O Crime do Padre Amaro/VI: diferenças entre revisões

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Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente em comodidades, Amaro sentiu-se feliz. A S. Joaneira, muito maternal, tomava um grande cuidado na sua roupa branca, preparava-lhe petiscos, e o "quarto do senhor pároco andava que nem um brinco"! Amélia tinha com ele uma familiaridade picante de parenta bonita: "tinham calhado um com o outro", como dissera, encantada, D. Maria da Assunção. Os dias iam assim passando para Amaro, fáceis, com boa mesa, colchões macios e a convivência [[wikt:meigo|meiga]] de mulheres. A estação ia tão linda que até as tílias floresceram no jardim do [[wikt:paço|Paço]]: "quase milagre!", disse-se: o senhor chantre, contemplando-as todas as manhãs da janela do seu quarto, em ''robe-de-chambre'', citava versos das ''[[Éclogas]]''. E depois das longas tristezas da casa do tio da Estrela, dos desconsolos do seminário e do áspero Inverno na [[w:Gralheira|Gralheira]] — aquela vida em Leiria era para Amaro
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como uma casa seca e abrigada onde o alegre [[wikt:lume|lume]] estala e a sopa cheirosa fumega, depois duma noite de jornada na serra, sob trovões e [[wikt:chuveiro|chuveiros]].
 
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Ia cedo dizer a missa à Sé, bem embrulhado no seu grande [[wikt:capote|capote]], com luvas de [[wikt:casimira|casimira]], meias de lãs por baixo das botas de alto cano vermelho. As manhãs estavam frias: e àquela hora só algumas devotas, com o mantéu escuro pela cabeça, rezavam aqui e além, ao pé dum altar envernizado de branco.
Entrava logo na sacristia, revestia-se depressa batendo os pés no [[wikt:lajedo|lajedo]], enquanto o [[wikt:sacristão|sacristão]], pachorrento, contava "as novidades do dia".
 
Depois, com o cálice na mão, de olhos baixos, passava à igreja; e tendo dobrado o joelho rapidamente diante do Santíssimo Sacramento, subia devagar ao altar onde duas velas de cera [[wikt:esmorecer|esmoreciam]] com uma claridade pálida na larga luz da manhã, juntava as mãos, murmurava, curvado:
 
&mdash; ''Introibo [[wikt:ad#Latim|ad]] altare [[wikt:dei#Latim|Dei]]''.
 
&mdash; ''[[wikt:ad#Latim|Ad]] Deum [[wikt:qui#Latim|qui]] laetificat juventutem meam'', resmungava, num latim silabado, o sacristão.
Amaro já não celebrava a missa como nos primeiros tempos, com uma devoção enternecida. "Estava agora habituado", dizia. E como não ceava, e àquela hora em jejum, com a frescura cortante do ar, já sentia apetite, [[wikt:engrolar|engrolava]] depressa, monotonamente, as santas leituras da Epístola e dos Evangelhos. Por trás o sacristão, com os braços cruzados, passava vagarosamente a mão pela sua espessa barba bem rapada, olhando de [[wikt:revés|revés]] para a Casimira França, mulher do carpinteiro da Sé, muito devota, que ele "trazia de olho" desde a Páscoa. Largas [[wikt:réstia|réstias]] de sol
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caíam das janelas laterais. Um vago aroma de [[wikt:junquilho|junquilhos]] secos adocicava o ar.
 
Amaro, depois de recitar rapidamente o ofertório, limpava o cálice com o purificador; o sacristão, um pouco vergado dos rins, ia buscar as [[wikt:galheta|galhetas]], apresentava-as, curvado &mdash; e Amaro sentia o cheiro do óleo rançoso que lhe reluzia no cabelo. Naquela parte da missa, por um antigo hábito de emoção mística, Amaro tinha um recolhimento sentido: com os braços abertos, voltava-se para a igreja, clamava, com largueza, a exortação universal à oração &mdash; ''Orate, fratres''! E as velhas encostadas aos pilares de pedra, com o aspecto idiota, a boca babosa, apertavam mais as mãos contra o peito, de onde pendiam grandes rosários negros. Então o sacristão ia ajoelhar-se por trás dele, sustentando ligeiramente com uma das mãos a capa, erguendo na outra a [[wikt:sineta|sineta]]. Amaro consagrava o vinho, levantava a hóstia &mdash; ''[[wikt:hoc#Latim|Hoc]] [[wikt:est#Latim|est]] enim [[wikt:corpus#Latim|corpus]] [[wikt:meum#Latim|meum]]!'' &mdash; elevando alto os braços para o Cristo cheio de chagas roxas sobre a sua cruz de pau preto; a campainha tocava devagar; as mãos batiam concavamente nos peitos; e no silêncio sentiam-se os carros de bois rolando, com solavancos, sobre o largo [[wikt:lajeado|lajeado]] da Sé, à volta do mercado.
 
&mdash; ''Ite, [[wikt:missa#Latim|missa]] [[wikt:est#Latim|est]]!'' dizia Amaro enfim.
 
&mdash; ''[[wikt:Deo gratias#Latim|Deo gratias]]!'' respondia o sacristão respirando alto, com o alívio da obrigação finda.
E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro vinha do alto dos degraus dar a benção, era já pensando na alegria do almoço, na clara sala de jantar da S. Joaneira e nas boas torradas. Àquela hora já Amélia o esperava com o cabelo caído
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sobre o penteador, tendo na pele fresca um bom cheiro de sabão de amêndoas.
 
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Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à sala de jantar, onde a S. Joaneira e Amélia costuravam. "Estava aborrecido embaixo, vinha um bocado para o [[wikt:cavaco|cavaco]]", dizia. A S. Joaneira, numa cadeira pequena, ao pé da janela, com o gato aninhado na roda do vestido de [[wikt:merino|merino]], cosia de luneta na ponta do nariz. Amélia, junto da mesa, trabalhava com o cesto da costura ao lado; a cabeça inclinada sobre o trabalho mostrava a sua risca fina, nítida, um pouco afogada na abundância do cabelo; os seus grandes brincos de ouro, em forma de pingos de cera, oscilavam, faziam tremer e crescer sobre a finura do pescoço uma pequenina sombra; as olheiras leves cor de bistre esbatiam-se delicadamente sobre a pele de um trigueiro mimoso, que um sangue forte [[wikt:aviventar|aviventava]]; e o seu peito cheio respirava devagar. Às vezes, cravando a agulha na [[wikt:fazenda|fazenda]], espreguiçava-se devagarinho, sorria, cansada. Então Amaro gracejava:
 
&mdash; Ah preguiçosa, preguiçosa! Olha que mulher de casa!
 
Ela ria; conversavam. A S. Joaneira sabia as coisas interessantes do dia: o major despedira a criada; ou havia quem oferecesse dez moedas pelo porco do Carlos do correio. De vez em quando a ''Ruça'' vinha ao armário buscar um prato ou uma colher; então falava-se do preço dos gêneros, do que havia para o jantar. A S. Joaneira tirava as lunetas, traçava a perna, e balouçando o pé calçado
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numa chinela de ourelo, punha-se a dizer os pratos.
 
&mdash; Hoje temos [[wikt:grão-de-bico|grão-de-bico]]. Não sei se o senhor pároco gostará, foi para variar...
 
Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas comidas descobria afinidade de gostos com Amélia.
 
Depois, animando-se, [[wikt:bulir|bulia]]-lhe no cesto da costura. Um dia encontrara uma carta; perguntou-lhe pelo ''[[wikt:derriço|derriço]]''; ela respondeu, picando vivamente o [[wikt:pesponto|pesponto]]:
 
&mdash; Ai! a mim ninguém me quer, senhor pároco...
 
&mdash; Não é tanto assim, acudiu ele. Mas suspendeu-se, muito vermelho, afetando tossir.
 
Amélia às vezes fazia-se muito familiar; um dia mesmo, pediu-lhe para sustentar nas mãos uma meadinha de [[wikt:retrós|retrós]] que ela ia dobar.
 
&mdash; Deixe falar, senhor pároco! exclamou a S. Joaneira. Ora a tolice! Isto, em se lhe dando confiança!...
 
Mas Amaro prontificou-se, rindo, todo contente: &mdash; ele estava ali para o que quisessem, até para dobadoura! Era mandarem, era mandarem!... E as duas mulheres riam, dum riso cálido, enlevadas naquelas maneiras do senhor pároco, "que até tocavam o coração" ! Às vezes Amélia pousava a costura e tomava o gato no colo; Amaro chegava-se, corria a mão pela espinha do [[wikt:maltês|maltês]] que se arredondava, fazendo um ronrom de gozo.
 
&mdash; Gostas? dizia ela ao gato, um pouco corada, com os olhos muito ternos.
E a voz de Amaro murmurava, perturbada:
 
&mdash; Bichaninho gato! bichaninho gato!
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Depois a S. Joaneira erguia-se para dar o remédio à idiota ou ir [[wikt:palração|palrar]] à cozinha. Eles ficavam sós; não falavam, mas os seus olhos tinham um longo diálogo mudo, que os ia penetrando da mesma languidez dormente. Então Amélia cantarolava baixo o ''Adeus'' ou o ''Descrente'': Amaro acendia o seu cigarro, e escutava, bamboleando a perna.
 
&mdash; É tão bonito isso! dizia.
 
Amélia cantava mais acentuadamente, cosendo depressa; e a espaços, erguendo o busto, [[wikt:mirava|mirava]] o [[wikt:alinhavado|alinhavado]] ou o pesponto, passando-lhe por cima, para o assentar, a sua unha polida e larga.
 
Amaro achava aquelas unhas admiráveis, porque tudo que era ''ela'' ou vinha ''dela'' lhe parecia perfeito: gostava da cor dos seus vestidos, do seu andar, do modo de passar os dedos pelos cabelos, e olhava até com ternura para as saias brancas que ela punha a secar à janela do seu quarto, enfiadas numa cana. Nunca estivera assim na intimidade duma mulher. Quando percebia a porta do quarto dela entreaberta, ia resvalar para dentro olhares gulosos, como para perspectivas dum paraíso: um saiote pendurado, uma meia estendida, uma liga que ficara sobre o baú, eram como revelações da sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo pálido. E não se saciava de a ver falar, rir, andar com as saias muito engomadas que batiam as ombreiras das portas estreitas. Ao pé dela, muito fraco, muito langoroso, não lhe lembrava que era padre; o Sacerdócio, Deus, a Sé, o Pecado ficavam embaixo, longe, via-os muito esbatidos do alto do seu enlevo, como de um monte se vêem as casas desaparecer no nevoeiro
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dos vales; e só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha.
 
Às vezes revoltava-se contra estes desfalecimentos, batia o pé:
 
&mdash; Que diabo, é necessário ter juízo! É necessário ser homem!
 
Descia, ia folhear o seu Breviário; mas a voz de Amélia falava em cima, o tique-tique das suas botinas batia o soalho... Adeus! a devoção caia como uma vela a que falta o vento; as boas resoluções fugiam, e lá voltavam as tentações em bando a apoderar-se do seu cérebro, [[wikt:fremente|frementes]], [[wikt:arrulhar|arrulhando]], roçando-se umas pelas outras como um bando de pombas que recolhem ao pombal. Ficava todo subjugado, sofria. E lamentava então a sua liberdade perdida: como desejaria não a ver, estar longe de Leiria, numa aldeia solitária, entre gente pacífica, com uma criada velha cheia de provérbios e de economia, e passear pela sua horta quando as alfaces verdejam e os galos cacarejam ao sol! Mas Amélia, de cima, chamava-o &mdash; e o encanto recomeçava, mais penetrante.
 
A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor do dia. A S. Joaneira trinchava, enquanto Amaro conversava cuspindo os caroços das azeitonas na palma da mão e enfileirando-os sobre a toalha. A ''Ruça'', cada dia mais ética, servia mal, sempre a tossir; Amélia às vezes erguia-se para ir buscar uma faca, um prato ao aparador. Amaro queria levantar-se logo, atencioso.
 
&mdash; Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor pároco!
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dizia ela. E punha-lhe a mão no ombro, e os seus olhos encontravam-se.
 
Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estômago, sentia-se regalado, gozava muito no bom calor da sala; depois do segundo copo da [[w:Bairrada|Bairrada]] tornava-se expansivo, tinha gracinhas; às vezes mesmo, com um brilho terno no olho, tocava fugitivamente o pé de Amélia debaixo da mesa; ou, fazendo um ar sentido, dizia "que muito lhe pesava não ter uma irmãzinha assim" !
 
Amélia gostava de ensopar o miolo do pão no molho do guisado: a mãe dizia-lhe sempre:
 
&mdash; [[wikt:embirrar|Embirro]] que faças isso diante do senhor pároco.
 
E ele então rindo:
 
&mdash; Pois olhe, também eu gosto. Simpatia! Magnetismo!
 
E molhavam ambos o pão, e sem razão davam grandes risadas. Mas o crepúsculo crescia, a Ruça trazia o candeeiro. O brilho dos copos e das louças alegrava Amaro, enternecia-o mais; chamava à S. Joaneira mamã; Amélia sorria, de olhos baixos, trincando com a ponta dos dentes cascas de tangerina. Daí a pouco vinha o café; e o padre Amaro ficava muito tempo partindo nozes com as costas da faca, e quebrando a cinza do cigarro na borda do pires.
 
Àquela hora aparecia sempre o cônego Dias; sentiam-no subir pesadamente, dizendo da escada:
 
&mdash; Licença para dois!
 
Era ele e a cadela, a ''Trigueira''.
 
&mdash; Ora Nosso Senhor vos dê muito boas-noites! dizia assomando à porta.
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/121]]==
 
&mdash; Vai a gotinha de café, senhor cônego? perguntava logo a S. Joaneira.
 
Ele sentava-se, exalando um profundo ''ufa!'' &mdash; Vá lá a gotinha do café! &mdash; E batendo no ombro do pároco, olhando para a S. Joaneira:
 
&mdash; Então, como vai cá o seu menino?
 
Riam; vinham as histórias do dia. O cônego costumava trazer no bolso o ''[[w:Diário Popular (Portugal)|Diário Popular]]''; Amélia interessava-se pelo romance, a S. Joaneira pelas correspondências amorosas nos anúncios.
 
&mdash; Ora vejam que pouca-vergonha!... dizia ela, deliciando-se.
 
Amaro então falava de Lisboa, de escândalos que lhe contara a tia: dos fidalgos que conhecera "em casa do Sr. conde de Ribamar". Amélia, enlevada, escutava-o com os cotovelos sobre a mesa, roendo vagarosamente a ponta do palito.
 
Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina esmorecia à cabeceira da cama: e a pobre velha, com uma medonha touca de rendas negras que tornava mais lívida a sua carinha engelhada como uma [[wikt:maça reineta|maçã reineta]], fazendo debaixo da roupa uma saliência quase imperceptível, fixava em todos, com susto, os seus olhinhos côncavos e chorosos.
 
&mdash; É o senhor pároco, tia Gertrudes! gritava-lhe Amélia ao ouvido. Vem ver como está.
 
A velha fazia um esforço, e com uma voz gemida:
 
&mdash; Ah! é o menino!
 
&mdash; É o menino, é, diziam rindo.
 
E a velha ficava a murmurar, espantada:
 
&mdash; É o menino, é o menino!
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/122]]==
 
&mdash; Pobre de Cristo! dizia Amaro. Pobre de Cristo! Deus lhe dê uma boa morte!
 
E voltavam para a sala de jantar onde o cônego Dias, todo enterrado na velha poltrona de [[wikt:chita|chita]] verde, com as mãos cruzadas sobre o ventre, dizia logo:
 
&mdash; Ora vá um bocadinho de música, pequena!
 
Amélia ia sentar-se ao piano.
 
&mdash; Ó filha, toca o Adeus! recomendava a S. Joaneira começando a sua meia.
 
E Amélia, ferindo o teclado:
 
<poem>
''Ai! adeus! acabaram-se os dias''
''Que ditoso vivi a teu lado...''
</poem>
 
A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro soprando o fumo do cigarro, sentia-se todo [[wikt:enlear|enleado]] num sentimentalismo agradável.
 
Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha-se então a ler os ''Cânticos a Jesus'', tradução do francês publicada pela sociedade das ''Escravas de Jesus''. É uma obrazinha beata, escrita com um [[wikt:lirismo|lirismo]] equívoco, quase [[wikt:torpe|torpe]] &mdash; que dá à oração a linguagem da luxúria: Jesus é invocado, reclamado com as sofreguidões balbuciantes de uma [[wikt:concupiscência|concupiscência]] alucinada: "Oh! vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero! Abrasa-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possui-me! " E um amor divino, ora grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama assim em cem páginas
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/123]]==
inflamadas onde as palavras ''gozo'', ''delícia'', ''delírio'', ''êxtase'', voltam a cada momento, com uma persistência histérica. E depois de monólogos frenéticos de onde se exala um bafo de [[wikt:cio|cio]] místico, vêm então imbecilidades de sacristia, notazinhas beatas resolvendo casos difíceis de jejuns, e orações para as dores do parto! Um bispo aprovou aquele livrinho bem impresso; as educandas lêem-no no convento. É beato e excitante; tem as eloquências do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em [[wikt:marroquim|marroquim]] e dá-se às confessadas; é a cantárida canônica!
 
Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aqueles períodos sonoros, [[wikt:túmido|túmidos]] de desejo; e no silêncio, por vezes, sentia em cima ranger o leito de Amélia; o livro escorregava-lhe das mãos, encostava a cabeça às costas da poltrona, cerrava os olhos, e parecia-lhe vê-la em colete diante do toucador desfazendo as tranças; ou, curvada, desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria os dois seios muito brancos.
 
Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal de a possuir.
 
Começara então a recomendar-lhe a leitura dos ''Cânticos a Jesus''.
 
&mdash; Verá, é muito bonito, de muita devoção! disse ele, deixando-lhe o livrinho uma noite no cesto da costura.
Ao outro dia, ao almoço, Amélia estava pálida, com as olheiras até o meio da face. Queixou-se de insônia, de palpitações.
&mdash; E então, gostou dos Cânticos?
&mdash; Muito. Orações lindas! respondeu.
Durante todo esse dia não ergueu os olhos para
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Amaro. Parecia triste &mdash; e sem razão, às vezes, o rosto abrasava-se-lhe de sangue.
 
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Os piores momentos para Amaro eram as segundas e quartas-feiras, quando João Eduardo vinha passar as noites ''em família''. Até às nove horas o pároco não saía do quarto; e quando subia para o chá desesperava-se de ver o escrevente embrulhado no seu xale-manta, sentado junto de Amélia.
 
&mdash; Ai o que estes dois têm para aí palrado, senhor pároco! dizia a S. Joaneira.
 
Amaro tinha um sorriso lívido, partindo devagar a sua torrada, com os olhos fitos na chávena.
 
Amélia na presença de João Eduardo, agora, não tinha com o pároco a mesma familiaridade alegre, mal levantava os olhos da costura; o escrevente, calado, chupava o cigarro; e havia grandes silêncios em que se sentia o vento uivar, encanado na rua.
 
&mdash; Olha quem andar agora nas águas no mar! dizia a S. Joaneira, fazendo devagar a sua meia.
 
&mdash; Safa! acrescentava João Eduardo.
 
As suas palavras, os seus modos irritavam o padre Amaro; detestava-o pela sua pouca devoção, pelo seu bonito bigode preto. E diante dele sentia-se mais enleado no seu acanhamento de padre.
 
&mdash; Toca alguma coisa, filha, dizia a S. Joaneira.
 
&mdash; Estou tão cansada! respondia Amélia apoiando-se nas costas da cadeira, com um suspirozinho de fadiga.
 
A S. Joaneira, então, que não gostava de "ver gente
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mona", propunha uma ''bisca'' de três; e o padre Amaro, tomando o seu candeeiro de latão, descia para o quarto, muito infeliz.
 
Nessas noites quase detestava Amélia; achava-a ''[[wikt:casmurra|casmurra]]''. A intimidade do escrevente na casa parecia-lhe escandalosa: decidiu mesmo falar à S. Joaneira, dizer-lhe "que aquele namoro de portas adentro não podia ser agradável a Deus". Depois, mais razoável, resolvia esquecê-la, pensava em sair da casa, da paróquia. Representava-se então Amélia com a sua coroa de flores de laranjeira, e João Eduardo, muito vermelho, de casaca, voltando da Sé, casados... Via a cama de noivado com os seus lençóis de renda... E todas as provas, as certezas do amor dela pelo "idiota do escrevente" cravavam-se-lhe no peito como punhais...
 
&mdash; Pois que casem, e que os leve o diabo!...
 
Odiava-a então. Fechava violentamente a porta à chave como para impedir que lhe penetrasse no quarto o rumor da sua voz ou o ''frufru'' das suas saias. Mas daí a pouco, como todas as noites, escutava com o coração aos saltos, imóvel e ansioso, os ruídos que ela fazia em cima ao despir-se, palrando ainda com a mãe.
 
Um dia Amaro jantara em casa da Sra. D. Maria da Assunção; fora depois passear pela estrada de Marrazes, e à volta, ao fim da tarde, encontrou, ao entrar em casa, a porta da rua aberta; sobre o capacho, no patamar, estavam os chinelos de ourelo da ''Ruça''.
 
&mdash; Tonta de rapariga! pensou Amaro, foi à fonte e esqueceu-se de fechar a porta.
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/126]]==
 
Lembrou-se que Amélia tinha ido passar a tarde com a Sra. D. Joaquina Gansoso, numa fazenda ao pé da Piedade, e que a S. Joaneira falara em ir à irmã do cônego. Fechou devagar a cancela, subiu à cozinha a acender o seu candeeiro; como as ruas estavam molhadas da chuva da manhã, trazia ainda galochas de borracha; os seus passos não faziam rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar sentiu no quarto da S. Joaneira, através do reposteiro de chita, uma tosse grossa; surpreendido, afastou sutilmente um lado do reposteiro, e pela porta entreaberta espreitou. &mdash; Oh Deus de Misericórdia! a S. Joaneira, em saia branca, atacava o colete; e, sentado à beira da cama, em mangas de camisa, o cônego Dias [[wikt:resfolegar|resfolegava]] grosso!
 
Amaro desceu, colado ao corrimão, fechou muito devagarinho a porta, e foi ao acaso para os lados da Sé. O céu enevoara-se, leves gotas de chuva caíam.
 
&mdash; E esta! E esta! dizia ele assombrado.
 
Nunca suspeitara um tal escândalo! A S. Joaneira, a pachorrenta S. Joaneira! O cônego, seu mestre de Moral! E era um velho, sem os ímpetos do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter dado a idade, a nutrição, as dignidades eclesiásticas! Que faria então um homem novo e forte, que sente uma vida abundante no fundo das suas veias reclamar e arder!... Era, pois, verdade o que se cochichava no seminário, o que lhe dizia o velho padre Sequeira, cinquenta anos padre da Gralheira: &mdash; "Todos são do mesmo barro!" Todos são do mesmo barro, &mdash; sobem em dignidades, entram nos cabidos, regem os seminários, dirigem
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/127]]==
as consciências envoltos em Deus como numa absolvição permanente, e têm no entanto, numa viela, uma mulher pacata e gorda, em casa de quem vão repousar das atitudes devotas e da austeridade do ofício, fumando cigarros de estanco e palpando uns braços rechonchudos!
 
Vinham-lhe então outras reflexões: que gente era aquela, a S. Joaneira e a filha, que viviam assim sustentadas pela lubricidade tardia de um velho cônego? A S. Joaneira fora decerto bonita, bem-feita, desejável &mdash; outrora! Por quantos braços teria passado até chegar, pelos declives da idade, àqueles amores [[wikt:senil|senis]] e mal pagos? As duas mulherinhas, que diabo, não eram honestas! Recebiam hóspedes, viviam da [[wikt:concubina|concubinagem]]. Amélia ia sozinha à igreja, às compras, à fazenda; e com aqueles olhos tão negros, talvez já tivesse tido um amante! &mdash; Resumia, filiava certas recordações: um dia que ela lhe estivera mostrando na janela da cozinha um vaso de rainúnculos, tinham ficado sós, e ela, muito corada, pusera-lhe a mão sobre o ombro e os seus olhos reluziam e pediam; outra ocasião ela roçara-lhe o peito pelo braço! A noite caíra, com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando depressa, cheio de uma só idéia deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o cônego era o amante da mãe! Imaginava já a boa vida escandalosa e [[wikt:regalar|regalada]]; enquanto em cima a grossa S. Joaneira beijocasse o seu cônego cheio de dificuldades asmáticas &mdash; Amélia desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias brancas, com um xale sobre os ombros nus... Com que frenesi a esperaria! E já não sentia por ela o mesmo amor sentimental,
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/128]]==
quase doloroso: agora a idéia muito magana dos dois padres e as duas concubinas, de panelinha, dava àquele homem amarrado pelos votos uma satisfação [[wikt:depravado|depravada]]! Ia aos pulinhos pela rua. &mdash; Que [[wikt:pechincha|pechincha]] de casa!
 
A chuva caía, grossa. Quando entrou havia já luz na sala de jantar. Subiu.
 
&mdash; lh, como vem frio! disse-lhe Amélia sentindo, ao apertar-lhe a mão, a umidade da névoa.
 
Sentada à mesa, costurava com um xale-manta pelos ombros: João Eduardo, ao pé, jogava a bisca com a S. Joaneira.
 
Amaro sentou-se um pouco embaraçado; a presença do escrevente dera-lhe de repente, sem saber por quê, o duro choque duma realidade antipática: e todas as esperanças, que lhe tinham vindo a dançar uma [[wikt:sarabanda|sarabanda]] na imaginação, encolhiam-se uma a uma, murchavam &mdash; vendo ali Amélia ao pé do noivo, curvada sobre uma costura honesta, com o seu escuro vestido afogado, junto do candeeiro de família!
E tudo em redor lhe parecia como mais recatado, as paredes com o seu papel de ramagens verdes, o armário cheio de louça luzidia da Vista Alegre, o simpático e bojudo pote de água, o velho piano mal firme nos seus três pés torneados; o paliteiro tão querido de todos &mdash; um Cupido rechonchudo com um guarda-chuva aberto eriçado de palitos, e aquela tranqüila bisca jogada com os [[wikt:dichote|dichotes]] clássicos. Tudo tão decente!
 
Afirmava-se então nas grossas [[wikt:rosca|roscas]] do pescoço da S. Joaneira, como para descobrir nelas as marcas das beijocas do cônego: ah! tu, não há dúvida, és "uma [[wikt:barregã|barregã de clérigo]]". Mas Amélia!
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com aquelas longas pestanas descidas, o beiço tão fresco!... Ignorava decerto as [[wikt:libertinagem|libertinagens]] da mãe; ou, experiente, estava bem resolvida a estabelecer-se solidamente na segurança dum amor legal! &mdash; E Amaro, da sombra, examinava-a longamente como para se certificar, na placidez do seu rosto, da virgindade do seu passado.
 
&mdash; Cansadinho, senhor pároco, hem? disse a S. Joaneira. E para João Eduardo: &mdash; Trunfo, faz favor, seu cabeça no ar!
 
O escrevente, namorado, distraía-se.
 
&mdash; É o senhor a jogar, dizia-lhe a S. Joaneira a cada momento.
 
Depois ele esquecia-se de comprar cartas.
 
&mdash; Ah menino, menino! dizia ela com a sua voz pachorrenta, que lhe puxo essas orelhas!
Amélia ia cosendo com a cabeça baixa: tinha um pequeno casabeque preto com botões de vidro, que lhe disfarçava a forma do seio.
 
E Amaro irritava-se daqueles olhos fixos na costura, daquele casaco amplo escondendo a beleza que mais [[wikt:apetecer|apetecia]] nela! E nada a esperar. Nada dela lhe pertenceria, nem a luz daquelas pupilas, nem a brancura daqueles peitos! Queria casar &mdash; e guardava ''tudo'' para o outro, o idiota, que sorria baboso, jogando paus! Odiou-o então, dum ódio complicado de inveja ao seu bigode negro e ao seu direito de amar...
 
&mdash; Está incomodado, senhor pároco? perguntou Amélia, vendo-o mexer-se bruscamente na cadeira.
 
&mdash; Não, disse ele secamente.
 
&mdash; Ah! fez ela, com um leve suspiro, picando rapidamente o pesponto.
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O escrevente, baralhando as cartas, começara a falar de uma casa que queria alugar; a conversa caiu sobre arranjos domésticos.
 
&mdash; Traz-me luz! gritou Amaro à ''Ruça''.
 
Desceu para o seu quarto, desesperado. Pôs a vela sobre a cômoda; o espelho estava defronte, e a sua imagem apareceu-lhe; sentiu-se feio, ridículo com a sua cara rapada, a volta hirta como uma coleira, e por trás a coroa hedionda. Comparou-se instintivamente com o outro que tinha um bigode, o seu cabelo todo, a sua liberdade! Para que hei-de eu estar a ralar-me? pensou. O outro era um marido; podia dar-lhe o seu nome, uma casa, a maternidade; ele só poderia dar-lhe sensações criminosas, depois os terrores do pecado! Ela simpatizava talvez com ele, apesar de padre; mas antes de tudo, acima de tudo, queria casar; nada mais natural! Via-se pobre, bonita, só: cobiçava uma situação legítima e duradoura, o respeito das vizinhas, a consideração dos lojistas, todos os proveitos da honra!
 
Odiou-a então, e o seu vestido afogado e a sua honestidade! A estúpida, que não percebia que ao pé dela, sob uma negra batina, uma paixão devota a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciência! Desejou que ela fosse como a mãe, &mdash; ou pior, toda livre, com vestidos garridos, uma [[wikt:cuia|cuia]] [[wikt:impudência|impudente]], traçando a perna e fitando os homens, uma fêmea fácil como uma porta aberta...
 
&mdash; Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada! &mdash; pensou, recaindo em si um pouco envergonhado. Está claro: não podemos pensar em mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito dogma!
 
Abafava. Abriu a janela. O céu estava tenebroso;
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a chuva cessara; o piar das corujas na Misericórdia cortava só o silêncio.
 
Enterneceu-se, então, com aquela escuridão, aquela mudez de vila adormecida. E sentiu subir outra vez, das profundidades do seu ser, o amor que sentira ao princípio por ela, muito puro, dum sentimentalismo devoto: via a sua linda cabeça, duma beleza transfigurada e luminosa, destacar da negrura espessa do ar; e toda a sua alma foi para ela num desfalecimento de adoração, como no culto a Maria e na Saudação Angélica; pediu-lhe perdão ansiosamente de a ter ofendido; disse-lhe alto: És uma santa, perdoa! &mdash; Foi um momento muito doce, de renunciamento carnal...
 
E, espantado quase daquelas delicadezas de sensibilidade que descobria subitamente em si, pôs-se a pensar com saudade &mdash; que se fosse um homem livre seria um marido tão bom! Amorável, delicado, dengueiro, sempre de joelhos, todo de adorações! Como amaria o ''seu'' filho, muito pequerruchinho, a puxar-lhe as barbas! À idéia daquelas felicidades inacessíveis, os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas. Amaldiçoou, num desespero, "a pega da marquesa que o fizera padre", e o bispo que o confirmara!
 
&mdash; Perderam-me! perderam-me! dizia, um pouco desvairado.
 
Sentiu então os passos de João Eduardo que descia, e o rumor das saias de Amélia. Correu a espreitar pela fechadura, cravando os dentes no beiço, de ciúme. A cancela bateu, Amélia subiu cantarolando baixo.
 
&mdash; Mas a sensação do amor místico que o penetrara um momento, olhando a noite, passara; e deitou-se, com um desejo furioso dela e dos seus beijos.
 
[[Categoria:O Crime do Padre Amaro]]