O Crime do Padre Amaro/X: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:O Crime do Padre Amaro|Capítulo 10]]
 
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O redator da Voz do Distrito, o Agostinho Pinheiro, era ainda seu parente. Chamavam-lhe geralmente o Raquítico, por ter uma forte corcunda no ombro, e uma figurinha enfezada de ético. Era extremamente sujo; e a sua carita de fêmea, amarelada, de olhos depravados, revelava vícios antigos, muito torpes. Tinha feito (dizia-se em Leiria) toda a sorte de maroteira. E ouvira tantas vezes exclamar: ''Se você não fosse um raquítico, quebrava-lhe os ossos" - que, vendo na sua corcunda uma proteção suficiente, ganhara um descaro sereno. Era de Lisboa, o que o tomava mais suspeito aos burgueses sérios: atribuía-se a sua voz rouca e acre "a faltar-lhe as campainhas": e os seus dedos queimados terminavam em unhas muito compridas - porque tocava guitarra.
 
A Voz do Distrito fora criada por alguns homens, a quem chamavam em Leiria o grupo da
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Maia, particularmente hostis ao senhor governador civil. O doutor Godinho, que era o chefe e o candidato do grupo, tinha encontrado em Agostinho, como ele dizia, o homem que se precisa: o que o grupo precisava era um patife com ortografia, sem escrúpulos, que redigisse em linguagem sonora os insultos, as calúnias, as alusões que eles traziam informemente à redação, em apontamentos. Agostinho era um estilista de vilezas. Davam-lhe quinze mil-réis por mês e casa de habitação na redação - um terceiro andar desmantelado numa viela ao pé da Praça.
 
Agostinho fazia o artigo de fundo, as locais, a Correspondência de Lisboa; e o bacharel Prudêncio escrevia o folhetim literário sob o título de Palestras Leirienses: era um moço muito honrado, a quem o Sr. Agostinho era repulsivo; mas tinha uma tal gula de publicidade, que se sujeitava a sentar-se todos os sábados fraternalmente á mesma banca, a rever as provas da sua prosa - prosa tão florida de imagens, que se murmurava na cidade, ao lê-la: "Que opulência! Que opulência, Jesus!"
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João Eduardo reconhecia também que o Agostinho era "um trastezito"; não se atreveria a passear com ele de dia nas ruas; mas gostava de ir para a redação, alta noite, fumar cigarros, ouvir o Agostinho falar de Lisboa, do tempo que lá vivera empregado na redação de dois jornais, no teatro da Rua dos Condes, numa casa de penhores, e em outras instituições. Estas visitas eram segredo!
 
Àquela hora da noite a sala da tipografia no primeiro andar estava fechada (o jornal tirava-se
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aos sábados); e João Eduardo encontrava em cima Agostinho abancado com uma velha jaqueta de peles cujos colchetes de prata tinham sido empenhados - ruminando, curvado, à luz dum medonho candeeiro de petróleo, sobre longas tiras de papel: estava fazendo o jornal, e a sala escura em redor tinha o aspecto duma caverna. João Eduardo estirava-se no canapé de palhinha, ou indo buscar a um canto a velha guitarra de Agostinho, repenicava o fado corrido. O jornalista, no entanto, com a testa apoiada a um punho, produzia laboriosamente: "a coisa não lhe saía catita": e como nem o fadinho o inspirava, erguia-se, ia a um armário engolir um copinho de genebra que gargarejava nas fauces estanhadas, espreguiçava-se escancaradamente, acendia o cigarro, e aproveitando o acompanhamento cantarolava roucamente:
 
Ora foi o fado tirano
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— Que pocilga de terra, esta!
 
Não se podia consolar de viver em Leiria, de não poder beber o seu quartilho na taberna do tio João, à Mouraria, com a Ana Alfaiata ou com o Bigodinho -
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ouvindo o João das Biscas de cigarro ao canto da boca, o olho choroso meio fechado pelo fumo do tabaco, fazer chorar a guitarra dizendo a morte da Sofia!
 
Depois, para se reconfortar com a certeza do seu talento, lia a João Eduardo os seus artigos, muito alto. E João interessava-se - porque essas "produções", sendo ultimamente sempre "desandas ao clero", correspondiam às suas preocupações.
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— Tu verás! Coisa de sensação!
 
Como sempre, era uma declamação contra o clero e o elogio do doutor Godinho. Depois de celebrar as virtudes do doutor, "esse tão respeitável chefe de família" e a sua eloquência no tribunal que "arrancara tantos desventurados ao cutelo da lei", o artigo, tomando um tom roncante, apostrofava Cristo: - "Quem te diria a ti (bradava
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Agostinho), ó imortal Crucificado! quem te diria, quando do alto do Gólgota expiravas exangue, quem te diria que um dia, em teu nome, à tua sombra, seria expulso dum estabelecimento de caridade o doutor Godinho, - a alma mais pura, o talento mais robusto..." - E as virtudes do doutor Godinho voltavam, em passo de procissão, solenes e sublimadas, arrastando caudas de adjetivos nobres.
 
Depois, deixando por um momento de contemplar o doutor Godinho, Agostinho dirigia-se diretamente a Roma: - "É no século XIX que vindes atirar à face de 1,eiria liberal os ditames do Syllabus? Pois bem. Quereis a guerra? Tê-la-eis!"
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— Por que não escreves tu alguma coisa, também?
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O escrevente respondeu, sorrindo:
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— Qual! afirmava Agostinho. A coisa publica-se como minha. É artigo da redação. Quem diabo vai saber?
 
Sucedeu na noite seguinte que João Eduardo surpreendeu o padre Amaro resvalando sorrateiramente um segredinho a Amélia - e ao outro dia apareceu de tarde na redação com a palidez de uma noite velada, trazendo cinco largas tiras de papel, miudamente escritas numa letra de
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cartório. Era o artigo, e intitulava-se: Os modernos fariseus! - Depois de algumas considerações, cheias de flores, sobre Jesus e o Gólgota, o artigo de João Eduardo era, sob alusões tão diáfanas como teias de aranha, um vingativo ataque ao cônego Dias, ao padre Brito, ao padre Amaro e ao padre Natário!... Todos tinham a sua dose, como exclamou cheio de júbilo o Agostinho.
 
— E quando sai? perguntou João Eduardo.
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— Isto não pode ir como artigo da redação, deve aparecer como comunicado. Cumpra estas ordens.
 
E Agostinho declarou ao escrevente - que a coisa publicava-se como um Comunicado, assinado: Um liberal. Somente João Eduardo terminava o artigo exclamando: - Alerta, mães de família!
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O Agostinho sugeriu que este final alerta podia dar lugar à réplica jocosa - Alerta está! E depois de largas combinações decidiram-se por este fecho: - Cuidado, sotainas negras!
 
No domingo seguinte apareceu o comunicado assinado: Um liberal.
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Durante toda essa manhã de domingo, o padre Amaro, à volta da Sé, estivera ocupado em compor laboriosamente uma carta a Amélia. Impaciente, como ele dizia, "com aquelas relações que não andavam nem desandavam, que era olhar e apertos de mão e dali não passava" - tinha-lhe dado uma noite, à mesa do quino, um bilhetinho onde escrevera com boa letra, a tinta azul; - Desejo encontrá-la só, porque tenho muito que lhe falar. Onde pode ser sem inconveniente? Deus proteja o nosso afeto. Ela não respondera: - E Amaro despeitado, descontente também por não a ter visto nessa manhã à missa das nove, resolveu "pôr tudo a claro numa carta de sentimento": e preparava os períodos sentidos que lhe deviam ir revolver o coração, passeando pela casa, juncando o chão de pontas de cigarro, a cada momento curvado sobre o Dicionário de Sinônimos.
 
"Ameliazinha do meu coração, (escrevia ele) não posso atinar com as razões maiores que a não deixaram responder ao bilhetinho que lhe dei em casa da senhora sua mamã; pois que era pela muita necessidade que tinha de lhe falar a sós, e as minhas
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intenções eram puras, e na inocência desta a/ma que tanto lhe quer e que não medita o pecado.
 
Deve ter compreendido que lhe voto um fervente afeto, e pela sua parte me parece, (se não me enganam esses olhos que são os faróis da minha vida, e como a estrela do navegante) que também tu, minha Ameliazinha, tens inclinação por quem tanto te adora; pois que até outro dia, quando o Libano quinou com os seis primeiros números, e que todos fizeram tanta algazarra, tu apertaste-me a mão por baixo da mesa com tanta ternura, que até me pareceu que o Céu se abria e que eu sentia os anjos entoarem o Hossana! Por que não respondeste pois? Se pensas que o nosso afeto pode ser desagradável aos nossos anjos da guarda, então te direi que maior pecado cometes trazendo-me nesta incerteza e tortura, que até na celebração da missa estou sempre com o pensar em ti, e nem me deixa elevar a minha a/ma no divino sacrifício. Se eu visse que este mútuo afeto era obra do tentador, eu mesmo te diria: oh, minha bem amada filha, façamos o sacrifício a Jesus, para lhe pagar parte do sangue que derramou por nós! Mas eu tenho interrogado a minha a/ma e vejo nela a brancura dos lírios. E o teu amor também é puro como a tua a/ma, que um dia se unirá à minha, entre os coros celestes, na bem-aventurança. Se tu soubesses como eu te quero, querida Ameliazinha, que até às vezes me parece que te podia comer aos bocadinhos!
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Responde pois e dize se não te parece que poderia arranjar-se a vermo-nos no Morena/, pela tarde. Pois eu anseio por te exprimir todo o fogo que me abrasa, bem como falar-te de coisas importantes, e sentir na minha mão a tua que eu desejo que me guie pelo caminho do amor, até aos êxtases duma felicidade celestial. Adeus, anjo feiticeiro, recebe a oferta do coração do teu amante e pai espiritual,
 
Amaro."
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— O quê? perguntou Amaro. E reparando no silêncio, nos olhos cravados nele: - O que é? Alguma coisa de novo?
 
— Pois não leu, senhor pároco? exclamaram. Não leu o Distrito!?Di
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strito!?
 
Era papel em que ele não pusera os olhos, disse. Então as senhoras indignadas romperam:
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A S. Joaneira deu mais luz ao candeeiro: o cônego Dias acomodou- se à mesa, desdobrou o jornal, pôs os óculos cuidadosamente, e, com o lenço do rapé nos joelhos, começou a leitura do Comunicado na sua voz pachorrenta.
 
O princípio não interessava: eram períodos enternecidos em que o liberal exprobrava aos fariseus a crucificação de Jesus: - "Por que o matásteis? (exclamava ele). Respondei!" E os fariseus respondiam: - "Matamo-lo porque ele era a liberdade, a emancipação, a aurora de uma nova era", etc. O liberal então esboçava, a largos traços, a noite do Calvário: - "Ei-lo pendente da cruz, traspassado de lanças, a sua túnica jogada aos dados, a plebe infrene", etc. E, voltando a dirigir-se aos fariseus infelizes, o liberal gritava-lhes com ironia: - "
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Contemplai a vossa bela obra!" Depois, por uma gradação hábil, o liberal descia de Jerusalém a Leiria: - "Mas pensam os leitores que os fariseus morreram? Como se enganam! Vivem! conhecemo-los nós; Leiria está cheia deles, e vamos apresentá-los aos leitores..."
 
— Agora é que elas começam, disse o cônego olhando para todos em redor, por cima dos óculos.
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Mas se ele não sabia quem era o liberal!
 
— Qual liberal! Quem eu racho é o
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doutor Godinho. O doutor Godinho é que é o dono do jornal. O doutor Godinho é que eu racho!
 
A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso grandes palmadas à coxa.
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— Bem, bem, resumiu Natário. O Brito cometeu uma grande falta, mas saberá pedir perdão a Deus, e a misericórdia de Deus é infinita!
 
Houve uma pausa comovida, em que se ouviu a Sra. D. Maria da Assunção murmurar "que ficara sem pinga de sangue": e o cônego, que durante a catástrofe pousara os óculos sobre a
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mesa, retomou-os, e continuou serenamente a leitura:
 
"...Conheceis um outro com cara de furão?..."
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— Isso é infame! exclamou Amaro exaltado.
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O cônego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:
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— Deixe-a lá, rosnou o cônego, deixe-a lá! Aquilo passa-lhe. São calores!
 
Amélia deu um olhar triste ao padre Amaro, e desceu ao quarto com a Sra. D. Maria da Assunção e a Gansoso surda, que iam também "sossegar
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a D. Josefa, coitadita!" Os padres agora estavam sós e o cônego voltando-se para Amaro: - Ouça você, que é a sua vez - disse retomando o jornal.
 
— E verá que dose! disse Natário.
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— Que infame! rosnou com os dentes cerrados o padre Amaro.
 
"...Mas acautela-te, presbítero perverso!" E a voz do cônego tinha tons cavos ao soltar aquelas apóstrofes. "Já o arcanjo levanta a espada da justiça. E sobre ti, e teus cúmplices, já a opinião
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da ilustrada Leiria fita seu olho imparcial. E nós cá estamos, nós, filhos do trabalho, para vos marcar na fronte o estigma da infâmia. Tremei, sectários do Syllabus! cuidado, sotainas negras!"
 
— De escacha! fez o cônego suado, dobrando a Voz do Distrito.
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— Ai, filhos, eu não é nada comigo, mas só de ouvir todo esse aranzel, até se me estão a vergar as pernas. Ai, filhos, um desgosto assim...
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Mas sentiram a voz da Sra. Joaquina Gansoso subindo a escada; e o cônego imediatamente com uma voz prudente:
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— Ah! e quero dizer outra coisa: como não morreu ninguém, não há necessidade de estar aqui com cara de pêsames. E tu, pequena, senta- te ao instrumento e repenica-me essa Chiquita!
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Detestava Leiria, onde passava por espirituoso; e dizia às senhoras, nas soirées do deputado Novais - "que estava cansado da vida". Rosnava- se que a esposa do bom Novais andava doida por ele: e em verdade Bibi escrevera a um amigo da capital: - "enquanto a conquistas, pouco por ora; tenho apenas no papo a Novaisitos".
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Levantava-se tarde; e nessa manhã, de robe-de-chambre à mesa do almoço, partia os seus ovos quentes, lendo com saudade no jornal a narração apaixonada duma pateada em S. Carlos, quando o criado, - um galego que trouxera de Lisboa - veio dizer que "estava ali um cura".
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E prolongou a sua risadinha com complacência. Queria agradar a Natário, pelo princípio que repetia muito, com um sorriso astuto - "que quem está metido na política deve ter por si a padraria".
 
— E depois, acrescentou, como eu dizia ontem em casa do Novais, que vantagem para as localidades! Lourdes, por exemplo, era uma
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aldeola; pois com a afluência dos devotos está uma cidade... Grandes hotéis, bulevares, belas lojas... É por assim dizer o desenvolvimento econômico, correndo parelhas com o renascimento religioso.
 
E deu com satisfação um puxãozinho grave ao colarinho.
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— Jornal que já devia estar suspenso, senhor secretário-geral!
 
— Suspenso! Por quem é, senhor cura! Mas
— Suspenso! Por quem é, senhor cura! Mas V. St decerto não quer que eu volte ao tempo dos corredores-mores! - Suspender o jornal! Mas a liberdade de imprensa é um princípio sagrado! Nem as leis de imprensa o permitem... Mesmo querelar pelo ministério público porque um periódico diz duas ou três pilhérias sobre o cabido, impossível! Tínhamos de querelar toda a imprensa de Portugal, com exceção da Nação e do Bem Público! Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta anos de progresso, a própria idéia governamental? Mas nós não somos os Cabrais, meu caro senhor! Nós queremos luz, muitíssima luz! Justamente o que nós queremos é luz!
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— Suspenso! Por quem é, senhor cura! Mas V. St decerto não quer que eu volte ao tempo dos corredores-mores! - Suspender o jornal! Mas a liberdade de imprensa é um princípio sagrado! Nem as leis de imprensa o permitem... Mesmo querelar pelo ministério público porque um periódico diz duas ou três pilhérias sobre o cabido, impossível! Tínhamos de querelar toda a imprensa de Portugal, com exceção da Nação e do Bem Público! Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta anos de progresso, a própria idéia governamental? Mas nós não somos os Cabrais, meu caro senhor! Nós queremos luz, muitíssima luz! Justamente o que nós queremos é luz!
 
Natário tossiu devagarinho, disse:
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O secretário-geral teve um sorriso:
 
— Meu caro senhor cura, V. St não está no segredo da política. Entre o doutor Godinho e o governo civil não há inimizade, há apenas um arrufo... O doutor Godinho é uma inteligência... Vai reconhecendo que o grupo da Maia não produz
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nada... O doutor Godinho aprecia a política do governo, e o governo aprecia o doutor Godinho.
 
E, rebuçando-se todo num mistério de Estado, acrescentou:
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— Um criado de V. S.a. Sinto que não tome uma chávena de chá. E como vai o nosso chantre?
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— S. Ex. a nestes últimos dias, segundo creio, tem tornado a sofrer de tonturas.
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— És um gênio, rapaz, disse o Agostinho. É trazer-me outro, é trazer-me outro!
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João Eduardo gozava prodigiosamente "daquele falatório que ia pela cidade".
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João Eduardo foi para o cartório, trêmulo de alegria. O Sr. Nunes Ferral saíra: o escrevente aparou devagar uma pena, começou a cópia duma procuração, - e de repente, agarrando o chapéu, correu à Rua da Misericórdia.
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A S. Joaneira costurava só á janela: Amélia fora ao Morenal: e João Eduardo, logo da porta:
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— Eu li, é o diabo...
 
Mas aproveitando o sentimento da S. Joaneira
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para servir a sua paixão, acrescentou sentando-se, chegando a cadeira para ao pé dela:
 
— Eu nunca lhe quis falar disso, D. Augusta, mas... olhe que a Ameliazinha tratava o pároco com muita familiaridade... E pelas Gansosos, pelo Libaninho, mesmo sem quererem, a coisa ia-se sabendo, ia-se rosnando... Eu bem sei que ela, coitada, não via o mal, mas... a D. Augusta sabe o que é Leiria. Que línguas, hem!
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— E eu! disse. A D. Augusta sabe a paixão que eu tenho por ela... E lá do artigo que me importa a mim?
 
Então a S. Joaneira limpou os olhos ao avental branco. Ai! era uma alegria para ela! Ela sempre o
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dissera, como rapaz de bem, não havia outro na cidade de Leiria! .
 
— Você sabe, quero-lhe como filho!
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— Ora de quê! Que se falava muito na cidade do artigo do Distrito; que se perguntava a quem aludia o periódico com as donzelas inexperientes, e que a resposta era: "Quem há-de ser? a Amélia da S. Joaneira, da Rua da Misericórdia!" O pobre João diz que tem andado tão desgostoso!... Não se atrevia, por delicadeza, a falar-te... Enfim...
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— Mas que hei-de eu fazer, minha mãe? exclamou Amélia com os olhos subitamente cheios de lágrimas, àquelas palavras que caíam sobre os seus tormentos como gotas de vinagre sobre feridas.
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Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a donzela inexperiente a que aludia o Comunicado era ela, Amélia, e torturava-a o vexame de ver assim o seu amor publicado no jornal. Depois (como ela pensava, mordendo o beiço numa raiva
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muda, com os olhos afogados de lágrimas), aquilo vinha estragar tudo! Na Praça, na Arcada já se diria com risinhos perversos: - "Então a Ameliazita da S. Joaneira metida com o pároco, hem?" Decerto o senhor chantre, tão severo em "coisas de mulheres", repreenderia o padre Amaro... E por alguns olhares, alguns apertos de mão, aí estava a sua reputação estragada, estragado o seu amor!
 
Na segunda-feira, ao ir ao Morenal, parecera-lhe sentir pelas costas risinhos a escarnecê-la; no aceno que lhe fez da porta da botica o respeitável Carlos julgou ver uma secura repreensível; à volta encontrara o Marques da loja de ferragens, que não lhe tirou o chapéu, e ao entrar em casa julgava-se desacreditada - esquecendo que o bom Marques era tão curto de vista que usava na loja duas lunetas sobrepostas.
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— É uma pouca-vergonha... É deitar ao desprezo... Quando a gente tem a sua consciência sossegada, o mais histórias...
 
Mas Amélia via-lhe bem o desgosto - na face envelhecida,
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nos tristes silêncios, nos suspiros repentinos quando fazia meia à janela com a luneta na ponta do nariz: e então mais se convencia que havia "grande falatório na cidade", de que a mãe, coitada, estava informada pelas Gansosos e pela D. Josefa Dias - cuja boca produzia o mexerico mais naturalmente que a saliva. Que vergonha, Jesus!
 
E então o seu amor pelo pároco, que até ai, naquela reunião de saias e batinas da Rua da Misericórdia se lhe afigurara natural, agora, julgando-o reprovado pelas pessoas que desde pequena fora acostumada a respeitar - os Guedes, os Marques, os Vaz, - aparecia-lhe já monstruoso: assim as cores dum retrato pintado à luz de azeite, e que à luz de azeite parecem justas, tomam tons falsos e disformes quando lhes cai em cima a luz do sol. E quase estimava que o padre Amaro não tivesse voltado à Rua da Misericórdia.
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— Mas que fazer... E escusam de esperar por ele tão cedo!...
 
E Amélia, que ficara branca como a cal, teve imediatamente a certeza que o pároco, aterrado com o escândalo do jornal, aconselhado pelos padres timoratos, zelosos "do bom nome do clero" -
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tratava de se descartar dela! Mas, cautelosa, diante das amigas da mãe, escondeu o seu desespero: foi mesmo sentar-se ao piano, e tocou mazurcas tão estrondosas - que o cônego, tomando a mexer-se na poltrona, grunhiu:
 
— Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga!
 
Passou uma noite agoniada, e sem chorar. A sua paixão pelo pároco flamejava mais irritada; e todavia detestava-o pela sua cobardia. Mal uma alusão num jornal o picara, ficara a tremer na sua batina, apavorado, não se atrevendo sequer a visitá-la - sem se lembrar que também ela se via diminuída na sua reputação, sem ser satisfeita no seu amor! E fora ele que a tentara com as suas palavrinhas doces, as suas denguices! Infame!... Desejava violentamente apertá-lo ao coração - e esbofeteá-lo. Teve a idéia insensata de ir ao outro dia à Rua das Sousas atirar-se-lhe aos braços, instalar-se-lhe no quarto, fazer um escândalo que o obrigasse a fugir da diocese... Por que não? Eram novos, eram robustos, poderiam viver longe, noutra cidade, - e a sua imaginação começou a repastar-se logo histericamente nas perspectivas deliciosas dessa existência, em que se figurava constantemente a dar-lhe beijos! Através da sua intensa excitação, aquele plano parecia-lhe muito prático, muito fácil: fugiriam para o Algarve; lá, ele deixaria crescer o cabelo (que mais bonito seria então!) e ninguém saberia que era um padre; poderia ensinar latim, ela coseria para fora; e viveriam numa casinha - onde o que mais a atraia era o leito com as duas travesseirinhas chegadas... E a única dificuldade que via em todo este plano
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radiante, era fazer sair de casa, ás escondidas da mãe, o baú com a sua roupa! - Mas quando acordou, essas resoluções mórbidas, à luz clara do dia, desfizeram-se como sombras: tudo aquilo que parecia agora tão impraticável, e ele tão separado dela, como se entre a Rua da Misericórdia e a Rua das Sousas se erguessem inacessivelmente todas as montanhas da Terra. Ai, o senhor pároco abandonara-a, era certo! Não queria perder os lucros da sua paróquia nem a estima dos seus superiores!... Pobre dela! Considerou-se então para sempre infeliz e desinteressada da vida. Guardou, todavia, muito intenso, o desejo de se vingar do padre Amaro.
 
Foi então que refletiu, pela primeira vez, que João Eduardo desde a publicação do Comunicado não aparecera na Rua da Misericórdia. Também me volta as costas - pensou com amargura. Mas que lhe importava? No meio da aflição que lhe dava o abandono do padre Amaro, a perda do amor do escrevente, piegas e pesado, que lhe não trazia utilidade nem prazer, era uma contrariedade imperceptível: uma infelicidade viera que lhe arrebatava bruscamente todas as afeições - a que lhe enchia a alma, e a que apenas lhe acariciava a vaidadezinha; e irritava-a, sim, não sentir já o amor do escrevente colado a suas saias, com a docilidade dum cão - mas todas as suas lágrimas eram para o senhor pároco "que já não queria saber dela"! Só lamentava a deserção de João Eduardo, porque perdia assim um meio sempre pronto de fazer enraivecer o padre Amaro...
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— É sempre o melhor - murmurou Amélia entrando no quarto. E sentou-se muito triste aos pés da cama porque a melancolia que lhe dava o crepúsculo tornava-lhe agora mais pungente a saudade "dos seus bons tempos com o senhor pároco".
 
Nessa noite choveu muito, as duas senhoras passaram sós. A S. Joaneira, repousada agora das suas inquietações, estava muito sonolenta, a cada momento cabeceava com a meia caída no regaço. Amélia então pousava a costura, e com o cotovelo sobre a mesa, fazendo girar o abajur verde
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do candeeiro, pensava no seu casamento: o João Eduardo era bom rapaz, coitado; realizava o tipo de marido tão estimado na pequena burguesia - não era feio e tinha um emprego; decerto o oferecimento da sua mão, apesar das infâmias do jornal, não lhe parecia, como a mãe dissera, "um rasgo de mão-cheia"; mas a sua dedicação lisonjeava-a, depois do abandono tão cobarde de Amaro: e havia dois anos que o pobre João gostava dela... Começou então laboriosamente a lembrar tudo o que nele lhe agradava - o seu ar sério, os seus dentes muito brancos, a sua roupa asseada.
 
Fora ventava forte, e a chuva, fustigando friamente as vidraças, dava-lhe apetites de confortos, um bom lume, o marido ao lado, o pequerrucho a dormir no berço - porque seria um rapaz, chamar-se-ia Carlos e teria os olhos negros do padre Amaro. O padre Amaro... Depois de casada, decerto, tornaria a encontrar o Sr. padre Amaro... E então uma idéia atravessou todo o seu ser, fê-la erguer bruscamente, ir por instinto procurar a escuridão da janela para ocultar a vermelhidão do rosto. Oh! isso não, isso não! Era horrível!... Mas a idéia implacavelmente apoderara-se dela como um braço muito forte que a sufocava e lhe dava uma agonia deliciosa. E então o antigo amor, que o despeito e a necessidade tinham recalcado no fundo da sua alma, rompeu, inundou-a: murmurou repetidamente, com paixão, torcendo as mãos, o nome de Amaro: desejou avidamente os seus beijos - oh! adorava-o! E tudo tinha acabado, tudo tinha acabado! E devia casar, pobre dela!... Então à janela, com a
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face contra a escuridão da noite, choramingou baixinho.
 
Ao chá a S. Joaneira disse-lhe, de repente:
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"SR. JOÃO EDUARDO.
 
A mamã cá me pôs ao fato da conversação que teve consigo. E se a sua afeição é verdadeira, como creio e me tem dado muitas provas, eu estou pelo que se decidiu com muito boa vontade, pois conhece os meus sentimentos. E a respeito de enxoval e papéis, amanhã se falará, pois que o esperamos para o chá. A mamã está muito contente e eu
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desejo que tudo seja para nossa felicidade, como espero há-de ser, com a ajuda de Deus. A mamã recomenda-se e eu sou
 
a que muito lhe quer,
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Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante dela deram-lhe o desejo de escrever ao padre Amaro. Mas o quê? Confessar-lhe o seu amor, com a mesma pena, molhada na mesma tinta, com que aceitava por marido o outro?... Acusá-lo da sua cobardia, mostrar o seu desgosto - era humilhar-se! E apesar de não ter motivo para lhe escrever, a sua mão ia traçando com gozo as primeiras palavras: "Meu adorado Amaro..." Deteve-se, considerando que não tinha por quem mandar a carta. Ai! tinham de separar-se assim, em silêncio, para sempre!... Separarem-se por quê? - pensou. Depois de casada podia bem ver o Sr, padre Amaro. E a mesma idéia voltava, sutilmente, mas numa forma tão honesta agora, que a não repelia: decerto, o Sr. padre Amaro podia ser o seu confessor; era em toda a cristandade a pessoa que melhor guiaria a sua alma, a sua vontade, a sua consciência; haveria então entre eles uma troca deliciosa e constante de confidências, de doces admoestações; todos os sábados iria receber ao confessionário, na luz dos seus olhos e no som das suas palavras, uma provisão de felicidade; e aquilo seria casto, muito picante, e para a glória de Deus.
 
Sentiu-se quase satisfeita com a impressão, que não definia bem, duma existência em que a
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carne estaria legitimamente contente, e a sua alma gozaria os encantos duma devoção amorosa. Tudo vinha a calhar bem, por fim... E daí a pouco dormia serenamente, sonhando que estava na sua casa, com o seu marido, e que jogava a manilha com as velhas amigas, no meio do contentamento de toda a Sé, sentada nos joelhos do senhor pároco.
 
Ao outro dia a Ruça levou a carta a João Eduardo, e toda a manhã as duas senhoras, costurando à janela, falaram do casamento. Amélia não se queria separar da mãe, e, como a casa tinha acomodações, os noivos viveriam no primeiro andar, e a S. Joaneira dormiria no quarto em cima; decerto o senhor cônego ajudaria para o enxoval; podiam ir passar a lua-de-mel para a fazenda da D. Maria. E Amélia àquelas perspectivas felizes fazia-se toda escarlate, sob o olhar da mãe que, de luneta na ponta do nariz, a admirava, babosa.
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— Eu mandei-a pela Ruça logo pela manhã para o pilhar em casa - disse ela imediatamente com as faces a arder.
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— Eu ia para o cartório, até já ia na escada... Haviam de ser nove horas...
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— Eu estimo, porque é a contento da rapariga, e é um descanso para a pobre velha...
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— Está claro, está claro... - murmurou Amaro, que se fizera muito branco.
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— Diz que há grande alegrão na casa da S. Joaneira! - disse o pároco, com um azedume negro.
 
— Que se divirtam! Eu não tenho tempo de lá ir... Eu não tenho tempo para nada!... Eu cá ando no meu fito, saber quem é o liberal e escachá-lo! Não posso ver esta gente que leva a chicotada, coça-se, e curva a orelha. Eu cá não!
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eu guardo-as! - E, com uma contração de rancor, que lhe curvou os dedos em garra, e lhe encolheu o peito magro, disse por entre os dentes cerrados: - Eu, quando odeio, odeio bem!
 
Esteve um momento calado, gozando o sabor do seu fel.
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— Deixar passar o aguaceiro, pensou.
 
Ao fim de quinze dias, três semanas, quando o artigo estivesse esquecido, apareceria de novo em
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casa da S. Joaneira: deixaria ver bem à rapariga que a adorava sempre, mas evitaria a antiga familiaridade, as conversazinhas baixas, os lugarzinhos chegados ao quino; depois, pela D. Maria da Assunção, pela D. Josefa Dias, obteria que Amélia deixasse o padre Silvèrio e se confessasse a ele: poderiam então entender-se, no segredo do confessionário: combinariam uma conduta discreta, encontros cautelosos aqui e além, cartinhas pela criada: e aquele amor assim conduzido, com prudenciazinha, não teria o perigo de aparecer uma manhã anunciado no periódico! E regozijava-se já da habilidade desta combinação, quando lhe vinha o grande choque - casava-se a rapariga!
 
Depois dos primeiros desesperos, desabafos em patadas no soalho e blasfêmias de que pedia logo perdão a Nosso Senhor Jesus Cristo, quis serenar, estabelecer a razão das coisas. Aonde o levava aquela paixão? Ao escândalo. E assim, casada ela, cada um entrava no seu destino legitimo e sensato - ela na sua família, ele na sua paróquia. Depois, quando se encontrassem, um cumprimento amável; e ele poderia passear a cidade com a sua cabeça bem direita, sem medo dos apartes da Arcada, das insinuações da gazeta, das severidades de sua excelência e das picadinhas da consciência! E a sua vida seria feliz. - Não, por Deus! a sua vida não poderia ser feliz sem ela! Tirado à sua existência aquele interesse das visitas à Rua da Misericórdia, os apertozinhos de mão, a esperança de delicias melhores - que lhe restava a ele? Vegetar, como um dos tortulhos nos cantos úmidos da Sé! E ela, ela que o entontecera
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com os seus olhinhos e as suas maneirinhas, voltava-lhe as costas mal lhe aparecia outro, bom para marido, com 25$000 por mês! Todos aqueles suspiros, aquelas mudanças de cor - chalaça! Mangara com o senhor pároco!
 
O que a odiava! - menos que ao outro porém, o outro que triunfava porque era um homem, tinha a sua liberdade, o seu cabelo todo, o seu bigode, um braço livre para lhe dar na rua! Repastava então a imaginação rancorosamente nas visões de felicidade do escrevente: via-o trazendo-a da igreja triunfantemente; via-o beijando-lhe o pescoço e o peito... E a estas idéias dava patadas furiosas no soalho - que assustavam a Vicência na cozinha
 
Depois procurava sossegar, retomar a direção das suas faculdades, aplicá-las todas a achar uma vingança, uma boa vingança! E voltava então o antigo desespero de não viver no tempo da Inquisição, e com uma denúncia de irreligião ou de feitiçaria, mandá-los ambos para um cárcere. Ah! nesse tempo um padre gozava! Mas agora, com os senhores liberais, tinha de ver aquele miserável escrevente a seis vinténs por dia apoderar-se lhe da rapariga - e ele, sacerdote instruído, que podia ser bispo, que podia ser papa, tinha de vergar os ombros e ruminar solitariamente o seu despeito! Ah! se as maldições de Deus tinham algum valor - malditos fossem eles! Queria vê-los cheios de filhos, sem pão na prateleira, com o último cobertor empenhado, ressequidos de fome, injuriando-se, - e ele a rir-se, ele a regalar-se!...
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— Credo, criatura! disse-lhe. Chegue-se um pouco mais para lá, que nem me deixa os braços livres para tocar!
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Terminou bruscamente a valsa dos Dois Mundos, começou a cantar o Adeus:
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Voltou as costas, e foi conversar com o cônego que se enterrara na sua poltrona, queixando-se de enfastiamento e reclamando o chá.
 
Amélia ficara como abstrata, correndo inconscientemente os dedos pelo teclado. Aquele modo do padre Amaro confirmava a sua idéia: queria a
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todo o custo descartar-se dela, o ingrato! fazia "como se nada tivesse havido", o vilão! Na sua cobardia de padre, com o terror do senhor chantre, do jornal, da Arcada, de tudo - sacudia-a da sua imaginação, do seu coração, da sua vida como se sacode um inseto que tem peçonha!... Então, para o enraivecer, começou a cochichar ternamente com o escrevente; roçava-se lhe pelo ombro, rendida, com risinhos, segredinhos; tentaram, em alarido jovial, tocar uma peça a quatro mãos; depois ela beliscou-o, ele deu um gritinho exagerado. - E a S. Joaneira contemplava-os babosa, enquanto o cônego dormitava já, e o padre Amaro, abandonado a um canto como outrora o escrevente, ia folheando o velho álbum.
 
Mas um brusco repique da campainha veio sobressaltá-los todos: passos rápidos galgaram a escada, pararam embaixo na saleta; e a Ruça apareceu dizendo "que era o Sr, padre Natàrio, que não desejava subir, e queria dar uma palavra ao senhor cônego".
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— Venha cá, homem. E diga à senhora que pode vir também.
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A S. Joaneira desceu logo, muito assustada: Amaro imaginava que o padre Natàrio enfim descobrira o liberal!
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— Sempre é o que se dizia da mulher do regedor, murmurou a boa senhora.
 
— Olá! interrompeu severamente o cônego. Então, senhora, então! Isto aqui não é casa de murmuração!...
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Siga com o seu recado, colega Natário.
 
— Secundo, continuou Natàrio: é o que eu ia dizer ao colega Dias... O senhor chantre, em vista do Comunicado e de outros ataques da imprensa, está decidido a "reformar os costumes do clero diocesano", palavras do padre Saldanha. Que lhe desagradam sumamente os conciliábulos de eclesiásticos e de senhoras... Que quer saber o que é isso de sacerdotes ajanotados tentando meninas bonitas... Enfim, palavras textuais de sua excelência - está decidido a limpar as cavalariças de Augias!... - o que quer dizer em bom português, minha senhora, que vai andar tudo numa roda-viva.
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— O padre Saldanha é um patarata!... Vamos nós às torradinhas, e lá em cima, diante dos rapazes, caluda.
 
O chá foi silencioso. O cônego, a cada bocado de torrada, respirava afrontado, franzia muito o sobrolho: a S. Joaneira, depois de falar da D. Maria da Assunção que estava mal do catarro, ficou toda
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murcha, com a testa sobre o punho. Natário, a grandes passadas, fazia uma ventania na sala com as abas do casacão.
 
— E quando vem essa boda? exclamou ele, estacando subitamente diante de Amélia e do escrevente, que tomavam o chá sobre o piano,
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Na saleta a vela ainda ardia com um morrão. O cônego entrou a buscar o seu guarda-chuva; e então, chamando os outros, cerrando devagarinho a porta, disse-lhes baixo:
 
— Eu, colegas, não quis assustar há pouco a
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pobre senhora, mas essas coisas do chantre, esses falatórios... É o diabo!
 
— É ter cautelinha, meninos! aconselhou Natário, abafando a voz.
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— Pois meninos, não há que ver, estamos em calças pardas...
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Da janela de cima alumiada, saiam os sons do piano, nos acompanhamentos da Chiquita. O cônego soprava, agarrando fortemente o guarda- chuva contra o vento; ao lado Natário, cheio de fel, rilhava os dentes, encolhido no seu casacão; Amaro caminhava de cabeça caída, num abatimento de derrota; e enquanto os três padres, assim agachados sob o guarda-chuva do cônego, iam chapinhando as poças pela rua tenebrosa, por trás a chuva penetrante e sonora ia-os ironicamente fustigando!