilidade e elegancia que são proprias de toda a mulher franceza bem educada.
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Madame Carette, remontando-se a 1858, dá o seguinte retrato da imperatriz:
 
{{margem esquerda|2em}}«Era de estatura mais do que média; podia dizer-se alta. As feições regulares, e a linha extremamente delicada do perfil tinha a perfeição de uma medalha antiga com alguma coisa de intraduzivel, um peregrino encanto pessoal, que fazia com que se não podesse comparar a outra mulher; a fronte, elevada, e rectilinea, escanteava-se apertada, as sobrancelhas, longas e delicadas, eram um pouco obliquas; as palpebras, muitas vezes descidas, seguiam a linha dos supercilios velando os olhos pouco distanciados, o que
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/209]]==
era um caracteristico da physionomia da imperatriz: dois bellos olhos de um azul vivo e profundo, opulentos de sombra, de alma, de energia e de doçura; bastariam os olhos para dar relevo a uma physionomia. O nariz, descendo correctamente desde a raiz até ás fossas, finamente recortadas, denunciava uma raça aristocratica; a bocca, pequenissima, tinha contornos de uma graça exuberante, e um sorriso irresistivel animava essa bocca encantadora; os dentes eram brilhantes, o queixo descrevia uma curva delicada, que se dilatava contornando a face, nitidamente colorida, de uma brancura transparente. A pelle, muito fina, deixava vêr o tecido das veias, e fazia pensar no sangue azul da velha nobreza castelhana. O pescoço alto, esculptural. Os hombros, o peito e os braços lembravam uma estatua. A cintura estreita, mas redonda, os dedos afilados, os pés tão pequenos como os de uma creança de doze annos. O ar gracioso e nobre, cheio de distincção nativa. O andar facil, desembaraçado. Finalmente, uma completa harmonia entre a pessoa physica e a pessoa moral: n'isso estava, creio eu, o segredo do seu irresistivel encanto.»</div>
 
Durante os primeiros tempos de casada, a imperatriz tivera dois móbitos. A razão de estado fazia com que o imperador desejasse ávidamente um filho.
 
Quando pela terceira vez a imperatriz se achou gravida, o drama da maternidade, chamemos-lhe assim, ameaçou, durante tres dias e tres noites, um
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/210]]==
desenlace fatal. Para salvar o filho seria preciso arriscar a vida da mãi. Consultado pelos medicos, o imperador respondeu n'esta dura alternativa:
 
—Não pensem senão na imperatriz.
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A fim de que a imperatriz podesse fazer a sua ''toilette'' o mais commodamente possivel, os vestidos desciam do andar superior por meio de uma especie de ''montecharge''. Este descensor mecanico, e um tubo acustico que communicava com o guarda-roupa, poupavam muito tempo, e incommodo para a imperatriz.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/211]]==
 
Pois tambem o descensor serviu de cavallo de batalha para a maledicencia dos pamphletarios. Toda a gente sabe como o imperio de Napoleão {{smaller|III}} foi politica e pessoalmente atacado. Vive ainda a senhora que, alvo de crueis diffamações, se sentava a esse tempo no throno da França. Não está nos meus habitos faltar ao respeito a ninguem, muito menos a uma dama que a desgraça feriu. Mas nem mesma madame Carette se exime a recordar as calumnias que por muitas vezes foram morder o manto da imperatriz.
Linha 2 660 ⟶ 3 018:
 
Foi o principe de Metternich que no dia 4 de setembro offereceu o braço á imperatriz, que, como se sabe, teve que sahir precipitadamente das Tulherias.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/212]]==
 
Renunciando depois d'isso á vida diplomatica, o principe reside algum tempo em Vienna, com a princeza, ou nas suas terras da Bohemia. Hoje, a encantadora princeza de Metternich, que tanto ruido fizera em Paris, pela graça do seu espirito e pelo esplendor das suas ''toilettes'', que mandava buscar a Vienna ou que encommendava a Worth, o celebre ''couturier'' do imperio, tem a cabeça corôada de cabellos brancos, é avó.
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A côrte das Tulherias, descripta por madame Carette, revela a vida um pouco frivola, e até um pouco mexeriqueira, de todas as côrtes, mas tinha a vantagem de ser, quanto á belleza das damas que rodeiavam a imperatriz, constituida em harmonia com a celebre phrase de Francisco {{smaller|I}}: uma côrte sem mulheres é um anno sem primavera, e uma primavera sem rosas.
 
A ''entourage'' feminina era numerosa, e gentil. Os lyrios da belleza floresciam nas Tulherias como n'um
A ''entourage'' feminina era numerosa, e gentil. Os lyrios da belleza floresciam nas Tulherias como n'um jardim que a primavera esmalta. Madame Carette esboça o perfil de todas as grandes damas que rodeiavam a imperatriz Eugenia. Faz passar diante dos nossos olhos a viscondessa de Aguado, marqueza de las Marismas, bella e espirituosa, mãi da duqueza de Montmorency, uma mulher elegante que morreu aos trinta annos. A insinuante condessa de Montebello, que tinha sido a amiga intima da duqueza de Alba, e que fôra embaixatriz em Roma, onde brilhára como estrella no corpo diplomatico. Madame de Malaret, de uma rara elegancia de linha. A marqueza de Latour-Maubourg, filha do duque de Trévise, sempre muito ciumenta do marido. Um dia perguntaram-lhe o que ella faria se soubesse que o marido a enganava. Morreria de espanto, respondeu a marqueza. A baroneza de Pierres, que era a mulher da França que montava melhor a cavallo. A condessa de la Bédoyère, uma ''virtuose'' distinctissima, que tinha a belleza das mulheres do tempo de Luiz {{smaller|XIV}}. Viuva em 1869, casou com o principe de Moskowa, porque a sua belleza chegava á vontade para fascinar dois maridos. A condessa de la Bédoyère tinha uma irmã, a condessa de la Poëze, e ninguem como estas duas irmãs possuia em grau mais eminente o que póde chamar-se ''l'esprit des cours''. A condessa de Rayneval, formosissima, não casou nunca: era ''chanoinesse'' n'uma ordem da Baviera. Foi ella que serviu de modelo para a Musa, que no celebre quadro d'Ingres corôa a cabeça de Cherubini. A baroneza de Viry-Cohendier, em cujo rosto brilhavam dois olhos, que pareciam carbunculos. A princeza Anna Murat, d'uma belleza loira, fresca, primaveril. A duqueza de Malakoff, o mais puro typo da belleza andaluza. A duqueza de Morny, uma flôr de neve da Russia, colhida pelo duque que alli fôra embaixador, e que representára olympicamente a França na coroação do czar Alexandre {{smaller|II}}. A duqueza de Persigny, loira como Daphne. A esta pleiade de mulheres encantadoras viera reunir-se, nos ultimos dez annos do imperio, a famosa princeza de Metternich. E occupando o centro d'este systema planetario de bellezas femininas, um sol: a imperatriz.
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jardim que a primavera esmalta. Madame Carette esboça o perfil de todas as grandes damas que rodeiavam a imperatriz Eugenia. Faz passar diante dos nossos olhos a viscondessa de Aguado, marqueza de las Marismas, bella e espirituosa, mãi da duqueza de Montmorency, uma mulher elegante que morreu aos trinta annos. A insinuante condessa de Montebello, que tinha sido a amiga intima da duqueza de Alba, e que fôra embaixatriz em Roma, onde brilhára como estrella no corpo diplomatico. Madame de Malaret, de uma rara elegancia de linha. A marqueza de Latour-Maubourg, filha do duque de Trévise, sempre muito ciumenta do marido. Um dia perguntaram-lhe o que ella faria se soubesse que o marido a enganava. Morreria de espanto, respondeu a marqueza. A baroneza de Pierres, que era a mulher da França que montava melhor a cavallo. A condessa de la Bédoyère, uma ''virtuose'' distinctissima, que tinha a belleza das mulheres do tempo de Luiz {{smaller|XIV}}. Viuva em 1869, casou com o principe de Moskowa, porque a sua belleza chegava á vontade para fascinar dois maridos. A condessa de la Bédoyère tinha uma irmã, a condessa de la Poëze, e ninguem como estas duas irmãs possuia em grau mais eminente o que póde chamar-se ''l'esprit des cours''. A condessa de Rayneval, formosissima, não casou nunca: era ''chanoinesse'' n'uma ordem da Baviera. Foi ella que serviu de modelo para a Musa, que no celebre quadro d'Ingres corôa a cabeça de Cherubini. A baroneza de Viry-Cohendier, em cujo rosto
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brilhavam dois olhos, que pareciam carbunculos. A princeza Anna Murat, d'uma belleza loira, fresca, primaveril. A duqueza de Malakoff, o mais puro typo da belleza andaluza. A duqueza de Morny, uma flôr de neve da Russia, colhida pelo duque que alli fôra embaixador, e que representára olympicamente a França na coroação do czar Alexandre {{smaller|II}}. A duqueza de Persigny, loira como Daphne. A esta pleiade de mulheres encantadoras viera reunir-se, nos ultimos dez annos do imperio, a famosa princeza de Metternich. E occupando o centro d'este systema planetario de bellezas femininas, um sol: a imperatriz.
 
Havia nas Tulherias um ''salão azul'' que a imperatriz quizera dedicar exclusivamente á belleza, povoando-o com os retratos das mais formosas damas da sua côrte. Nas telas que revestiam as paredes, cada dama personificava uma das grandes nações da Europa. A princeza Anna Murat representava a Inglaterra, a duqueza de Malakoff a Hespanha, a duqueza de Morny a Russia, a condessa Walewska a Italia, e no meio de toda esta constellação desenhava-se o perfil da imperatriz sobre um medalhão sustentado por figuras allegoricas.
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O incendio das Tulherias, depois da quéda do imperio, carbonisára essas notaveis télas, de que ficaram apenas, aqui, alli, fragmentos indemnes, vestigios d'esses retratos que resumiam toda a graça feminina da França imperial.
 
De resto a vida das Tulherias agitava-se nas mil intrigasinhas e rivalidades de que as mulheres, ainda
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que sejam encantadoras, não sabem emancipar-se. Eram frequentes as tempestades n'um copo d'agua. Por exemplo. Um anno, no dia da festa da imperatriz, a 15 de novembro, resolveu-se fazer quadros vivos, reproduzir o ''Déjeuner champêtre'' de Watteau. Foi a princeza de Metternich, que tinha uma rara habilidade para este genero de divertimentos, quem ficou encarregada da distribuição dos personagens e dos ''costumes''.
 
A duqueza de Persigny devia entrar no quadro, mas, não tendo gostado do ''costume'' que a princeza lhe distribuíra, declarou que se vestiria a capricho, e que appareceria com os cabellos soltos,—uns bellos cabellos loiros, opulentos como uma floresta.
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A imperatriz sorriu, e aconselhou:
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—Deixe lá, princeza. É uma novidade que talvez produza effeito.
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Madame Carette desatou a rir quando a viu, e a imperatriz, que n'esse momento sahia do seu gabinete, quiz saber o motivo de tamanha hilaridade. Madame Carette disse-lh'o, e a imperatriz quiz vêr, através de uma vidraça, a cabeça de Medusa da condessa de Wagner. Viu, e tambem desatou a rir. Mas, passado o primeiro momento, ordenou a madame Carette:
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—Diga da minha parte á condessa que lhe peço para tirar immediatamente a cabelleira. Que ridiculo para a minha côrte, se se soubesse!
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Ora a condessa de Castiglione, filha das primeiras nupcias do marquez de Oldoini, ha pouco fallecido, fizera sensação quando pela primeira vez appareceu n'um baile ''costumé'' das Tulherias. A condessa ainda vive hoje. Deve estar velha, como todas as bellas damas d'aquelle tempo, mas a sua belleza era, em 1860, a de uma estatua grega, esculptural, posto que dura.
 
A imperatriz ardia em ciume por causa da condessa de Castiglione, que conseguiu distanciar da côrte. N'um dos ultimos bailes das Tulherias, em que
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a imperatriz appareceu em ''costume'' de Marie Antoinette,—a imperatriz teve sempre uma viva sympathia pela memoria de Marie Antoinette,—a condessa de Castiglione, que não tinha sido convidada, foi reconhecida n'uma esplendida ''toilette'' negra, de viuva, representando ''Marie de Medicis''. A imperatriz, sabendo que era a condessa, mandou-lhe ordem por um camarista para que sahisse immediatamente.
 
Em 1860, o principe Jeronymo déra uma festa no Palais-Royal em honra da imperatriz, que deslumbrou todos os olhos quando entrou na sala com um vestido de tulle branco e uma grinalda de violetas de Parma, porque a imperatriz fez da violeta a flôr imperial.
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Li ha dois dias um livro de Philibert Audebrand, {{sc|Un café de journalistes sous Napoleão iii}}, em que toda a historia dos amores do imperador com a condessa de Castiglione é contada sem refolhos, até com visivel acrimonia, que é a nota predominante de todo o livro.
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Essas relações amorosas, segundo Audebrand, chegaram até ao ponto de a imperatriz partir precipitadamente para a Escocia com a duqueza de Hamilton, tendo voltado a Paris só depois da promessa formal do imperador de que romperia com a sua amante.
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Toda a correspondencia pôde ser salva, e a imperatriz tem-n'a conservado religiosamente.
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Deve ser interessantissima, mas, nas mãos da imperatriz, é uma arma partida. Não é preciso que a doblez dos caracteres se affirme por documentos: essa prova é inutil. Todos sabemos como em todos os tempos e lugares o caracter humano varía com a altura do sol. Mas no occaso da sua grandeza, a imperatriz ainda conseguia encontrar algumas dedicações inabalaveis. Citarei desde já dois nomes: o duque de Bassano, e mr. Rouher.
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A imperatriz viu sempre n'elle um orleanista. Não sei se tinha razão. Mas a impressão que me ficou de todo o livro de Trochu, um enorme volume de mais de 500 paginas, é que a imperatriz foi muito abandonada, na hora do perigo, pelos elementos officiaes que tinham feito a sua carreira á sombra das Tulherias. Só o almirante Jurien se offereceu para acompanhal-a; só madame Mebreton Bourbaki a acompanhou. O maior auxilio recebeu-o de dois estrangeiros: o embaixador de Austria, principe de Metternich, e o embaixador de Italia.
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Não admira que a imperatriz, arrastada pelo seu caracter energico de hespanhola, se envolvesse nos negocios politicos. Ha uma phrase sua, que a define. Os prussianos avançavam sobre Paris, o general Trochu parecia desalentado, mas a imperatriz dissera-lhe:
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Entrava-se pelo salão dos alabardeiros, a guarda nobre da imperatriz, commandados por mr. Bignet, a quem as damas do palacio chamavam jovialmente ''la trezième dame du palais''.
 
Era o chefe dos alabardeiros que inscrevia os nomes das pessoas que pretendiam ser recebidas pela imperatriz
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e, se as damas de serviço faltavam, elle proprio dava conta a sua magestade imperial do numero e qualidade das pessoas que solicitavam audiencia.
 
Bignet era um homem discreto, e muito dedicado á imperatriz; guardava sempre rigoroso silencio sobre as resoluções que a imperatriz lhe communicava, mas as damas da côrte tiravam pelos domingos os dias santos, e penetravam ás vezes os segredos de Bignet.
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Ao salão dos alabardeiros seguia-se a sala das damas, pintada a fresco sobre um fundo verde. O tecto representava uma enorme ''corbeille'' de flôres. A mobilia, estylo Luiz {{smaller|XVI}}, era de madeira dourada com estofos Gobelins. N'esta sala, como o seu nome indicava, estacionavam lendo, conversando, bordando, as damas de serviço.
 
Passava-se d'este a outro salão, côr de rosa, profusamente ornamentado de flôres: o tecto, representando
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Flora em triumpho, tinha sido pintado por Chaplin.
 
O salão ''rose'' communicava com o salão azul, a que já tivemos occasião de referir-nos, e cujas paredes eram revestidas pelos retratos das mais bellas damas da côrte, symbolisando as grandes nações da Europa.
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Forrado de sêda ''mate'', com largas bandas de um verde suave, a mobilia capitonada, as cortinas côr de purpura, as portas de acajú com ferragens de cobre dourado, tal era o gabinete particular, o aposento predilecto da imperatriz.
 
Sobre o panno principal da parede pendia o retrato do imperador, corpo inteiro, de casaca, pintado por Cabanel. Exactissimo de semelhança. Á esquerda do fogão, um retrato da duqueza d'Alba coberto de ''gaze'' ligeira, como sorrindo através de uma nuvem. Entre as janellas, o retrato da princeza Anna Murat, pintado por Winterhalter. E por toda a parte, aqui,
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alli, mil obras primas do Oriente e do Occidente, uma bella estatua de mulher em marmore branco—''A Estrella'',—porque tinha uma estrella na fronte e, entre as recordações carinhosas, muitos objectos que tinham pertencido á duqueza d'Alba, e o chapeu, todo crivado, que o imperador levava na noite do attentado Orsini. A pintura tinha, no gabinete particular da imperatriz, um grande dominio. Havia um notavel quadro de Hébert, representando mulheres italianas n'uma fonte subterranea; e um cordão de sêda, pendente da parede, esperára durante algum tempo por um quadro de Cabanel. Mas o pintor demorára-se e, n'um dia de recepção, a imperatriz, conduzindo-o ao seu gabinete, dissera-lhe:
 
—Esta lacuna contraria-me. Ou me mandais depressa um quadro ou eu vos mando pendurar n'aquelle cordão,—em vez do quadro.
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Era n'esta posição que a imperatriz escrevia ordinariamente, com uma penna de pato, pondo o papel sobre os joelhos.
 
Ao alcance da mão havia uma pequena meza com
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livros, os mais queridos e, não longe, n'uma grande meza aberta, todo o trem de desenho, os pinceis, papel, caixas de tintas, porque a imperatriz tinha grande facilidade para a aguarella.
 
Seguia-se um outro compartimento destinado a bibliotheca, povoado de obras escolhidas na litteratura franceza, ingleza, hespanhola e italiana, linguas que a imperatriz fallava com destreza. Á mistura com os livros, muitos primores artisticos: Wouwermans de um valor incalculavel. E numerosos retratos, do conde de Montijo, do imperador, do principe imperial, da rainha da Hollanda, da rainha Sophia, etc.
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D'esta ante-camara passava-se a uma vasta sala, allumiada por tres grandes janellas rasgadas sobre um balcão: era o gabinete de ''toilette'' da imperatriz, todo coberto d'espelhos. A meza de ''toilette'' tinha guarnições de renda branca e sêda azul. E do tecto descia, por um engenhoso machinismo, a que já tivemos occasião de alludir, o ''monte-charge'' que trazia os vestidos de que a imperatriz precisava.
 
Uma saleta com uma só janella communicava o gabinete de ''toilette'' com o quarto de cama, dividido
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em duas peças por um tabique em que, sobre um fundo de ouro, florejavam pinturas de delicado gosto. Era ahi que estava o oratorio particular da imperatriz, disfarçado, porque o tabique abria em dois batentes, para os actos do serviço divino. Foi n'esse oratorio que o principe imperial commungou pela primeira vez, e que, no dia 4 de setembro de 1870, a imperatriz ouviu missa, pela ultima vez, nas Tulherias.
 
O quarto de cama era de uma magnificencia verdadeiramente olympica. No tecto, grandes molduras douradas inquadravam antigas pinturas allegoricas. O leito, afofado de ricos estofos, e erguido sobre um estrado, era mais um throno do que um leito.
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O pessoal de serviço esperava os imperadores no salão Apollo, illuminado por tres grandes lustres, que faziam reverberar o ouro do ''plafond'',—uma glorificação de Apollo com as nove musas.
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Este salão ficava entre o ''branco'' ou do primeiro Consul, assim chamado por ter um magnifico retrato do general Bonaparte, e a sala do throno, que era preciso atravessar para chegar ao salão de Luiz {{smaller|XIV}},—a sala da meza.
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Por detraz da cadeira do imperador e do principe imperial postava-se um alabardeiro. Por detraz da cadeira da imperatriz, além de mr. Bignet, commandante da sua guarda, ficava Scander, um joven negro, que tinha vindo do Egypto, e que, emplumado e armado, produzia um bello effeito decorativo.
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Scander tinha um grande orgulho da sua posição, e não obedecia a ninguem senão á imperatriz.
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Depois do jantar, os imperadores dirigiam-se com a sua ''entourage'' para o salão d'Apollo, onde se servia o café, que Napoleão {{smaller|III}} tomava sem sentar-se fumando cigarrilhas.
 
Era geralmente n'esta occasião que o imperador conversava com os officiaes da guarda. Toda a côrte se conservava tambem de pé, mas o imperador convidava quasi sempre as damas a sentarem-se. Fazia-se então circulo, fallava-se principalmente dos acontecimentos do dia, o marquez de Havrincourt, o barão de Pieres, o duque de Trévise, dignitarios da côrte
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e deputados, commentavam os episodios da sessão do dia. A imperatriz era a alma, a alegria, a graça d'este circulo de conversação. O imperador acabava por ''fazer paciencias'', e, para entreter o principe imperial, a côrte jogava algumas vezes o loto, marcando o imperador os seus cartões com moedas de 50 ''centimes'', novas em folha.
 
Oh! ceus! quem havia de dizer, nos tempos aureos do imperio de Napoleão {{smaller|III}}, que os pamphletarios descreviam como nadando nos prazeres de uma orgia ininterrupta, que ás nove horas da noite, no salão Apollo das Tulherias, estava a côrte, os imperadores á frente, entregando-se paradisiacamente ao patriarchal loto, como a essa mesma hora acontecia decerto, em Portugal, na botica de Castro Daire e no club de Olhão!
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Então a conversação animava-se mais, estimulada pela imperatriz, que a prolongava até ás onze e meia.
 
Os adversarios do imperio atacaram vivamente as festas das Tulherias, os quadros vivos de Compiégne; aqui tenho eu ao pé de mim Philibert Audebrand, que me diz ao ouvido, applicando-a a Nopoleão {{smaller|III}},
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a celebre phrase de Agnés Sorel a Carlos {{smaller|VII}}:
 
—Não se perde mais alegremente um reino!
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O primo respondeu-lhe:
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—''Couche-toi avec tes bas (Tebá) cette nuit, et ça passera.''
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Conhece-se, nos seus pormenores, a desastrosa morte do filho da imperatriz Eugenia na Zululandia. Foi esse acontecimento que desfolhou no coração da viuva de Napoleão {{smaller|III}} o ultimo ''bouquet'' das suas esperanças, que ella podéra salvar na revolução de 4 de setembro. Restava-lhe apenas, a prendel-a ao mundo e a ligal-a ao futuro, esse joven principe que sempre adorou, e que bem poderia vir a rehaver um dia o throno dos Napoleões. O desejo de apressar a hora da ''revanche'' napoleonica, um sonho de mulher n'uma noite agitada, preparára, com mais precipitação do que acerto, a partida do principe Luiz para a Zululandia. Contou decerto a imperatriz com o effeito vantajoso que poderia despertar no animo enthusiasta dos francezes a noticia de que seu filho se havia batido com denodo, embora por um paiz estranho; e depois, como a Zululandia não estava precisamente na fronteira da França, mas era uma região longinqua da Africa, seria possivel exaggerar um pouco hyperbolicamente os triumphos do principe, sobredoiral-os com o prestigio que a distancia costuma dar ás pessoas e aos factos.
 
Mas este projecto de rehabilitação politica, que
Mas este projecto de rehabilitação politica, que tinha brotado no espirito ou no coração da imperatriz, offerecia perigos que a precipitação da partida não deixou antever. Foram porém os perigos que triumpharam sobre as esperanças. Foi o reverso da medalha, não devidamente estudado, que triumphou sobre o anverso. A catastrophe da Zululandia apagou o ultimo rescaldo do imperio napoleonico, e desde essa hora a imperatriz Eugenia, sem familia, sem esperanças que a prendam á existencia, vendo cahir a seu lado, velhos e doentes, os amigos mais dedicados do imperio, tem assistido, como Carlos {{smaller|V}}, aos seus proprios funeraes, porque sobrevive a si mesma.
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tinha brotado no espirito ou no coração da imperatriz, offerecia perigos que a precipitação da partida não deixou antever. Foram porém os perigos que triumpharam sobre as esperanças. Foi o reverso da medalha, não devidamente estudado, que triumphou sobre o anverso. A catastrophe da Zululandia apagou o ultimo rescaldo do imperio napoleonico, e desde essa hora a imperatriz Eugenia, sem familia, sem esperanças que a prendam á existencia, vendo cahir a seu lado, velhos e doentes, os amigos mais dedicados do imperio, tem assistido, como Carlos {{smaller|V}}, aos seus proprios funeraes, porque sobrevive a si mesma.
 
Esta é a ultima phase dolorosa da sua vida, que resgata largamente os erros commettidos durante os dias gloriosos do fastigio do imperio.
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De tudo quanto eu tenho lido a respeito do principe Luiz, infiro que era uma boa e nobre alma a sua. Não encontrei ainda nota discordante que depreciasse o seu caracter ou amesquinhasse a grandeza fidalga do seu coração.
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Um dos jovens amigos do principe foi Luiz Conneau, filho de um medico muito estimado nas Tulherias. A amizade d'estas duas creanças passava ás vezes, como era natural, por pequenas tempestades, amúos infantis, que terminavam sempre por um abraço de reconciliação. N'um dia de banquete official nas Tulherias, a que o principe, em razão da sua idade, não devia assistir, foi-lhe permittido jantar, nos seus aposentos, com Luiz Conneau. O principe, sabendo que o seu amigo apreciava gulosamente um gelado de morango, pedira que lh'o servissem.
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Toda a educação do principe Luiz obedecia ao desejo de continuar n'elle a gloria militar do primeiro Napoleão, porque o imperio reconhecia que, em face dos seus inimigos, precisava retemperar-se com a tradição historica.
 
Aos oito annos, o principe Luiz montava já a cavallo, e quando sobre um bonito poney Bouton d'Or
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passava revista ás tropas ao lado do imperador, conhecia-se, na sua physionomia radiosa, que o lisonjeava esse bello espectaculo militar, com cujo prestigio haviam deslumbrado a sua imaginação infantil.
 
Como vestia o uniforme de ''caporal'' do primeiro regimento de granadeiros da guarda, tudo se conseguia d'elle, se fazia alguma maldadesinha, dizendo-lhe:
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Tinha-se planeado um passeio a bordo do ''Faon'', «pequeno aviso» a vapor, e o abbade Bauer, que fôra n'esse dia a Biarritz, quiz ser do numero dos excursionistas. O imperador não gostava de embarcar; não acompanhou por isso a imperatriz e o principe.
 
A primeira parte da viagem, ate S. Sebastião, correu sem incidente. Mas levantou-se vento, e o commandante do ''Faon'' declarou que não poderiam desembarcar senão em S. João da Luz. Por este motivo
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a viagem teve que ser mais longa do que se esperava, e a noite principiára a cahir. S. João da Luz é um pequeno porto de pescadores, accidentado de rochedos, em que o ''Faon'' não poderia atracar. A imperatriz e o principe tiveram que ir para terra n'uma canôa, com o almirante Jurien e o abbade Bauer, mas a força do mar levara a pequena embarcação d'encontro a uma fraga, em que se despadaçou. A imperatriz conservou-se, dentro d'agua, abraçada ao filho, fluctuando com o auxilio de alguns dos marinheiros da canoa. E ternamente dizia-lhe:
 
—Não tenhas medo, Luiz.
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—''My prince'', dizia ella, ''serait inconsolable''.
 
A respeito da ama do principe: Como todas as
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amas, sobretudo quando o são de principes, tinha caprichos, velleidades. Mas como nas Tulherias houvesse uma outra ama para um caso de urgente substituição, intimidavam-n'a dizendo-lhe:
 
—Se está aborrecida, chama-se a outra.
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Em seguida dava um passeio a cavallo, com excepção dos dias em que acompanhava a imperatriz, a pé, através de Chislehurst-Common, á pequena igreja gothica de Saint-Mary. Ao domingo todas as attenções se fixavam na mãi e no filho que iam juntos ouvir missa. A imperatriz já então principiava a soffrer de rheumatismo articular; e o principe carinhosamente a ajudava a descer da carruagem, amparando-a nos braços.
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Em 1887 publicou-se em Paris, assignado por Charles de Bré, um livro que se intitula {{sc|Le roman du prince impérial}}. Supponho que com razão se denomina romance. Eu nem acredito na versão do padre Goddard, que, fallando do principe morto na Zululandia, dizia ''Virgo intacta'', nem acredito na historieta, contada por De Bré, dos seus amores com miss Carlota Walkyns, que, segundo o romance, houvera do principe um filho, que está em França a educar.
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Parece que a imperatriz alimentava o projecto de casar o principe imperial com a princeza Beatriz, filha da rainha Victoria, mas por sua parte o principe imperial alimentava a esperança de desposar miss Carlota, casando por amor, como seu pai.
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O ''romance'' de Carlos De Bré foi contestado por algumas folhas imperialistas, e, se assentasse n'um facto verdadeiro, esse facto teria tido em toda a Europa uma notoriedade insistente. Não aconteceu assim. O livro passou inspirando geral desconfiança sobre as affirmações que aventava, e eu persisto em consideral-o mais como uma especulação de livraria, protegida nos seus intuitos mercantis pelo nome de um principe desventuroso, do que como a expressão exacta da verdade.
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Nas paginas seguintes occupar-nos-hemos da imperatriz Carlota do Mexico, que ha tantos annos envelhece na demencia com que os seus incomportaveis soffrimentos lhe obumbraram o cerebro.
 
A posição social aproxima estas duas illustres damas, ambas viuvas de imperadores. Mas ha uma differença profunda entre ellas. Eugenia de Montijo teve o seu dia de ruidosa gloria, viveu largos annos dominando a Europa na côrte mais faustosa dos tempos modernos. A imperatriz Carlota não conheceu nunca senão o conchego intimo do seu ninho de amor conjugal no castello de Miramar, e a sua passagem pelo imperio do Mexico foi uma agonia em que principiou
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por perder a coragem e acabou por perder a razão.
 
 
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A historia do imperador Maximiliano e da imperatriz Carlota parece moldada sobre a tradição biblica de Adão e Eva no paraizo terreal.
 
Todas as delicias da creação se accumulavam no éden n'aquella primitiva profusão de luz, de aromas, de flôres, de musicas, que, exuberantemente creadas, irrompiam ainda em tumulto desordenado, á espera da lei reguladora da existencia terrena. Todas as maravilhas paradisiacas, pujantes de vida, deviam ser eternas e imperturbaveis, e Adão e Eva, dominando, n'uma felicidade virginal, a esphera crystallina onde o sol ensaiava timidamente o primeiro vôo das suas azas de ouro, deviam viver eternamente n'uma felicidade casta e perenne. Mas a tentação viera, perfida serpente, espiralar-se na arvore do bem e do mal, enroscando-se no tronco, colleando para a fronde d'onde pendia o pomo prohibido, prematuramente sazonado pela intensidade do sol e pela força creadora da terra. Então o par ditoso, cuja felicidade devia ser absoluta e immutavel, attrahido pela cupidez da serpente tentadora, disputou-lhe o pomo, colheu-o, provou-o, e, julgando ter vencido a serpente, viu-se de subito vencido por ella. Desde essa hora foi marcado um limite terrivel á felicidade humana, a existencia tornou-
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se ephemera e dura, e tudo quanto havia nascido para viver foi condemnado a viver para morrer.
 
O paraizo terreal de Maximiliano e Carlota era o castello de Miramar, a uma legua de Trieste, erguido sobre um promontorio pittoresco, que só avistava a pureza lucida do ceu infinito e a pureza cerulea do mar immenso. Nunca o vôo de uma ambição havia cortado o horisonte luminoso do firmamento e do oceano, nunca a aza de um sonho audacioso havia posto um traço negro no espelho nitido das aguas e do ar.
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Desposando em 1859 a princeza Carlota, da Belgica, o archiduque Maximiliano pôde, graças ao dote que lhe trouxera a filha do velho rei Leopoldo, traçar por sua propria mão o projecto de um castello que nascia da cabanazinha florida como a opulenta cabaia de sêda de um rajah nasce da folha verde da amoreira.
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O archiduque era apaixonado pela architectura; fôra elle que desenhára o risco da famosa igreja Votiva de Vienna; póde pois calcular-se com que alegre e dedicado enthusiasmo veria ir apparecendo, debaixo do seu ''crayon'', as torres denticuladas do futuro castello de Miramar.
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Emquanto o castello de Miramar se edificava, o archiduque fôra habitar um ''chalet'' que provisoriamente tinha mandado construir no alto da collina, e que para os dois felizes esposos se convertêra n'uma estancia encantada, que a madresilva cingia n'um abraço de verdura e de flôres, e envolvia na atmosphera inebriante de um beijo de perfume. O archiduque gostava immensamente de flôres, de modo que os jardins de Miramar, que vieram a contornar o palacio, pareciam realisar o sonho de um poeta que, como Castel ou Lacroix, vivesse para cantal-as.
 
Fôra no ''chalet'' da collina que o archiduque, mesmo depois de edificado o castello, permanecêra sempre com a archiduqueza; nas salas do castello recebia
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elle os homens de lettras, os artistas, os sabios, os principes que procuravam a sua companhia, que uma illustrada conversação e uma sumptuosa hospitalidade tornavam appetecida.
 
N'este paraizo terreal, n'este éden do Adriatico, insinuára-se um dia a serpente da ambição, e a França, personificada em Napoleão {{smaller|III}}, fôra o espirito do mal que se transformára em serpente para realisar a tentação do par feliz de Miramar.
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Como nasceu no espirito de Napoleão {{smaller|III}} a desastrosa idéa da intervenção da França nas questões internas do Mexico? Como, e por quê?
 
O que até ha pouco tempo se sabia, e logo voltaremos ao assumpto, era que algumas familias mexicanas e alguns membros das colonias estrangeiras emigraram para a Europa fugindo ás continuadas perturbações politicas d'aquelle paiz. Essas familias,
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muitas das quaes vieram estabelecer-se em Paris, pensavam decerto em voltar á patria, e manobraram n'esse sentido, auxiliadas pelos estrangeiros repatriados que levaram os seus respectivos governos a realisar uma conferencia internacional em Londres. Accordou a diplomacia em pedir indemnisações para os emigrados, mas o governo mexicano, ''à bout de ressources'', declarou que não podia pagar o que lhe era exigido.
 
As potencias interventoras, a França, a Inglaterra e a Hespanha, julgando-se desconsideradas por esta resposta do Mexico, combinaram entre si fazer uma demonstração energica que impozesse o exacto cumprimento das deliberações tomadas na conferencia de Londres.
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Foi o almirante Jurien de La Gravière que, com poderes discricionarios, tomou o commando da expedição franceza, aggregando-se-lhe, como adjunto technico, mr. Dubois de Saligny, antigo ministro no Mexico, que devia occupar-se do contencioso. A esquadra hespanhola já estava fundeada em Vera-Cruz quando a esquadra franceza lá chegou. A Inglaterra, reconhecendo talvez o erro politico d'esta aventura, enviou alguns navios com visivel hesitação.
 
Os mexicanos, concentrando-se logo que os hespanhoes chegaram, deixaram-n'os como que isolados n'uma vasta zona do littoral. Foi pois n'um deserto que a expedição franceza desembarcou, posto que o governo do Mexico manifestasse uma certa sympathia pela expedição franceza, considerando-a como um obstaculo
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a quaesquer demasias dos hespanhoes, antigos occupadores e, portanto, antigos inimigos dos mexicanos. Assim, pois, pôde o almirante Jurien assignar uma convenção que permittia aos francezes o internarem-se em condições favoraveis de hygiene e abastecimento, com a clausula de que, se as hostilidades se rompessem, retrocederiam para o littoral.
 
É n'este ponto que começa a urdir-se uma vasta rêde de intrigas.
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Seria fastidioso enumerar n'uma chronica fugitiva todos os pormenores que occorreram até ao dia em que o general Forey tomou o commando do exercito francez, e alcançou sobre as guerrilhas mexicanas de Juarez alguns faceis triumphos militares.
 
Foi então que Napoleão III teve o sonho de realisar a transformação politica do Mexico para contrabalançar
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na America a influencia dos Estados-Unidos, e que obedecendo aos manejos da França, uma deputação mexicana, em outubro de 1863, chegava ao castello de Miramar a fim de offerecer a corôa imperial do Mexico ao archiduque Maximiliano.
 
Napoleão {{smaller|III}} tomára o compromisso de conservar no Mexico, durante tres annos, um exercito de vinte e cinco mil homens, commandado pelo general Forey, succedendo-lhe Bazaine, que tinha feito toda a campanha como commandante da 1.ª divisão; e o Mexico o de pagar immediatamente sessenta milhões de francos a titulo de indemnisação de guerra, e mais vinte e cinco milhões por anno, para o que foi levantado nos bancos da Europa, por emprestimo, o dinheiro necessario, sob garantia do governo francez.
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Uma das ultimas novidades litterarias, que lograram maior successo, é com certeza o livro de Paul Gaulot: {{sc|Rêve d'empire}}.
 
Este livro occupa-se da famosa questão do Mexico, o ephemero imperio de Maximiliano, e basêa-se em documentos inéditos. D'aqui o seu principal interesse: um clarão de revelações, importantes e novas, illumina as trezentas paginas d'esta brochura que
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tem já terceira edição, comquanto haja apparecido ha poucos dias.
 
Envolvia-se até hoje nas sombras de um tal ou qual mysterio a causa da intervenção da França na questão do Mexico.
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Esta phrase define até certo ponto o espirito do imperador dos francezes, sempre propenso á aventura, sempre enthusiasta de emprezas arrojadas ou, se antes querem, um pouco visionario na politica.
 
Girando em torno da phrase escripta por Napoleão {{smaller|III}}, Paul Gaulot lembra que na sua mocidade o futuro imperador dos francezes fôra filiar-se nas sociedades secretas d'Italia; que, sendo elle o representante da idéa napoleonica, isto é, do principio d'authoridade,
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duas vezes tentou derrubar o regimen estabelecido; que, subindo ao throno, deteve a acção da Russia no Mar Negro e no Mediterraneo, sem comtudo querer que a Inglaterra ficasse senhora d'esses mares; que combateu a Austria para permittir á Italia que realisasse a sua unidade, impedindo-a porém de attingir este ideal politico porque elle proprio protegia a conservação dos Estados da Igreja; que, finalmente, se lançou na expedição do Mexico para contrariar os Estados-Unidos, sem todavia querer declarar a guerra a esta potencia; que, nos ultimos annos do seu reinado, tentou unir ao regimen imperial o regimen parlamentar, abrindo pessoalmente uma brecha na cidadella que tinha construido desde 1848.
 
Estes sonhos ousados, e por vezes contradictorios, constituiam o caracter phantasista de Napoleão {{smaller|III}}. Como elle mesmo disse, o seu destino parecia consistir em procurar a solução de problemas insoluveis.
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Qual fosse esse pensamento, dil-o tambem Gaulot, confirmando de uma maneira nitida a hypothese, até hoje vagamente formulada, de que elle pretendia ferir a republica norte-americana.
 
«Sobresaltado pelo immenso desenvolvimento que tinham tornado os Estados-Unidos, depois que com o auxilio dos francezes haviam sacudido o jugo da Inglaterra
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e conquistado a independencia, o imperador previa nos destinos de uma nação, que não tinha cem annos de existencia e que já possuia a supremacia no seu continente, uma ameaça e um perigo para o mundo antigo.»
 
Pensava Napoleão que a Europa viria a ser esmagada pela concorrencia, especialmente agricola e industrial, da florescente republica do norte da America.
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Este foi, portanto, o pensamento, embora arrojado, exequivel, do imperador dos francezes.
 
A seu lado, nas Tulherias, a imperatriz Eugenia animava o plano audacioso de Napoleão {{smaller|III}}, não tanto por previsão politica como por sentimentalidade. Os exilados mexicanos iam levar ao conhecimento da imperatriz os seus desgostos e as suas lagrimas, pedir protecção e auxilio. Fallavam-lhe em hespanhol, a lingua patria da imperatriz, que decerto lhe avivava saudosas recordações de infancia, predispondo-a á benevolencia. Membros do partido clerical, os exilados identificavam a sua causa com a da religião
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e do clero, attrahindo assim o espirito catholico da imperatriz, captando-o sentimentalmente.
 
No seu exaggero partidario, os exilados diziam que tudo se conseguiria com um simples passeio militar, e que o Mexico e a religião ficariam devendo á França uma gratidão eterna pelo restabelecimento da paz interior.
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Gutierrez de Estrada viera refugiar-se na Europa, cada vez mais exaltado na sua propaganda.
 
Em 1854 subira á presidencia da republica o general Sant'Anna, que commungava as mesmas
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idéas politicas de Gutierrez, e que lhe dera plenos poderes para tratar, nas côrtes de Paris, Londres, Vienna e Madrid, a questão do restabelecimento da monarchia no Mexico.
 
Gutierrez de Estrada dirigiu-se então ao duque de Montpensier, que declinou o offerecimento.
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D. Gutierrez de Estrada, presidente da deputação mexicana que foi a Miramar offerecer a corôa imperial ao archiduque Maximiliano, dissera-lhe:
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—Vimos pedir a vossa alteza que se digne subir ao throno do Mexico, aonde vos chamam os votos de um paiz ha longo tempo dilacerado pela guerra, pois que possuis o segredo de conquistar os corações e a sciencia difficil de governar.
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O deus das Tulherias promettia protegel-o, e tanto bastava n'uma época em que Bismarck não monopolisava ainda a direcção politica da Europa. De mais a mais, havia ao lado de Maximiliano uma gentil mulher que o amava, e que se ufanava de que o marido podesse cingir a cabeça com a corôa de um novo imperio, de que elle viria a ser o creador ostensivo.
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A serpente da tentação silvára o perfido hymno, que já tinha sido escutado por Eva no Eden. E, pondo os olhos nos sonhados deslumbramentos do futuro, o par ditoso de Miramar começou a esquecer o seu dôce passado desambicioso, o ''chalet'' florido da collina, as salas tranquillas do castello, o mar azul, que, mais leal do que o povo mexicano e que o imperador dos francezes, nunca lhe tinha suggerido a idéa de uma aventura perigosa.
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—Parece-me que não voltarei mais! dissera o imperador.
 
Mas a salva festiva de cem tiros, no momento em que o imperador embarcava, viera suffocar as suas palavras. A ''Novara'', desfraldando as côres do Mexico, esperava baloiçando-se. As archiduquezas atiravam, na ponta dos seus finos dedos patricios, beijos alados que iam, adejando, procurar a face da imperatriz. Os archiduques acenavam ao imperador com os seus lenços brancos, que fluctuavam como outras tantas azas de garça. A multidão seguia com um olhar attento, curiosamente interessado, todo esse extraordinario
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movimento de bateis que ondulavam em torno da ''Novara''. E no ''chalet'' da collina de Miramar,—o dôce ninho de amor agora solitario—a madresilva chorava em lagrimas de perfume insinuante o abandono em que a deixavam os dois ingratos coroados. E o castello, na grandeza lutuosa das suas ameias, parecia comprehender as lagrimas da madresilva saudosa, e responder-lhe agoirentamente: «Como é louca a ambição! como é cega a cobiça!»
 
A ''Novara'', seguida da ''Thémis'', levantou ancora, e de pé, no tombadilho, tanto quanto os oculos de longa vista podiam abranger, Maximiliano, immovel como uma estatua, voltado para Miramar, devorava com os olhos o seu bello castello solitario.
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Dizia o aviso que Roma inteira lêra com surpreza:
 
{{margem esquerda|10%}}<poem>Maximiliano non ti fidare,
</poem>
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<poem>
Maximiliano non ti fidare,
Torna sollecito a Miramare!
Il trono fradicio di Montexuma
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O ''diario de viagem'' de Maximiliano accusa claramente o desalento intimo da sua alma. «O mundo, escrevia elle, é pequeno, e todavia como se é baldeado de uma a outra extremidade da terra! Felizes os que se encontram!»
 
A ''Novara'', sempre seguida pela ''Thémis'', passou na ilha da Madeira, onde Maximiliano havia estado em 1852. Então, doze annos antes, consignára nas suas {{sc|Memorias}} uma impressão deleitosa, de despreoccupada
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felicidade: «Surge-me das ondas uma ilha encantada, resplendente dos raios de um sol tropical. O mar era transparente, ceruleo, o ar impregnado de perfumes inebriantes. Collinas basalticas, côr de violeta, relevavam d'entre o arvoredo cuja folhagem, de um verde brilhante, accentuava todas as energias da primavera. A minha alma, extasiada, inundava-se de alegria. Uma celeste pureza dominava o quadro...»
 
Agora, doze annos corridos na existencia placida de Miramar, a impressão que Maximiliano recebêra na ilha da Madeira fora bem differente. A corôa do Mexico, que não começára ainda a ser de espinhos, era já, comtudo, um fardo pesado. Vindo a terra, o imperador visitara os mortos, entrára no cemiterio do Funchal, e colhêra de uma campa solitaria uma rosa triste, que conservou toda a sua vida, mais como uma reliquia, do que como uma simples recordação.
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No Mexico uma faxa de areia, arida como um deserto, desenrolava-se ardente, apesar do fluxo refrigerante das ondas.
 
Á aridez da terra correspondêra a aridez da recepção. A ''Thémis'' tinha-se adiantado para annunciar a chegada dos imperadores, mas, apesar dos esforços
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que o almirante Bosse empregára para salvar as apparencias, o povo do Mexico conservou uma attitude indifferente, porque não diremos, hostil? Que contraste entre esta recepção glacial e a despedida affectuosa de Trieste!
 
Maximiliano começou a comprehender a terrivel verdade que o pasquim de Roma lhe annunciára.
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A melhor sociedade do Mexico brilhava pela sua ausencia.
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O melancolico palacio de Chapultepec, que fôra destinado para residencia dos imperadores, contrastava dolorosamente não já com a opulencia, senão tambem com o conforto do castello de Miramar.
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A installação do imperio devia fazer prever a sua existencia ephemera e o seu fim desastroso.
 
O Mexico não poderia ser regenerado por um só homem, por maiores que fossem a energia e a dedicação d'esse homem. Paiz devastado pelas guerras civis, estava atrophiado, desorganisado, inculto. Não havia escólas, estradas, agricultura. Maximiliano teve
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occasião de o reconhecer quando emprehendeu, arrostando com grandes perigos e incommodos, uma viagem através do seu novo imperio.
 
O roubo parecia guindado á altura de uma instituição nacional. E não eram só os ''leperos'', especie de ''lazzaroni'' do Mexico, que roubavam; do palacio imperial desappareceram por vezes objectos preciosos.
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N'este fervoroso trabalho era auxiliado corajosamente pela imperatriz, que passava os dias escrevendo a correspondencia politica do imperio, destinada ás côrtes da Europa.
 
Entretanto, os perigos que rodeiavam Maximiliano cresciam como uma onda temerosa. O partido juarista engrossava, as guerrilhas augmentavam, os
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bandoleiros faziam audaciosas incursões até ás portas da capital. Bazaine casára com uma senhora mexicana; creára, portanto, ligações e interesses no Mexico, a sua sinceridade devia tornar-se suspeita a Maximiliano que, para conservar-se no throno, não tinha outro ponto de apoio senão a França.
 
Fôra Bazaine que aconselhára o imperador a decretar uma lei severa contra todos os bandos armados que infestavam o Mexico.
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Que triste realeza a de Maximiliano, rodeiado de bayonetas no seu proprio palacio!
 
Coincidiu com este deploravel estado de coisas o termo da occupação franceza. Tres annos haviam passado. Napoleão {{smaller|III}}, que principiára a medir todo o alcance d'essa louca aventura do Mexico, procurava um pretexto desleal para mandar retirar a expedição franceza. Os Estados-Unidos deram-lhe o pretexto. E Maximiliano, vendo-se perdido, enviou á Europa, a
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implorar a protecção de Napoleão {{smaller|III}}, a imperatriz Carlota.
 
Foi em agosto de 1866 que a desventurosa imperatriz chegou a Saint-Cloud. Os imperadores vieram recebel-a ao fundo da escada, com esse requinte de cortezia palaciana cuja intenção nem sempre é sincera. Feitos rapidamente os cumprimentos do estylo, o imperador e as duas imperatrizes encerraram-se em conferencia n'um gabinete particular.
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{{margem esquerda|2em}}«A imperatriz do Mexico, que contava então apenas vinte e seis annos, denunciava longas angustias, profundas inquietações. Alta, de um porte elegante e nobre, o rosto redondo, os olhos negros e salientes, as feições graciosas, a imperatriz trajava um longo vestido de sêda preta, ainda vincado das dobras da mala em que fôra acondicionado durante a viagem e de que fôra tirado á pressa, sem ter havido tempo de o arejar; um mantelete de rendas pretas, e um chapeu branco muito enfeitado, que tinha sido comprado n'essa manhã em casa de uma das primeiras modistas. O calor era n'esse dia asphyxiante, e fôsse por effeito do longo trajecto em carruagem, ao sol, desde Paris a Saint-Cloud ou por effeito das commoções que a agitavam, as faces da imperatriz estávam vivamente rosadas.
 
«Acompanhavam-n'a duas damas de honor, mexicanas, muito feias, morenas, pequenas e desgraciosas,
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que fallavam o francez com difficuldade. Ao passo que os soberanos conferenciavam largamente e sem testemunhas, esforçavamo-nos por entreter estas duas estrangeiras, que pareciam muito perturbadas. Eu consegui trocar algumas phrases com uma d'ellas, e, para matar o tempo, offerecemos-lhes alguns refrescos.
 
«A dama mexicana pediu-me que mandasse uma laranjada á imperatriz Carlota, que, segundo me disse, costumava, áquella hora, tomar esse refresco. Dei immediatamente ordem na ucharia para que servissem a laranjada. A imperatriz Eugenia, contrariada com a entrada do criado, perguntou quem lhe tinha dado a ordem. Respondeu que fôra eu, e foi a propria imperatriz Eugenia que serviu a laranjada á imperatriz Carlota, tendo que insistir para que a tomasse, porque a imperatriz do Mexico parecia hesitar.»</div>
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Foi chorando copiosamente que a imperatriz Carlota deixára Saint-Cloud. Pobre coração de mulher, que uma dôr incomportavel dilacerava! Entrára em Saint-Cloud uma imperatriz; sahira uma louca.
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De Paris, essa desgraçada senhora fôra para Roma, implorar o auxilio do chefe da igreja catholica. Receiosa de que a quizessem envenar, depois que lhe serviram a laranjada em Saint-Cloud, apenas se alimentava de fructas. Entrou no Vaticano no momento em que Pio {{smaller|IX}} almoçava. Arrancando da mão do Papa uma chavena de chocolate, tomou-o soffregamente exclamando:
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Conduziram-n'a a Miramar, na esperança de que o aspecto de lugares conhecidos e queridos lhe restituisse a razão. O povo de Trieste, supersticioso como todo o povo, começou a consideral-a uma santa. Sim, santa de martyrio, santa de soffrimento. Mas louca para toda a vida. A dôr santificára-se n'ella em loucura. Deus fôra mais piedoso do que os homens creados á sua imagem e semelhança.
 
Bazaine, sahindo do Mexico, abandonára o imperador ás represalias dos juaristas. Antes de sahir, fizera lançar ao rio Sequia e ao lago Texcoco todas as suas munições. Que refinada perversidade a d'esse homem, que a Providencia castigou tão justa e sabiamente! Diz-se até que Bazaine tinha proposto a Juarez entregar-lhe Maximiliano por 50:000 dollars.
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Naturalmente, Juarez, visto que Maximiliano ficava indefeso, achou caro. Podia tel-o de graça logo que o exercito francez retirasse. E assim foi. Juarez era mais esperto do que Bazaine, mas não menos ambicioso.
 
O que fazia entretanto o imperador Napoleão? Nada. Pedia a Maximiliano que fugisse. Maximiliano respondia nobremente que um Habsburgo não sabia fugir como um cobarde. Apenas consentiria em sahir como um imperador, renunciando á corôa.
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{{c|{{x-smaller|IX}}}}
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IX}}}}
 
A retirada da expedição franceza déra alento a Juarez, que ameaçou ir cercar a capital.
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A sorte das armas deveria decidir da victoria entre o exercito do imperador e o de Juarez. Os acontecimentos futuros dependiam pois da vantagem que o azar dos combates désse a um ou a outro dos dois contendores. Mas o coronel Lopez, ajudante do imperador, apressou, dizia-se, o desfecho do drama com uma traição ignobil: vendêra Maximiliano aos juaristas por 2:000 onças de oiro. E todavia Lopez havia sido extremamente beneficiado pelo imperador com generosas dadivas, sabia-se<ref name="Nt8">Já depois de escripto este artigo, que foi suggerido pelo livro de madame Carette, appareceu no {{sc|Gil Blas}} (de 25 de setembro de 1889) a cópia de um relatorio que o general Escobedo dirigiu ao general Porphirio Diaz, presidente da republica do Mexico, e que primeiro fôra estampado no {{sc|Novo Mundo}}, jornal officioso do governo mexicano em Paris. O coronel Lopez, que ficára reduzido a viver do producto de uma casa de banhos que estabelecêra no Mexico, soffrêra durante vinte annos a accusação de traidor, que geralmente lhe era feita, e que sua propria esposa acreditou, porque, quando elle voltou ao Mexico, depois do fuzilamento de Maximiliano, ella esperára-o á janella, com um filho pequeno nos braços e, vendo-o chegar, gritára: «Tu és um traidor e eu não quero que esta creança seja o filho de um traidor». Dizendo isto, deixou cahir o filho á rua. Lopez tragára em silencio todas estas affrontas e injustiças, e só se resolveu a fallar, a pedir um testemunho rehabilitador ao general Escobedo, vinte annos depois! Escobedo respondeu officialmente com o relatorio, no qual declara que o coronel Lopez o procurara a 14 de maio de 1867 para lhe dizer que Maximiliano pedia que o deixassem embarcar, devidamente escoltado, no porto de Tuxpam ou Vera-Cruz, sob palavra de que jámais voltaria ao Mexico. Seria pois para occultar este acto do imperador, que Miguel Lopez teria guardado segredo. Lopez abonou a sua declaração com este bilhete, que Maximiliano lhe escrevêra, e cuja authenticidade o general Escobedo reconheceu: «Mon cher colonel Lopez. Nous vous recommandons de garder un profond silence au sujet de la commission dont nous vous avons chargé près du général Escobedo, car si ce secret était divulgué, notre honneur serait entaché. Votre très affectionné, ''Maximilien''.»
 
Custa a acreditar que o coronel Lopez atravessasse silencioso vinte annos de descredito, mas, se assim foi, o seu nome está rehabilitado.
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E a fraqueza do imperador, na situação desesperada em que se achava collocado, não excede os limites da comprehensão humana, posto diminua ao perfil historico de Maximiliano o cunho da heroicidade, que o engrandecia na desgraça.</ref>.
 
Na madrugada de 15 de maio de 1867, o imperador, que costumava levantar-se muito cedo, viu Queretaro em poder dos juaristas. Graças ao general Rincon, pôde ainda ir refugiar-se na pequena collina de Cerro de las Campanas, que domina a cidade.
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Escobedo, general juarista, deu-se pressa em sitiar a collina. O imperador, reconhecendo que toda a tentativa de resistencia seria um sacrificio inutil, mandou atar um lenço branco na bayoneta de uma espingarda. Capitulava. Pouco depois entregava a sua espada ao general Corona, e era conduzido, com os outros prisioneiros, ao convento de Santa Theresita, d'onde foram transferidos para o convento dos Capuchinhos.
 
Juarez mandou reunir o conselho de guerra para julgar os prisioneiros. Maximiliano recusou-se a comparecer. Durante tres dias funccionou o conselho: no
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banco dos réos estavam sentados os generaes Miramon e Méjia, imperialistas. A sentença foi de morte: o imperador e os dois generaes deviam ser passados pelas armas. Marcou-se a execução para o dia 19, e de nada valeram os esforços empregados junto de Juarez pelos embaixadores da Prussia e da Inglaterra para obterem o perdão dos condemnados.
 
Na noite anterior, Maximiliano pediu uma tesoura ao carcereiro. Foi-lhe recusada. Supplicou então que lhe cortassem uma madeixa do seu cabello e incluiu-a n'esta carta que escreveu á imperatriz:
 
{{margem esquerda|2em}}«Minha querida Carlota. Se Deus permittir que melhores um dia e que leias estas linhas, conhecerás a crueldade do destino que não deixou de perseguir-me desde a tua partida para a Europa. Levaste comtigo a minha felicidade e a minha alma. Por que
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te não ouvi eu?! Tantos acontecimentos, tantas catastrophes inesperadas e immerecidas me teem esmagado, que, desamparado da esperança, vejo na morte o anjo da redempção. Morro sem agonia. Cahirei com gloria, como um soldado, como um rei vencido... Se não tiveres forças para arrostar com tamanho soffrimento, se Deus em breve te reunir a mim, abençoarei a sua mão paterna e divina que tão rudemente nos feriu. Adeus! adeus!
 
{{c|Teu pobre—''Max''.»}}</div>
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—Que bello dia! Sempre esperei morrer n'um dia de sol.
 
Entrou na carruagem descoberta que lhe era destinada. Os generaes Miramon e Méjia, cada um em sua carruagem, seguiam a do imperador. Eram escoltados por quatro mil homens. O funebre cortejo poz-se a caminho para o Cerro de las Campanas. Os
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condemnados iam de pé, serenos, tranquillos. As ruas e janellas estavam cheias de gente. Maximiliano, diz Tissot, nunca pareceu mais bello do que n'essa occasião. As mulheres desviavam o rosto para occultar as lagrimas.
 
Houve um momento em que o general Méjia se perturbou: foi quando sua esposa, com o filho, recem-nascido, nos braços, rompeu d'entre a multidão, os cabellos em desordem, o gesto allucinado. Méjia escondeu o rosto entre as mãos. Foi esta a unica fraqueza no espectaculo heroico d'aquelle triplice fuzilamento.
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Apertou a mão de Miramon, em primeiro lugar, dando a razão da preferencia:
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—General, ao mais bravo, o lugar de honra.
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—Carlota! Carlota! exclamou Maximiliano.
 
E quando a fumarada se dissipou, tres cadaveres
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ensanguentados jaziam ao sol no Cerro de las Campanas.
 
O drama do Mexico, preparado por Napoleão {{smaller|III}}, tinha tido o seu ultimo acto.
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A imperatriz Carlota vive ainda, se dos loucos se póde dizer que vivem. Tem hoje quarenta e nove annos de idade. Está habitualmente no castello de Laeken, onde nasceu. Seu irmão e sua cunhada, os reis da Belgica, fazem-n'a rodear dos maiores carinhos por meio de uma assistencia dedicada e vigilante. Todos os caprichos da pobre louca são pontualmente satisfeitos. Ás vezes sonha ella ser ainda imperatriz, quer dar recepções solemnes, festas magnificas. E os convivas que n'esses momentos a rodeiam são bonecos vestidos á côrte, que ella saúda com uma longa mesura, arrastando magestosamente sobre o tapete a cauda roçagante do seu manto imperial.
 
Um viajante que esteve ha pouco tempo em Laeken viu-a encostada a uma janella do castello. Scismava.
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Quem sabe se, através do nevoeiro que lhe envolve a razão, não avistaria ao longe, muito ao longe, vaga e confusamente, o seu antigo castello de Miramar, como no fundo de um sonho doloroso uma memoria truncada!
 
Graças aos esforços empregados pela Russia, o corpo de Maximiliano foi restituido em 1867, sendo por essa occasião libertados alguns soldados austriacos que se conservavam prisioneiros, e perdoado o principe Salms-Salms, que tinha sido condemnado á morte com o imperador.
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<span id="chapIX">{{c|{{larger|IX}}}}
 
{{c|{{larger|'''O Paiz dos Meninos...'''}}}}
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Paiz dos Meninos...'''}}}}
 
 
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Os loiros ''babys'', que aguardam impacientemente a chegada de mais um irmão pequenino, contentam-se ingenuamente com a resposta que lhes damos—de que o menino viera de França—e, annos volvidos, quando a malicia do mundo lhes revelou o segredo da procreação da especie humana, elles mesmos continuam a tradição dizendo por sua vez aos filhos curiosos—que viera tambem de França aquelle lindo menino, que lhes offerecem para irmão.
 
Mas... ó triste idade a nossa, em que já se não acredita em quasi nada, e muito menos em ''meninos que
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vêm de França''!... mas por que razão se escolheu a França como paiz ideal de onde todos os meninos portuguezes são oriundos! A phrase ficou lendaria entre nós, a tradição subsiste com a mesma intensidade, com ella ludibriaram a nossa curiosidade infantil, e com ella, por nossa vez, respondemos á pergunta, por igual curiosa, de nossos filhos.
 
Não haveria um facto historico que determinasse a origem d'esta tradição? Aposto que o leitor nunca pensou n'isto! Nunca! É celebre! Tanto mais celebre, se é certo que já alguma vez encommendou para França meninos recemnascidos.
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Posto este brevissimo exordio, entremos no assumpto, quero dizer na chronica de Duarte Nunes.
 
Depois de ter contado como o infante D. Affonso casára em França com a condessa Mathilde de
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Bolonha, viuva de Filippe o ''Crespo'', e como, sendo acclamado rei de Portugal, a repudiára para desposar a filha do rei de Castella, empenha-se Duarte Nunes em demonstrar, por documentos authenticos, que a condessa de Bolonha não houvera filhos de D. Affonso de Portugal.
 
A dissertação do chronista tem por fim rebater uma lenda, que se enraizára entre o povo portuguez, e sobre a qual assenta a hypothese que eu pretendo formular.
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Escreve, pois, o historiador:
 
{{margem esquerda|2em}}«... resta satisfazer ás fabulas da gente popular, que ficaram por historia de mão em mão, e que o chronista Fernão Lopes conta na vida do dito rei, não sabendo o que seguisse, nem o que fugisse, por a pouca informação que d'aquelles tempos rudes pôde alcançar, e por o pouco discurso que elle n'isso podia fazer por falta de noticia das historias estrangeiras. Primeiramente diz que passados alguns annos depois de o infante D. Affonso partir de Bolonha, soube a condessa sua mulher como el-rei D. Sancho era fallecido, e o conde D. Affonso seu marido levantado por rei. E que não sabendo ser elle casado, armou uma frota, em que veiu a este reino. E que aportando a Cascaes, soube do casamento de seu marido com a filha d'el-rei de Castella, e estar com ella recreando-se na aldeia de Friellas, termo de Lisboa. E que fazendo-lhe saber de sua vinda, e requerendo-lhe a recebesse a ella, e se apartasse
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d'aquella mulher, com que estava em peccado, el-rei lhe mandou que se fôsse fóra de seu reino. Contam mais que a condessa se tornou para França, deixando-lhe um filho que trazia, segundo a opinião de alguns; e outros diziam que o tornou a levar, e de lá o mandou depois a Portugal.»</div>
 
Aqui é que bate o ponto.
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Diz a chronica:
 
{{margem esquerda|2em}}«E para que a gente vulgar, que não se move tanto por razões, quanto pelos sentidos de vista e ouvida, se satisfaça, é necessario declarar-se que sepultura era a de S. Domingos de Lisboa, em que havia fama no povo que estava enterrado um menino filho da condessa Mathilde e d'el-rei D. Affonso seu
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marido, que diziam que era o que trouxera comsigo ou ''mandára de França''.»</div>
 
Duarte Nunes viu a sepultura, e descreve-a. A caixa era de marmore branco, com varios ornatos esculpidos á roda, figurando arvoredo e montaria de porcos e cães. As lettras do epitaphio eram gothicas. Mas as dimensões da sepultura denunciavam o cadaver de um adulto, não de um moço de pouca idade. Vinte annos antes de Duarte Nunes escrever a chronica de D. Affonso {{smaller|III}}, querendo o prior de S. Domingos «despejar o cruzeiro (onde a sepultura estava) ou por não lêr aquellas lettras, porque constava jazer alli um filho do rei, que fundou aquella casa, ou por cuidar que seria algum menino», abriu-se a sepultura e achou-se um corpo incorrupto, sanissimo, diz o chronista, reconhecendo-se que era de ''homem grosso''. Os ossos foram trasladados para outra sepultura, proxima á capella de Santo André.
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Como se vê, a lenda do ''menino que viera de França'' generalisou-se entre o povo portuguez, e atravessou os seculos sem perder uma parcella da sua popularidade. O proprio prior de S. Domingos, que devia ser homem ilustrado, teve duvidas, e só se desenganou depois de ter mandado abrir a sepultura.
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A lenda cahiria então em algum descredito, que aliás não foi completo, como logo veremos, mas, a locução, havendo-se tornado tradicional, permaneceria, chegando até nós. Para de algum modo satisfazer á curiosidade ingenua das creanças, dir-lhes-iam que todos os meninos ''vinham de França'', como o da lenda. E assim o phenomeno physiologico da maternidade ficaria na imaginação das creanças envolvido no mesmo mysterio, que pesou sobre o nascimento de um filho de D. Affonso {{smaller|III}} e da condessa de Bolonha até ao dia em que na igreja de S. Domingos foi aberta a respectiva sepultura.
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Com o reconhecimento do cadaver desfez-se o mysterio, mas a lenda subsistiu conservando a locução, tanto mais que ficou a perpetuar a lenda um monumento em que a imaginação popular a materialisou.
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Sabe o leitor que monumento é esse? Não sabe, decerto. São alguns rochedos que afloram do mar na barra de Lisboa.
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Graciosos na sua elegante singeleza são tambem este e os outros relanços da chronica de Duarte Nunes.
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Não sei se o leitor ficará inclinado a acreditar que a lenda do menino de S. Domingos haja dado origem á locução proverbial de que os meninos recemnascidos vêm de França.
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Em França diz-se que o menino nasceu nas couves, ''qu'il est né dans les choux''; e até em algumas participações de nascimento se vê representada uma creança emergindo d'entre folhas de couve.
 
Em Italia a expressão é outra: que a mamã comprou um
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menino:—''che la mammá ha comperato un bambino''. Em Inglaterra a locução tem o mesmo sentido que na Italia: ''to buy a baby''.
 
Na Allemanha ha uma phrase, que corresponde a uma lenda. A phrase é esta: ''Der Storch bringt die Kinder aus dem Milchbrunnen''. (A cegonha traz os meninos do poço de leite). A lenda conta que as creanças jazem n'um poço, chamado—das creanças—, o qual é muito fundo. Se os meninos querem uma irmãsinha ou um irmãosinho, pedem á cegonha que os vá tirar do poço com o seu comprido bico, o que ella faz de noute, mettendo-os pela janella da casa, onde as respectivas mamãs os vão buscar.</ref>
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Os jornaes não teem fallado de outro assumpto, e os pais de familia vêem-se sériamente entalados para explicar aos ''bebés'' o motivo por que esse lindo principesinho que ha de vir de França (e que deve ser lindo como todos os principes) não chegou ainda, a despeito de fazer-se esperar por toda a familia real e por todos os habitantes do paiz.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/281]]==
 
Tem sido realmente preciso dar tratos á imaginação para explicar phantasiosamente o caso d'essa demora imprevista, para satisfazer a justa curiosidade dos ''bebés'', e se o ''accouchement'' da princeza Amelia tardar ainda mais alguns dias, receio muito que chegue a esgotar-se a imaginação dos pobres pais de familia.
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Finalmente, são as andorinhas que reclamaram para si o direito de vir trazendo o principesinho nas suas azas, mas como as andorinhas sejam pequenas ainda mais pequenas do que o principe, o emissario vê-se forçado a dar-lhes frequentes descansos.
 
Durante vinte e quatro horas, os ''bebés'', não tendo ouvido os foguetes, acreditam na desculpa que
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se lhes dá, mas no dia seguinte, como a demora vá continuando, é preciso inventar uma desculpa, e um pai de familia, por muito amor que tenha aos seus filhos, póde não ter tanta imaginação que chegue para cada um d'elles...
 
Entretanto, os ''bebés'' e os adultos vão esperando pelo principesinho que ha de chegar de França n'um bercinho de verga doirada, deitado n'uma almofadinha de sêda, entre rendas e flôres, sobrescriptado para o Paço de Belem.
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{{c|'''.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;'''}}
 
O dr. Ravara encolhe os hombros, a snr.ª Prévot
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consulta os guias de viagem, o dr. Greneau pergunta se não estará sonhando, mas o que é certo é que a pequenina alteza, sabendo talvez que já vai sendo um pouco amargo ser principe, parece não ter pressa nenhuma de o ser!
 
Aposto que sua possivel alteza está talvez dizendo a esta hora:
 
—Querem-me lá para começarem desde logo a discutir-me! Pois vão esperando por mim. Que o Magalhães Lima vá aguçando a penna, e o Consiglieri Pedroso vá ensaiando a voz. Eu bem sei que elles não são meus amigos e o meu coração é tão pequenino que não comporta odios contra ninguem. Como não saberei odial-os, não estou para os aturar por ora. Que vão esperando. Teem lá muito que discutir, encham os jornaes republicanos como pudérem, que eu não estou para me aborrecer. Se eu fosse filho de um saloio de Alcabideche ou de um piloto de Cascaes, não teria duvida em chegar depressa. Ninguem daria pela minha chegada, e eu poderia regaladamente dormir o meu primeiro somno. Mas como sou filho do herdeiro da corôa de Portugal, como eu sei que tenho de aturar os republicanos e as peças de artilheria, os foguetes e os jornaes, os repiques de sino e os repiques dos poetas, como eu calculo que tudo isso deve ser muito massador, vou-me deixando estar onde estou, no paiz dos possiveis, gozando da regalia que tenho de me fazer esperar, visto que, depois que eu fôr crescido, todos ralharão se me fizer esperar cinco minutos em qualquer parte...
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/284]]==
 
O dr. Ravara continúa a vêr-se embaraçado com as perguntas que lhe fazem, o snr. conde de S. Miguel deixa de jantar, a snr.ª Prévot vê-se sériamente atrapalhada, mas a verdade é que o principesinho não chega porque não tem vontade nenhuma de chegar.
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==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/285]]==
 
<span id="chapX">{{c|{{larger|X}}}}
 
{{c|{{larger|'''Um rei entre montanhezes'''}}}}
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/286]]==
Um rei entre montanhezes'''}}}}
 
{{c|{{x-smaller|(Outubro de 1887)}}}}
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Para as pessoas que apenas teem feito á roda de Lisboa pequenas excursões de recreio, a viagem da familia real ao Alto Minho foi motivo de tamanha surpreza, que muitas d'essas pessoas inclinam-se a pensar que não passa tudo de uma historia fabulosa, similhante ás que Julio Verne conta nos livros interessantissimos, posto que phantasticos, das suas ''Viagens maravilhosas''.
 
Mas a verdade é que o Alto Minho existe realmente com todos os seus segredos de ethnographia pittoresca, de uma simplicidade primitiva, quasi prehistorica,
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e que a familia real portugueza acaba de passar tres dias n'essa região ignorada, defendida da contacto das gentes pela altitude penhascosa das suas montanhas alpestres, pela torrente espumosa das suas rapidas cataractas, e pelo accesso difficil das suas quebradas profundas, dos seus picos ingentes, e dos seus barrocaes pavorosos.
 
O Gerez não é precisamente uma serra que os snrs. ''reporters'' tenham mais ou menos phantasiosamente recortado sobre os contornos das montanhas alcantiladas da Escocia ou da Suissa, eriçadas de sarçaes, esmaltadas de lagos argenteos e povoadas de raças autochtones, que se manteem na plenitude da sua originalidade rudimentar.
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O Gerez não é uma fabula, não senhores, é uma cordilheira que existe tão realmente como a podem vêr os povos confinantes do Minho e Traz-os-Montes, estendendo-se na direcção de nordéste para suduéste e na extensão de sete leguas, desde Pitões até Rio Caldo.
 
Esta serra notavel, cujo terreno é de uma formação geologica primitiva, conserva, em harmonia com o seu granito silicioso, uma bella ''mise-en-scène'' por
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igual primitiva, movimentada por actores montesinhos, que parecem representar alli o drama sacro de um genesis eterno.
 
Toda a fauna conserva um cunho de selvageria aborigene, porque os lobos, os javalis, os veados, as cabras montezas, os bufos, as aguias reaes são ainda hoje os dominadores incontestados das mattas cerradas e dos invios labyrinthos alpinos das florestas virgens do Gerez.
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Está por acaso estudada a flora do Gerez em todos os arcanos da sua vegetação luxuriante? Não está decerto. Pois o mesmo acontece com relação a essa outra flora, deixem-me assim dizer, das tradições ou das lendas locaes, de que apenas se conhece vagamente um ou outro ''specimen''.
 
Sobre o ''penedo da Santa'' raros olhos terão visto impressos na rocha os vestigios que os serranos contam ser os dos joelhos e pés de Santa Eufemia, que
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alli vivêra vida eremitica, quando andava fugida á perseguição de seu pai, governador romano da cidade de Braga.
 
N'um valle de Covide poucas pessoas terão examinado um eito de pedras lavradas, que lá denominam ''fileiras'', e que, segundo a tradição local, foram alli collocadas de proposito para obstar a que os ursos atacassem as colmêas, porque os ursos usavam abraçar-se aos cortiços, rolal-os até encontrarem agua e ahi, afogando as abelhas, comer tranquillamente o mel dos favos.
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Todo o bom lisboeta, mesmo aquelle que por engano costuma dar ''excellencia'' ao rei, ficou hilariantemente surprehendido de que um montanhez minhoto saudasse o snr. D. Luiz dando vivas ao ''reverendo snr. rei, que é um bom homem''.
 
N'aquellas regiões alpestres, onde a pureza dos
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costumes é ante-diluviana, ainda o ''ser bom'' constitue o supremo elogio de quaesquer homens, incluindo os reis.
 
Em Lisboa, na ''baixa'' ou na ''alta'', tanto monta ser bom como ser mau. Mas no Gerez a ignorancia de formalismos e pragmaticas é tão profunda como a ignorancia de tudo o mais.
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Lembrassem-se elles do seu Frei Luiz de Souza e da pagina que rememora a visita de Frei Bartholomeu dos Martyres á serra de Barroso.
 
«Correu a voz, pela serra—diz o classico dominicano—da vinda do arcebispo. Abalou-se toda; foi o alvoroço e alegria sem medida. Juntavam-se a recebel-o pelos caminhos com suas danças e folias rudes, que era o extremo da festa que podiam fazer. E, porque não fossem julgados por menos agrestes que
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os seus mattos, nas cantigas, que entoavam entre as voltas e saltos dos bailes, publicaram logo a quanto chegava o que sabiam do ceu e da fé. Um dizia assim: ''Benta seja a santa Trindade, irmã de Nossa Senhora''.»
 
Chamar á Santissima Trindade irmã de Nossa Senhora não é menor desacerto do que chamar reverendo ao rei.
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A freguezia está dividida em cantões, governados por um juiz que os habitantes elegem d'entre si. O povo entrega ao juiz a ''carrapita'' (o busio), e quando o juiz entende que é preciso reunir assembléa geral, para tomar qualquer deliberação, convoca o povo tocando o busio.
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Então, de todas as casas principiam a sahir os homens vestidos de burel, com calções, polainas e barrete, as mulheres vestidas de lã, colletes curtos, cabello cortado, lenço de linho na cabeça, e, assim reunida a communa, resolve, como outr'ora faziam os lusitanos e como ainda hoje costumam fazer os bascos, representantes dos primitivos iberos.
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==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/293]]==
 
<span id="chapXI">{{c|{{larger|XI}}}}
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/294]]==
XI}}}}
 
{{c|{{larger|'''No harem de Marrocos'''}}}}
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Estou d'aqui a ouvir uma oradora do harem discursando, cheia de indignação, ás suas companheiras de desgraça.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/295]]==
 
—Senhoras, diria porventura ella, um sultão que não faz uso do seu harem, por amor de uma só mulher, póde ser um bom marido, mas é com certeza um detestavel sultão.
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—Ainda ha alguma coisa mais insignificante talvez.
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—O que é?
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A mesma odalisca, com o ''Temps'' na mão:
 
—Segue-se que o ministro da guerra ordenou que o general Boulanger soffresse trinta dias de detenção.de
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/297]]==
tenção.
 
Uma voz:
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Afinal decidiram pelo veneno, allegando talvez alguma odalisca que um sultão retirado difficilmente readquire os seus antigos habitos, seja qual fôr a droga que se lhe propine.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/298]]==
 
E emquanto as odaliscas conspiravam, é provavel que a favorita, depois de ter enfiado na cabeça do sultão o barrete de algodão branco, e de lhe haver conchegado aos sovacos a roupa da cama, principiasse a cantar-lhe qualquer canção terna que o acalentasse, como por exemplo:
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—Então! snr. meu marido! Deixe lá isso e durma, quando não ralho muito comsigo.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/299]]==
 
E o sultão, espirrando de novo:
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Estão em Pesth duas cantoras de Café-Concerto, mesdemoiselles Morgot e Elisa Roger, duas irmãs.
 
Por occasião da sua recente passagem em Pesth, o rei Milan da Servia, ouvindo elogiar a belleza das duas «chanteuses», manifestou desejo de as vêr pessoalmente,
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/300]]==
e, acompanhado do conde Eugenio Zichy, foi visital-as. Um jornal de Pesth, sabendo da visita, alludiu ao caso, em breves palavras, no seu noticiario. O incidente não fizera ruido e estava já esquecido, quando, tres semanas depois, as duas irmãs appareceram subitamente na redacção do jornal e intimaram o redactor indiscreto a dar-lhes explicações. O redactor riu-se e gracejou. Resolveram então intentar um processo,—que sem duvida será picante: o rei Milan e o conde Zichy serão citados a comparecer para testemunhar que a visita que fizeram ás galantes e formosas cantoras foi «pura e simples visita de delicadeza».
 
A rainha Natalia, que é curiosa de mais para deixar de lêr gazetas, teve naturalmente conhecimento do facto, e, agastando-se de novo, oppoz-se á reconciliação, que parecia estar em bom terreno.
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Agora é facil a resposta.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/301]]==
 
—Quem deveria ser o sultão de Marrocos era o rei Milan da Servia.
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<span id="chapXII">{{c|{{larger|XII}}}}
 
{{c
{{c|{{larger|'''Idyllio de amor'''}}}}
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/302]]==
|{{larger|'''Idyllio de amor'''}}}}
 
 
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Viagem poetica, cheia de encantadoras antitheses por certo, emprehendida por um rei poeta, em cuja familia ainda ha poucos dias fallou com insistencia a Europa inteira a proposito do casamento romantico do duque de Gothland, segundo filho do rei Oscar.
 
Na familia real da Suecia os principes conservam não só os ideaes cavalheirescos da Idade-média, mas até as alcunhas graciosas dos livros de cavallaria. Assim, o principe Carlos, terceiro filho do rei Oscar,
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é conhecido pela designação de ''principe azul'', por usar sempre um uniforme d'essa côr; e o principe Eugenio, o mais novo dos irmãos, é denominado o ''principe vermelho'', em razão dos seus avançados principios liberaes.
 
Comprehende-se que, dada a influencia do ''meio'' geographico, a situação deliciosa da Suecia haja actuado no espirito do principe Oscar para contrahir um casamento que não teve como mobil senão o amor.
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Stockolmo, a capital que a familia real habita, é, para que assim o digamos, a synthese de toda a bella natureza scandinava. Disposta sobre o lago Mœlar, occupa algumas das mil duzentas e sessenta ilhas que mosqueam toda a feérica superficie do lago. É a Veneza do Norte.
 
Madame Leonie d'Aunet, a intrepida viajante do Spitzberg, sentiu-se vivamente impressionada pelo aspecto
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/304]]==
do palacio dos reis da Suecia, uma residencia encantadora onde se comprehende que todos os sonhos da imaginação exaltada possam atear-se.
 
«O palacio dos reis da Suecia, como a cidade, tira da posição em que se acha situado, entre o mar e o lago, a sua principal belleza. Quadrado, uma das fachadas do palacio domina uma soberba ponte de pedra lançada sobre o Mœlar. Esta ponte, cujo arco central repousa sobre uma pequena ilha transformada em delicioso jardim, é de um aspecto encantador. A architectura do palacio recorda a do Louvre, modificada pelo gosto pesado, sobrio e frio do seculo {{smaller|XVIII}}; apenas as proporções do conjunto podem ser gabadas sem reserva; a fachada que olha para o mar, precedida de um jardim, ornada de um largo balcão de pedra, é de um bello effeito, sobretudo vista de longe.»
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Foi ahi certamente, n'esse largo balcão de pedra que olha para o mar sem limites, que o principe Oscar, duque de Gothland, pensou uma e muitas vezes na enorme difficuldade da empreza que o seu coração namorado tentára.
 
Mademoiselle de Munck, filha de um antigo official do exercito sueco, era a sua bem amada, e o
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principe pensava exclusivamente no modo de poder desposal-a, ainda que para isso fosse preciso arremessar ao mar, do alto do largo balcão de pedra, a sua corôa de principe, o seu titulo de duque.
 
Mas o mar ensinava-o a ser forte, embora, para vencer, tivesse de parecer sereno.
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Dissera-lh'o Ebba Munck, a quem elle abrira o seu coração.
 
Era certo que ella fugira da côrte, para evitar o
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/306]]==
olhar do principe que a dominava, mas amava-o, era amada, eis tudo.
 
Dama de honor da princeza real da Suecia, fôra outr'ora galanteada, requestada. Um moço official de cavallaria estivera para desposal-a, chegára a fazer-se o enxoval, mas o coração de mademoiselle Munck, por um d'esses presentimentos extraordinarios que se não podem explicar, retirára á ultima hora o seu consentimento.
Linha 3 835 ⟶ 4 354:
 
Uma affirmação categorica, tanto mais desafogada quanto parecia irrealisavel, exaltou a paixão do principe, que desde esse dia não teve senão um unico pensamento: desposar mademoiselle de Munck.
==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/307]]==
 
Adivinham-se facilmente as difficuldades que um tal projecto suscitaria a principio.
Linha 3 846 ⟶ 4 366:
Em março de 1888, celebrava-se o casamento, baseado na declaração authentica que o principe, mezes antes, havia dirigido a seu pai.
 
{{margem esquerda|2em}}«Segundo a constituição, nenhum principe da casa real póde casar, sem consentimento do rei. Como depois d'um exame da minha consciencia me acho penetrado do mais ardente amor por mademoiselle Ebba Henrietta Munck, filha do fallecido coronel Charles Jacques Munck de Tulkila e da sua viuva, ''née'' baroneza Coderstrom, e como estou convencido da sua fidelidade ao meu amor, vejo-me obrigado, tanto pelo respeito e dedicação filial, como pela obediencia ás leis, a pedir humildemente o consentimento de vossa magestade, meu augusto pai, á minha
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união com mademoiselle Munck. Toda a minha felicidade depende d'esse consentimento.
 
«Por este casamento perco evidentemente, segundo o §. 5.º da lei da successão, para mim e meus descendentes, todo o direito de successão ao throno dos Reinos-Unidos. E como, segundo a minha opinião, não conviria á minha situação futura aproveitar as altas dignidades que me teem sido concedidas na qualidade de principe herdeiro, peço humildemente auctorisação para renunciar não só ao titulo de alteza real e de duque de Gothland, mas tambem, por mim e meus descendentes, a todos os outros privilegios de que tenho gosado, na qualidade de membro da casa real.
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{{c|''Oscar.''»}}</div>
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O rei communicou o pedido do principe Oscar ao conselho de ministros e accrescentou:
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<span id="chapXIII">{{c|{{larger|XIII}}}}
 
{{c|{{larger|'''Na morte do Kronprinz'''}}}}
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morte do Kronprinz'''}}}}
 
 
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«Está constantemente balouçando uma almofada e pergunta ás pessoas que a rodeiam se o novo Kronprinz é bonito. Depois cae em grande prostração, parecendo de tempos a tempos melhorar para propôr um novo casamento ao imperador.»</div>
 
Ha nas ultimas linhas d'esta noticia o que quer
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que seja que faz passar vagamente pelo nosso espirito essa flebil melodia de Meyerbeer, chamada a ''valsa da sombra'', da ''Dinorah''.
 
A bella camponeza de Ploermel, julgando que Hoel a abandonára, perde a razão e, faltando-lhe a sua cabrinha branca, unica companhia que lhe restava no mundo, procura-a por entre as moitas floridas até que, suppondo havel-a encontrado, faz menção de acalental-a nos braços, chorando e cantando, n'uma loucura ternissima, emquanto o luar cae do ceu n'uma tristeza saudosa.
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O seu coração conhece, pois, toda a magia d'essa divina arte capaz de fazer mover as proprias pedras, segundo a tradição mythologica, e porventura esse balsamo celeste, que se chama a musica, tivera o condão de ungir durante algumas semanas as feridas da sua alma, como a harpa de David abrandava as coleras sombrias de Saul.
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Mas a loucura em que a razão brilha ainda como um crepusculo explodira finalmente.
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E todavia ouvia-se dizer muitas vezes em Vienna que a imperatriz, amazona infatigavel, pensava mais nos cavallos que montava do que nos filhos que havia gerado.
 
Uma calumnia revoltante. Victor Tissot, que esteve em Vienna, e que estudou escrupulosamente a
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capital austriaca na côrte e na rua, desmente-a categoricamente.
 
D'onde veio essa má vontade dos viennenses, tantas vezes manifestada, contra a imperatriz?
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E depois a imperatriz fôra creada em plena natureza, á beira do lago de Traun. Como as outras suas quatro irmãs, que vieram a denominar-se a rainha de Napoles, a princeza de Tour e Taxis, a condessa de Trani e a duqueza d'Alençon, vivêra até aos dezeseis annos como pastora nas montanhas. Seu pai era um velho gentil-homem da provincia, que jámais havia pensado em que as suas cinco filhas, embora formosissimas, podessem vir a respirar n'outra atmosphera que não fosse a das collinas que circumdavam o lago azul.
 
Mas Francisco José amára sempre a caça como
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um bom montanhez do Tyrol, cujo fato vestia nas suas excursões venatorias por montes e valles.
 
Ás vezes os quinteiros ouviam a distancia a grita do hallali, e o seu pensamento não podia ser outro senão o que o nosso velho Castilho soube exprimir n'uma quadra:
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Era o imperador que andava monteando, tal como nas valladas da Idade-média usavam fazer os velhos reis sagrados, de que a imaginação popular se lembra ainda.
 
Pois bem! Francisco José havia chegado á beira do lago de Traun e, por descançar das fadigas da caça, sentára-se á porta, de uma casa de campo. Quatro filhas do velho gentil-homem que alli morava, sahiram a cumprimentar o imperador, que ficára encantado de encontrar um ''bouquet'' de rosas primaveris perdido entre montanhas, á beira de um lago. Qual d'ellas lhe parecia mais formosa? Não o saberia dizer. De repente surge na clareira do bosque uma visão encantadora, vestida de branco, e acompanhada de um fiel molosso. Então os olhos de Francisco José
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cegaram deslumbrados. Era Izabel, a quinta filha do velho gentil-homem: a futura imperatriz da Austria. Alguns dias depois, n'um baile em Ischl, o imperador, que amava doidamente a valsa, dançára durante toda a noite com essa deslumbrante creança de dezeseis annos, que desde logo passou a ser denominada a ''fada da floresta''.
 
O coração um pouco selvagem de Izabel revoltou-se naturalmente contra a doblez da côrte. Ella preferia os aromas acres do bosque ás lisonjas perfumadas de cortezanismo. Ave das montanhas, amava o ceu azul, os alcantis agrestes, os lagos dormentes. Durante os primeiros tempos de noivado, um cavalleiro e uma amazona galopavam nas planicies, cortando as florestas, batendo os bosques. Eram o imperador e a imperatriz.
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Tissot decreve-o em dois traços:
 
{{margem esquerda|2em}}«O som da sua voz é cheio d'encanto, como toda a sua pessoa. O seu olhar revela a lealdade e a doçura que seduzem. A testa é alta e larga, o nariz
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bem proporcionado, os dentes brancos, e o labio inferior menos saliente que no typo ordinario dos Habsburgos. Quando monta a cavallo, ha no seu aspecto elegancia e magestade; mas é preciso vêl-o curvetear no meio de uma nuvem de pó, ao estrondo das fanfarras, á frente do exercito!»</div>
 
Este homem amavel fez-se amado desde os primeiros annos da mocidade, em que elle proprio escolhia entre as damas do salão a que preferia para sua parceira de valsa. Quando o seu uniforme branco ondulava nos circulos vertiginosos das valsas de Strauss, as mulheres, exaltadas, adoravam o gentil Habsburgo, de quem costumavam dizer:
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Tenho aqui, entre os meus papeis, um notavel artigo que ha annos appareceu n'um jornal de Lisboa e foi traduzido por mão desconhecida. Fallando da imperatriz Izabel, diz:
 
{{margem esquerda|2em}}«Ella passa caracolando no seu cavallo, como a Diana de Vernon, essa imperatriz d'Austria, firme e direita no selim do seu baio fogoso, o veu azulado
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enrolado á copa do seu chapeu alto, não reconhecendo outro sceptro além do seu flexivel chicotinho. Toca-se o ''hallali'', o animal é encurralado na clareira dos bosques, Izabel é a primeira a despedir o tiro mortal; galopa com as faces incendidas, as narinas dilatadas e frementes, vêde-a bem—o vento apagou na corrida o vestigio das lagrimas que ainda ha pouco lhe inundavam o rosto; o seu cavallo passou o rio a nado, e o seu vestido de amazona-caçadora embebeu-se na agua gelada; parece-lhe que é sangue do seu coração que vai cahindo, gotta a gotta, no caminho, e que poderiam seguil-a através d'esse rasto; sabe que os latidos das matilhas impacientes, as trompas dos seus caçadores, e o tropel dos cavalleiros não ensurdecerão a sua dôr; a imperatriz da Austria tem a certeza de que já não é amada!»</div>
 
{{c|{{3a}}}}
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<span id="chapXIV">{{c|{{larger|XIV}}}}
 
{{c|{{larger|'''El-Rei D. Luiz nos Jeronymos'''}}}}
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El-Rei D. Luiz nos Jeronymos'''}}}}
 
{{c|{{x-smaller|(Outubro de 1889)}}}}
 
 
Edgar Quinet sentiu pulsar na igreja de Belem a alma navegadora do Portugal manuelino. São profundamente verdadeiras as suas observaçoes. De feito, todos os caracteres da vida do mar alli estão, em Belem. Cabos de pedra que ligam os pilares uns aos outros; altos mastros de mesena que sustentam as ogivas, os florões, as abobadas: a igreja é o navio que vai largar para os ousados descobrimentos. No claustro ha já espalhadas com mão profusa as primicias dos continentes recentemente descobertos: pendurados nos baixos relevos, os côcos e os ananazes; os macacos do Ganges trepando baloiçados pelos cabos; os papagaios do Brazil esvoaçando festivamente em de redor da cruz; elephantes de marmore que conduzem em triumpho a urna funeraria do rei
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Manuel. Uma igreja maritima, finalmente, com tão raro primor descripta por Quinet, erguida no proprio local d'onde Vasco da Gama partira para ir descobrir a India.
 
{{c|{{3a}}}}
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No sabbado, logo pela manhã, encheu-se de povo o caes do Rastello. A multidão, ávida de sensações, esperava anciosamente que os navegantes sahissem da ermida. Finalmente Vasco da Gama e os seus companheiros assomaram á porta, com cyrios na mão. Seguiam-se-lhe os freires e os sacerdotes que da cidade tinham ido expressamente para dizer missa. O povo, em massa, fechava o prestito, respondendo á ladainha que os padres cantavam.
 
Havia n'este espectaculo o que quer que fosse
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de vaga tristeza, aliás justificada. Uma numerosa tripolação ia affrontar os perigos do oceano, lançar-se nas incertezas de uma navegação aventurosa.
 
Chegados junto aos bateis Vasco da Gama e os seus companheiros, o vigario da ermida, com voz solemne, proferiu uma allocução piedosa, acabando por lançar a absolvição.
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Oh fraudento gosto que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
 
</poem>
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<poem>
Que castigo tamanho, e que justiça
Fazes no peito vão, que muito te ama!
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A melancolia que avassallava os espiritos, na hora em que Vasco da Gama partiu, transmudára-se, só com passar pelo chrysol da India, no oiro luminoso de Quiloa, que mestre Gil Vicente ou outro qualquer notavel artifice do seculo {{smaller|XVI}} arredondára n'um disco—a famosa custodia dos Jeronymos—, tão bello como o sol, tão resplendente como elle.
 
E depois de terem dobrado duas vezes o Cabo das Tormentas, depois de terem vencido Adamastor duas vezes, as galés d'el-rei subiam em triumpho a corrente do Tejo, á volta do Oriente, e toda a alma
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portugueza vibrava de alegria e de orgulho na impaciencia dos animos e na avidez dos olhos.
 
{{margem esquerda|10%}}<poem>Lá vêm galés Tejo acima!
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Infante de Portugal, como D. Henrique, tinha o culto da navegação, a religião do mar. No convez do ''Pedro Nunes'' ou da ''Bartholomeu Dias'', recordaria por noites de luar, ao som das aguas, toda a nossa epopêa maritima, de que esses dois nomes, o do inventor do nonio e o do descobridor do Cabo, eram como duas estrophes gravadas nos marmores eternos da Historia. Rei, constrangido a viver em terra como um marinheiro aposentado, dessedentava saudades contemplando o Tejo do seu miradouro da Ajuda ou o Atlantico do alto da bateria de Cascaes.
 
E fôra Cascaes, uma pequena villa de marinheiros, Cascaes, a patria do aventuroso piloto Affonso Sanches, que recebêra o extremo alento d'esse bom rei que tanto vivêra profissional e espiritualmente da
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nossa gloria maritima. Fôra o mar que soluçára em torno do seu athaude o primeiro cantico funebre, fôra o mar que, marulhando nos muros da cidadella, viera receber o seu espirito para o restituir a Deus.
 
{{c|{{3a}}}}
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E na sua capella silenciosa e monumental alli jaz Alexandre Herculano, o ultimo grande historiador das glorias de Portugal, o ultimo varão forte d'essa extincta raça de chronistas, que principiou em Fernão Lopes e se continuou em Azurara, Pina, Castanheda, João de Barros e Goes.
 
Para um rei como D. Luiz {{smaller|I}}, que amou o seu paiz na tradição mais saliente dos fastos nacionaes, nada poderia completar melhor a sua physionomia historica
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de rei marinheiro, do que esta posthuma ''étape'' de alguns dias, na igreja dos Jeronymos, em caminho do pantheon de S. Vicente.
 
Se o rei podesse acordar por momentos do somno da morte, adormeceria de novo dôcemente, demorando o olhar embevecido nos cabos de pedra que ligam os pilares uns aos outros, e nos altos mastros de mesena que sustentam as ogivas, os florões, as abobadas...
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==[[Página:Historias de Reis e Principes.djvu/325]]==
 
<span id="chapXV">{{c|{{larger|XV}}}}
 
{{c|{{larger|'''Rainha e Viuva'''}}}}
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Rainha e Viuva'''}}}}
 
{{c|{{x-smaller|(Outubro de 1889)}}}}