O Crime do Padre Amaro/VI: diferenças entre revisões

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Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente em comodidades, Amaro sentiu-se feliz. A S. Joaneira, muito maternal, tomava um grande cuidado na sua roupa branca, preparava-lhe petiscos, e o "quarto do senhor pároco andava que nem um brinco"! Amélia tinha com ele uma familiaridade picante de parenta bonita: "tinham calhado um com o outro", como dissera, encantada, D. Maria da Assunção. Os dias iam assim passando para Amaro, fáceis, com boa mesa, colchões macios e a convivência [[wikt:meigo|meiga]] de mulheres. A estação ia tão linda que até as tílias floresceram no jardim do [[wikt:paço|Paço]]: "quase milagre!", disse-se: o senhor chantre, contemplando-as todas as manhãs da janela do seu quarto, em ''robe-de-chambre'', citava versos das ''[[Éclogas]]''. E depois das longas tristezas da casa do tio da Estrela, dos desconsolos do seminário e do áspero Inverno na [[w:Gralheira|Gralheira]] — aquela vida em Leiria era para Amaro como uma casa seca e abrigada onde o alegre [[wikt:lume|lume]] estala e a sopa cheirosa fumega, depois duma noite de jornada na serra, sob trovões e [[wikt:chuveiro|chuveiros]].
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como uma casa seca e abrigada onde o alegre [[wikt:lume|lume]] estala e a sopa cheirosa fumega, depois duma noite de jornada na serra, sob trovões e [[wikt:chuveiro|chuveiros]].
 
Ia cedo dizer a missa à Sé, bem embrulhado no seu grande [[wikt:capote|capote]], com luvas de [[wikt:casimira|casimira]], meias de lãs por baixo das botas de alto cano vermelho. As manhãs estavam frias: e àquela hora só algumas devotas, com o mantéu escuro pela cabeça, rezavam aqui e além, ao pé dum altar envernizado de branco.
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— ''[[wikt:ad#Latim|Ad]] Deum [[wikt:qui#Latim|qui]] laetificat juventutem meam'', resmungava, num latim silabado, o sacristão.
Amaro já não celebrava a missa como nos primeiros tempos, com uma devoção enternecida. "Estava agora habituado", dizia. E como não ceava, e àquela hora em jejum, com a frescura cortante do ar, já sentia apetite, [[wikt:engrolar|engrolava]] depressa, monotonamente, as santas leituras da Epístola e dos Evangelhos. Por trás o sacristão, com os braços cruzados, passava vagarosamente a mão pela sua espessa barba bem rapada, olhando de [[wikt:revés|revés]] para a Casimira França, mulher do carpinteiro da Sé, muito devota, que ele "trazia de olho" desde a Páscoa. Largas [[wikt:réstia|réstias]] de sol
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caíam das janelas laterais. Um vago aroma de [[wikt:junquilho|junquilhos]] secos adocicava o ar.
 
Amaro, depois de recitar rapidamente o ofertório, limpava o cálice com o purificador; o sacristão, um pouco vergado dos rins, ia buscar as [[wikt:galheta|galhetas]], apresentava-as, curvado — e Amaro sentia o cheiro do óleo rançoso que lhe reluzia no cabelo. Naquela parte da missa, por um antigo hábito de emoção mística, Amaro tinha um recolhimento sentido: com os braços abertos, voltava-se para a igreja, clamava, com largueza, a exortação universal à oração — ''Orate, fratres''! E as velhas encostadas aos pilares de pedra, com o aspecto idiota, a boca babosa, apertavam mais as mãos contra o peito, de onde pendiam grandes rosários negros. Então o sacristão ia ajoelhar-se por trás dele, sustentando ligeiramente com uma das mãos a capa, erguendo na outra a [[wikt:sineta|sineta]]. Amaro consagrava o vinho, levantava a hóstia — ''[[wikt:hoc#Latim|Hoc]] [[wikt:est#Latim|est]] enim [[wikt:corpus#Latim|corpus]] [[wikt:meum#Latim|meum]]!'' — elevando alto os braços para o Cristo cheio de chagas roxas sobre a sua cruz de pau preto; a campainha tocava devagar; as mãos batiam concavamente nos peitos; e no silêncio sentiam-se os carros de bois rolando, com solavancos, sobre o largo [[wikt:lajeado|lajeado]] da Sé, à volta do mercado.
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— ''[[wikt:Deo gratias#Latim|Deo gratias]]!'' respondia o sacristão respirando alto, com o alívio da obrigação finda.
E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro vinha do alto dos degraus dar a benção, era já pensando na alegria do almoço, na clara sala de jantar da S. Joaneira e nas boas torradas. Àquela hora já Amélia o esperava com o cabelo caído
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sobre o penteador, tendo na pele fresca um bom cheiro de sabão de amêndoas.
 
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— Ah preguiçosa, preguiçosa! Olha que mulher de casa!
 
Ela ria; conversavam. A S. Joaneira sabia as coisas interessantes do dia: o major despedira a criada; ou havia quem oferecesse dez moedas pelo porco do Carlos do correio. De vez em quando a ''Ruça'' vinha ao armário buscar um prato ou uma colher; então falava-se do preço dos gêneros, do que havia para o jantar. A S. Joaneira tirava as lunetas, traçava a perna, e balouçando o pé calçado
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numa chinela de ourelo, punha-se a dizer os pratos.
 
— Hoje temos [[wikt:grão-de-bico|grão-de-bico]]. Não sei se o senhor pároco gostará, foi para variar...
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— Bichaninho gato! bichaninho gato!
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Depois a S. Joaneira erguia-se para dar o remédio à idiota ou ir [[wikt:palração|palrar]] à cozinha. Eles ficavam sós; não falavam, mas os seus olhos tinham um longo diálogo mudo, que os ia penetrando da mesma languidez dormente. Então Amélia cantarolava baixo o ''Adeus'' ou o ''Descrente'': Amaro acendia o seu cigarro, e escutava, bamboleando a perna.
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Amélia cantava mais acentuadamente, cosendo depressa; e a espaços, erguendo o busto, [[wikt:mirava|mirava]] o [[wikt:alinhavado|alinhavado]] ou o pesponto, passando-lhe por cima, para o assentar, a sua unha polida e larga.
 
Amaro achava aquelas unhas admiráveis, porque tudo que era ''ela'' ou vinha ''dela'' lhe parecia perfeito: gostava da cor dos seus vestidos, do seu andar, do modo de passar os dedos pelos cabelos, e olhava até com ternura para as saias brancas que ela punha a secar à janela do seu quarto, enfiadas numa cana. Nunca estivera assim na intimidade duma mulher. Quando percebia a porta do quarto dela entreaberta, ia resvalar para dentro olhares gulosos, como para perspectivas dum paraíso: um saiote pendurado, uma meia estendida, uma liga que ficara sobre o baú, eram como revelações da sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo pálido. E não se saciava de a ver falar, rir, andar com as saias muito engomadas que batiam as ombreiras das portas estreitas. Ao pé dela, muito fraco, muito langoroso, não lhe lembrava que era padre; o Sacerdócio, Deus, a Sé, o Pecado ficavam embaixo, longe, via-os muito esbatidos do alto do seu enlevo, como de um monte se vêem as casas desaparecer no nevoeiro
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dos vales; e só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha.
 
Às vezes revoltava-se contra estes desfalecimentos, batia o pé:
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A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor do dia. A S. Joaneira trinchava, enquanto Amaro conversava cuspindo os caroços das azeitonas na palma da mão e enfileirando-os sobre a toalha. A ''Ruça'', cada dia mais ética, servia mal, sempre a tossir; Amélia às vezes erguia-se para ir buscar uma faca, um prato ao aparador. Amaro queria levantar-se logo, atencioso.
 
— Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor pároco!
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dizia ela. E punha-lhe a mão no ombro, e os seus olhos encontravam-se.
 
Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estômago, sentia-se regalado, gozava muito no bom calor da sala; depois do segundo copo da [[w:Bairrada|Bairrada]] tornava-se expansivo, tinha gracinhas; às vezes mesmo, com um brilho terno no olho, tocava fugitivamente o pé de Amélia debaixo da mesa; ou, fazendo um ar sentido, dizia "que muito lhe pesava não ter uma irmãzinha assim" !
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— Ora Nosso Senhor vos dê muito boas-noites! dizia assomando à porta.
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— Vai a gotinha de café, senhor cônego? perguntava logo a S. Joaneira.
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— É o menino, é o menino!
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— Pobre de Cristo! dizia Amaro. Pobre de Cristo! Deus lhe dê uma boa morte!
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A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro soprando o fumo do cigarro, sentia-se todo [[wikt:enlear|enleado]] num sentimentalismo agradável.
 
Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha-se então a ler os ''Cânticos a Jesus'', tradução do francês publicada pela sociedade das ''Escravas de Jesus''. É uma obrazinha beata, escrita com um [[wikt:lirismo|lirismo]] equívoco, quase [[wikt:torpe|torpe]] — que dá à oração a linguagem da luxúria: Jesus é invocado, reclamado com as sofreguidões balbuciantes de uma [[wikt:concupiscência|concupiscência]] alucinada: "Oh! vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero! Abrasa-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possui-me! " E um amor divino, ora grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama assim em cem páginas
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inflamadas onde as palavras ''gozo'', ''delícia'', ''delírio'', ''êxtase'', voltam a cada momento, com uma persistência histérica. E depois de monólogos frenéticos de onde se exala um bafo de [[wikt:cio|cio]] místico, vêm então imbecilidades de sacristia, notazinhas beatas resolvendo casos difíceis de jejuns, e orações para as dores do parto! Um bispo aprovou aquele livrinho bem impresso; as educandas lêem-no no convento. É beato e excitante; tem as eloquências do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em [[wikt:marroquim|marroquim]] e dá-se às confessadas; é a cantárida canônica!
 
Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aqueles períodos sonoros, [[wikt:túmido|túmidos]] de desejo; e no silêncio, por vezes, sentia em cima ranger o leito de Amélia; o livro escorregava-lhe das mãos, encostava a cabeça às costas da poltrona, cerrava os olhos, e parecia-lhe vê-la em colete diante do toucador desfazendo as tranças; ou, curvada, desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria os dois seios muito brancos.
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— E então, gostou dos Cânticos?
— Muito. Orações lindas! respondeu.
Durante todo esse dia não ergueu os olhos para
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Amaro. Parecia triste — e sem razão, às vezes, o rosto abrasava-se-lhe de sangue.
 
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— Estou tão cansada! respondia Amélia apoiando-se nas costas da cadeira, com um suspirozinho de fadiga.
 
A S. Joaneira, então, que não gostava de "ver gente
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mona", propunha uma ''bisca'' de três; e o padre Amaro, tomando o seu candeeiro de latão, descia para o quarto, muito infeliz.
 
Nessas noites quase detestava Amélia; achava-a ''[[wikt:casmurra|casmurra]]''. A intimidade do escrevente na casa parecia-lhe escandalosa: decidiu mesmo falar à S. Joaneira, dizer-lhe "que aquele namoro de portas adentro não podia ser agradável a Deus". Depois, mais razoável, resolvia esquecê-la, pensava em sair da casa, da paróquia. Representava-se então Amélia com a sua coroa de flores de laranjeira, e João Eduardo, muito vermelho, de casaca, voltando da Sé, casados... Via a cama de noivado com os seus lençóis de renda... E todas as provas, as certezas do amor dela pelo "idiota do escrevente" cravavam-se-lhe no peito como punhais...
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— Tonta de rapariga! pensou Amaro, foi à fonte e esqueceu-se de fechar a porta.
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Lembrou-se que Amélia tinha ido passar a tarde com a Sra. D. Joaquina Gansoso, numa fazenda ao pé da Piedade, e que a S. Joaneira falara em ir à irmã do cônego. Fechou devagar a cancela, subiu à cozinha a acender o seu candeeiro; como as ruas estavam molhadas da chuva da manhã, trazia ainda galochas de borracha; os seus passos não faziam rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar sentiu no quarto da S. Joaneira, através do reposteiro de chita, uma tosse grossa; surpreendido, afastou sutilmente um lado do reposteiro, e pela porta entreaberta espreitou. — Oh Deus de Misericórdia! a S. Joaneira, em saia branca, atacava o colete; e, sentado à beira da cama, em mangas de camisa, o cônego Dias [[wikt:resfolegar|resfolegava]] grosso!
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— E esta! E esta! dizia ele assombrado.
 
Nunca suspeitara um tal escândalo! A S. Joaneira, a pachorrenta S. Joaneira! O cônego, seu mestre de Moral! E era um velho, sem os ímpetos do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter dado a idade, a nutrição, as dignidades eclesiásticas! Que faria então um homem novo e forte, que sente uma vida abundante no fundo das suas veias reclamar e arder!... Era, pois, verdade o que se cochichava no seminário, o que lhe dizia o velho padre Sequeira, cinquenta anos padre da Gralheira: — "Todos são do mesmo barro!" Todos são do mesmo barro, — sobem em dignidades, entram nos cabidos, regem os seminários, dirigem
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as consciências envoltos em Deus como numa absolvição permanente, e têm no entanto, numa viela, uma mulher pacata e gorda, em casa de quem vão repousar das atitudes devotas e da austeridade do ofício, fumando cigarros de estanco e palpando uns braços rechonchudos!
 
Vinham-lhe então outras reflexões: que gente era aquela, a S. Joaneira e a filha, que viviam assim sustentadas pela lubricidade tardia de um velho cônego? A S. Joaneira fora decerto bonita, bem-feita, desejável — outrora! Por quantos braços teria passado até chegar, pelos declives da idade, àqueles amores [[wikt:senil|senis]] e mal pagos? As duas mulherinhas, que diabo, não eram honestas! Recebiam hóspedes, viviam da [[wikt:concubina|concubinagem]]. Amélia ia sozinha à igreja, às compras, à fazenda; e com aqueles olhos tão negros, talvez já tivesse tido um amante! — Resumia, filiava certas recordações: um dia que ela lhe estivera mostrando na janela da cozinha um vaso de rainúnculos, tinham ficado sós, e ela, muito corada, pusera-lhe a mão sobre o ombro e os seus olhos reluziam e pediam; outra ocasião ela roçara-lhe o peito pelo braço! A noite caíra, com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando depressa, cheio de uma só idéia deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o cônego era o amante da mãe! Imaginava já a boa vida escandalosa e [[wikt:regalar|regalada]]; enquanto em cima a grossa S. Joaneira beijocasse o seu cônego cheio de dificuldades asmáticas — Amélia desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias brancas, com um xale sobre os ombros nus... Com que frenesi a esperaria! E já não sentia por ela o mesmo amor sentimental,
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quase doloroso: agora a idéia muito magana dos dois padres e as duas concubinas, de panelinha, dava àquele homem amarrado pelos votos uma satisfação [[wikt:depravado|depravada]]! Ia aos pulinhos pela rua. — Que [[wikt:pechincha|pechincha]] de casa!
 
A chuva caía, grossa. Quando entrou havia já luz na sala de jantar. Subiu.
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E tudo em redor lhe parecia como mais recatado, as paredes com o seu papel de ramagens verdes, o armário cheio de louça luzidia da Vista Alegre, o simpático e bojudo pote de água, o velho piano mal firme nos seus três pés torneados; o paliteiro tão querido de todos — um Cupido rechonchudo com um guarda-chuva aberto eriçado de palitos, e aquela tranqüila bisca jogada com os [[wikt:dichote|dichotes]] clássicos. Tudo tão decente!
 
Afirmava-se então nas grossas [[wikt:rosca|roscas]] do pescoço da S. Joaneira, como para descobrir nelas as marcas das beijocas do cônego: ah! tu, não há dúvida, és "uma [[wikt:barregã|barregã de clérigo]]". Mas Amélia!
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com aquelas longas pestanas descidas, o beiço tão fresco!... Ignorava decerto as [[wikt:libertinagem|libertinagens]] da mãe; ou, experiente, estava bem resolvida a estabelecer-se solidamente na segurança dum amor legal! — E Amaro, da sombra, examinava-a longamente como para se certificar, na placidez do seu rosto, da virgindade do seu passado.
 
— Cansadinho, senhor pároco, hem? disse a S. Joaneira. E para João Eduardo: — Trunfo, faz favor, seu cabeça no ar!
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— Ah! fez ela, com um leve suspiro, picando rapidamente o pesponto.
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O escrevente, baralhando as cartas, começara a falar de uma casa que queria alugar; a conversa caiu sobre arranjos domésticos.
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— Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada! — pensou, recaindo em si um pouco envergonhado. Está claro: não podemos pensar em mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito dogma!
 
Abafava. Abriu a janela. O céu estava tenebroso;
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a chuva cessara; o piar das corujas na Misericórdia cortava só o silêncio.
 
Enterneceu-se, então, com aquela escuridão, aquela mudez de vila adormecida. E sentiu subir outra vez, das profundidades do seu ser, o amor que sentira ao princípio por ela, muito puro, dum sentimentalismo devoto: via a sua linda cabeça, duma beleza transfigurada e luminosa, destacar da negrura espessa do ar; e toda a sua alma foi para ela num desfalecimento de adoração, como no culto a Maria e na Saudação Angélica; pediu-lhe perdão ansiosamente de a ter ofendido; disse-lhe alto: És uma santa, perdoa! — Foi um momento muito doce, de renunciamento carnal...