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O redator da Voz do Distrito, o Agostinho Pinheiro, era ainda seu parente. Chamavam-lhe geralmente o Raquítico, por ter uma forte corcunda no ombro, e uma figurinha enfezada de ético. Era extremamente sujo; e a sua carita de fêmea, amarelada, de olhos depravados, revelava vícios antigos, muito torpes. Tinha feito (dizia-se em Leiria) toda a sorte de maroteira. E ouvira tantas vezes exclamar: ''Se você não fosse um raquítico, quebrava-lhe os ossos" - que, vendo na sua corcunda uma proteção suficiente, ganhara um descaro sereno. Era de Lisboa, o que o tomava mais suspeito aos burgueses sérios: atribuía-se a sua voz rouca e acre "a faltar-lhe as campainhas": e os seus dedos queimados terminavam em unhas muito compridas - porque tocava guitarra.
 
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A Voz do Distrito fora criada por alguns homens, a quem chamavam em Leiria o grupo da
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Maia, particularmente hostis ao senhor governador civil. O doutor Godinho, que era o chefe e o candidato do grupo, tinha encontrado em Agostinho, como ele dizia, o homem que se precisa: o que o grupo precisava era um patife com ortografia, sem escrúpulos, que redigisse em linguagem sonora os insultos, as calúnias, as alusões que eles traziam informemente à redação, em apontamentos. Agostinho era um estilista de vilezas. Davam-lhe quinze mil-réis por mês e casa de habitação na redação - um terceiro andar desmantelado numa viela ao pé da Praça.
 
Agostinho fazia o artigo de fundo, as locais, a Correspondência de Lisboa; e o bacharel Prudêncio escrevia o folhetim literário sob o título de Palestras Leirienses: era um moço muito honrado, a quem o Sr. Agostinho era repulsivo; mas tinha uma tal gula de publicidade, que se sujeitava a sentar-se todos os sábados fraternalmente á mesma banca, a rever as provas da sua prosa - prosa tão florida de imagens, que se murmurava na cidade, ao lê-la: "Que opulência! Que opulência, Jesus!"
 
João Eduardo reconhecia também que o Agostinho era "um trastezito"; não se atreveria a passear com ele de dia nas ruas; mas gostava de ir para a redação, alta noite, fumar cigarros, ouvir o Agostinho falar de Lisboa, do tempo que lá vivera empregado na redação de dois jornais, no teatro da Rua dos Condes, numa casa de penhores, e em outras instituições. Estas visitas eram segredo!
 
Àquela hora da noite a sala da tipografia no primeiro andar estava fechada (o jornal tirava-se
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aos sábados); e João Eduardo encontrava em cima Agostinho abancado com uma velha jaqueta de peles cujos colchetes de prata tinham sido empenhados - ruminando, curvado, à luz dum medonho candeeiro de petróleo, sobre longas tiras de papel: estava fazendo o jornal, e a sala escura em redor tinha o aspecto duma caverna. João Eduardo estirava-se no canapé de palhinha, ou indo buscar a um canto a velha guitarra de Agostinho, repenicava o fado corrido. O jornalista, no entanto, com a testa apoiada a um punho, produzia laboriosamente: "a coisa não lhe saía catita": e como nem o fadinho o inspirava, erguia-se, ia a um armário engolir um copinho de genebra que gargarejava nas fauces estanhadas, espreguiçava-se escancaradamente, acendia o cigarro, e aproveitando o acompanhamento cantarolava roucamente:
 
Ora foi o fado tirano
 
Que me levou à má vida,
 
E a guitarra: dir-lim, dim, dim, dir-lim, dim, dom.
 
Na vida do negro fado
 
Ai! que me traz assim perdida...
 
Isto trazia-lhe sempre as recordações de Lisboa, porque terminava por dizer, com ódio:
 
&mdash; Que pocilga de terra, esta!
 
Não se podia consolar de viver em Leiria, de não poder beber o seu quartilho na taberna do tio João, à Mouraria, com a Ana Alfaiata ou com o Bigodinho -
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ouvindo o João das Biscas de cigarro ao canto da boca, o olho choroso meio fechado pelo fumo do tabaco, fazer chorar a guitarra dizendo a morte da Sofia!
 
Depois, para se reconfortar com a certeza do seu talento, lia a João Eduardo os seus artigos, muito alto. E João interessava-se - porque essas "produções", sendo ultimamente sempre "desandas ao clero", correspondiam às suas preocupações.
 
Era por esse tempo que, em virtude da famosa questão da Misericórdia, o doutor Godinho se tomara muito hostil ao cabido e à padraria. Sempre detestara padres; tinha uma má doença de fígado, e como a Igreja o fazia pensar no cemitério, odiava a sotaina, porque lhe parecia uma ameaça da mortalha. E Agostinho que tinha um profundo depósito de fel a derramar, instigado pelo doutor Godinho, exagerava as suas verrinas: mas, com o seu fraco literário, cobria o vitupério de tão espessas camadas de retórica que, como dizia o cônego Dias, "aquilo era ladrar, não era morder!"
 
Uma dessas noites João Eduardo encontrou Agostinho todo entusiasmado com um artigo que compusera de tarde, e que lhe "saíra cheio de piadas à Vítor Hugo!"
 
&mdash; Tu verás! Coisa de sensação!
 
Como sempre, era uma declamação contra o clero e o elogio do doutor Godinho. Depois de celebrar as virtudes do doutor, "esse tão respeitável chefe de família" e a sua eloquência no tribunal que "arrancara tantos desventurados ao cutelo da lei", o artigo, tomando um tom roncante, apostrofava Cristo: - "Quem te diria a ti (bradava
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Agostinho), ó imortal Crucificado! quem te diria, quando do alto do Gólgota expiravas exangue, quem te diria que um dia, em teu nome, à tua sombra, seria expulso dum estabelecimento de caridade o doutor Godinho, - a alma mais pura, o talento mais robusto..." - E as virtudes do doutor Godinho voltavam, em passo de procissão, solenes e sublimadas, arrastando caudas de adjetivos nobres.
 
Depois, deixando por um momento de contemplar o doutor Godinho, Agostinho dirigia-se diretamente a Roma: - "É no século XIX que vindes atirar à face de 1,eiria liberal os ditames do Syllabus? Pois bem. Quereis a guerra? Tê-la-eis!"
 
&mdash; Hem, João?! dizia. Está forte! Está filosófico!
 
E retomando a leitura: - "Quereis a guerra? Tê-la-eis! Levantaremos bem alto o nosso estandarte, que não é o da demagogia, compreendei-o bem! e arvorando-o, com braço firme, no mais alto baluarte das liberdades públicas, gritaremos à face de Leiria, à face da Europa: Filhos do século XIX! às armas! Às armas, pelo progresso!"
 
&mdash; Hem? Está de os enterrar!
 
João Eduardo, que ficara um momento calado, disse então, levantando as suas expressões em harmonia com a prosa sonora do Agostinho:
 
&mdash; O clero quer-nos arrastar aos funestos tempos do obscurantismo!
 
Uma frase tão literária surpreendeu o jornalista: fitou João Eduardo, disse:
 
&mdash; Por que não escreves tu alguma coisa, também?
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O escrevente respondeu, sorrindo:
 
&mdash; E eu, Agostinho, eu é que te escrevia uma desanda aos padres... E eu tocava-lhes os podres. Eu é que os conheço!...
 
Agostinho instou logo com ele para que escrevesse a desanda.
 
&mdash; Vem a calhar, menino!
 
O doutor Godinho ainda na véspera lhe recomendara: - "Em tudo que cheirar a padre, para baixo! Havendo escândalo, conta-se! não havendo, inventa-se!"
 
E Agostinho acrescentou, com benevolência:
 
&mdash; E não te dê cuidado o estilo, que eu cá o florearei!
 
&mdash; Veremos, veremos, murmurou João Eduardo.
 
Mas daí por diante Agostinho perguntava-lhe sempre:
 
&mdash; E o artigo, homem? Traz-me o artigo.
 
Tinha avidez dele, porque sabendo como João Eduardo vivia na intimidade da "panelinha canônica da S. Joaneira", supunha-o no segredo de infâmias especiais.
 
João Eduardo, porém, hesitava. Se se viesse a saber?
 
&mdash; Qual! afirmava Agostinho. A coisa publica-se como minha. É artigo da redação. Quem diabo vai saber?
 
Sucedeu na noite seguinte que João Eduardo surpreendeu o padre Amaro resvalando sorrateiramente um segredinho a Amélia - e ao outro dia apareceu de tarde na redação com a palidez de uma noite velada, trazendo cinco largas tiras de papel, miudamente escritas numa letra de
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cartório. Era o artigo, e intitulava-se: Os modernos fariseus! - Depois de algumas considerações, cheias de flores, sobre Jesus e o Gólgota, o artigo de João Eduardo era, sob alusões tão diáfanas como teias de aranha, um vingativo ataque ao cônego Dias, ao padre Brito, ao padre Amaro e ao padre Natário!... Todos tinham a sua dose, como exclamou cheio de júbilo o Agostinho.
 
&mdash; E quando sai? perguntou João Eduardo.
 
O Agostinho esfregou as mãos, refletiu, disse:
 
&mdash; É que está forte, diabo! É como se tivesse os nomes próprios! Mas descansa, eu arranjarei.
 
Foi cautelosamente mostrar o artigo ao doutor Godinho - que o achou "uma catilinária atroz". Entre o doutor Godinho e a Igreja havia apenas um arrufo: ele reconhecia, em geral, a necessidade da religião entre as massas; sua esposa, a bela D. Cândida, era além disso de inclinações devotas, e começava a dizer que aquela guerra do jornal ao clero lhe causava grandes escrúpulos: e o doutor Godinho não queria provocar ódios desnecessários entre os padres, prevendo que o seu amor da paz doméstica, os interesses da ordem e o seu dever de cristão o forçariam bem cedo a uma reconciliação, - "muito contra as suas opiniões, mas..."
 
Disse por isso a Agostinho secamente:
 
&mdash; Isto não pode ir como artigo da redação, deve aparecer como comunicado. Cumpra estas ordens.
 
E Agostinho declarou ao escrevente - que a coisa publicava-se como um Comunicado, assinado: Um liberal. Somente João Eduardo terminava o artigo exclamando: - Alerta, mães de família!
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O Agostinho sugeriu que este final alerta podia dar lugar à réplica jocosa - Alerta está! E depois de largas combinações decidiram-se por este fecho: - Cuidado, sotainas negras!
 
No domingo seguinte apareceu o comunicado assinado: Um liberal.
 
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Durante toda essa manhã de domingo, o padre Amaro, à volta da Sé, estivera ocupado em compor laboriosamente uma carta a Amélia. Impaciente, como ele dizia, "com aquelas relações que não andavam nem desandavam, que era olhar e apertos de mão e dali não passava" - tinha-lhe dado uma noite, à mesa do quino, um bilhetinho onde escrevera com boa letra, a tinta azul; - Desejo encontrá-la só, porque tenho muito que lhe falar. Onde pode ser sem inconveniente? Deus proteja o nosso afeto. Ela não respondera: - E Amaro despeitado, descontente também por não a ter visto nessa manhã à missa das nove, resolveu "pôr tudo a claro numa carta de sentimento": e preparava os períodos sentidos que lhe deviam ir revolver o coração, passeando pela casa, juncando o chão de pontas de cigarro, a cada momento curvado sobre o Dicionário de Sinônimos.
 
"Ameliazinha do meu coração, (escrevia ele) não posso atinar com as razões maiores que a não deixaram responder ao bilhetinho que lhe dei em casa da senhora sua mamã; pois que era pela muita necessidade que tinha de lhe falar a sós, e as minhas
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intenções eram puras, e na inocência desta a/ma que tanto lhe quer e que não medita o pecado.
 
Deve ter compreendido que lhe voto um fervente afeto, e pela sua parte me parece, (se não me enganam esses olhos que são os faróis da minha vida, e como a estrela do navegante) que também tu, minha Ameliazinha, tens inclinação por quem tanto te adora; pois que até outro dia, quando o Libano quinou com os seis primeiros números, e que todos fizeram tanta algazarra, tu apertaste-me a mão por baixo da mesa com tanta ternura, que até me pareceu que o Céu se abria e que eu sentia os anjos entoarem o Hossana! Por que não respondeste pois? Se pensas que o nosso afeto pode ser desagradável aos nossos anjos da guarda, então te direi que maior pecado cometes trazendo-me nesta incerteza e tortura, que até na celebração da missa estou sempre com o pensar em ti, e nem me deixa elevar a minha a/ma no divino sacrifício. Se eu visse que este mútuo afeto era obra do tentador, eu mesmo te diria: oh, minha bem amada filha, façamos o sacrifício a Jesus, para lhe pagar parte do sangue que derramou por nós! Mas eu tenho interrogado a minha a/ma e vejo nela a brancura dos lírios. E o teu amor também é puro como a tua a/ma, que um dia se unirá à minha, entre os coros celestes, na bem-aventurança. Se tu soubesses como eu te quero, querida Ameliazinha, que até às vezes me parece que te podia comer aos bocadinhos!
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Responde pois e dize se não te parece que poderia arranjar-se a vermo-nos no Morena/, pela tarde. Pois eu anseio por te exprimir todo o fogo que me abrasa, bem como falar-te de coisas importantes, e sentir na minha mão a tua que eu desejo que me guie pelo caminho do amor, até aos êxtases duma felicidade celestial. Adeus, anjo feiticeiro, recebe a oferta do coração do teu amante e pai espiritual,
 
Amaro."
 
Depois de jantar copiou esta carta a tinta azul, e com ela bem dobrada no bolso da batina foi à Rua da Misericórdia. Logo da escada sentiu em cima a voz aguda de Natário, discutindo.
 
&mdash; Quem está por cá? - perguntou à Ruça, que alumiava, encolhida no seu xale.
 
&mdash;.As senhoras todas. Está o Sr, padre Brito.
 
&mdash; Olá! Bela sociedade!
 
Galgou os degraus, e à porta da sala, com o seu capote ainda pelos ombros, tirando alto o chapéu:
 
&mdash; Muito boas noites a todos, começando pelas senhoras.
 
Natário, imediatamente, plantou-se diante dele e exclamou:
 
&mdash; Então que lhe parece?
 
&mdash; O quê? perguntou Amaro. E reparando no silêncio, nos olhos cravados nele: - O que é? Alguma coisa de novo?
 
&mdash; Pois não leu, senhor pároco? exclamaram. Não leu o Di
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strito!?
 
Era papel em que ele não pusera os olhos, disse. Então as senhoras indignadas romperam:
 
&mdash; Ai! é um desaforo!
 
&mdash; Ai! é um escândalo, senhor pároco!
 
Natário com as mãos enterradas nas algibeiras contemplava o pároco com um sorrizinho sarcástico, saltando dentre os dentes:
 
&mdash; Não leu! Não leu! Então que fez?
 
Amaro reparava, já aterrado, na palidez de Amélia, nos seus olhos muito vermelhos. E enfim o cônego erguendo-se pesadamente:
 
&mdash; Amigo pároco, dão-nos uma desanda...
 
&mdash; Ora essa! exclamou Amaro.
 
&mdash; Tesa!
 
O senhor cônego, que trouxera o jornal, devia ler alto - lembraram.
 
&mdash; Leia, Dias, leia, acudiu Natário. Leia, para saborearmos!
 
A S. Joaneira deu mais luz ao candeeiro: o cônego Dias acomodou- se à mesa, desdobrou o jornal, pôs os óculos cuidadosamente, e, com o lenço do rapé nos joelhos, começou a leitura do Comunicado na sua voz pachorrenta.
 
O princípio não interessava: eram períodos enternecidos em que o liberal exprobrava aos fariseus a crucificação de Jesus: - "Por que o matásteis? (exclamava ele). Respondei!" E os fariseus respondiam: - "Matamo-lo porque ele era a liberdade, a emancipação, a aurora de uma nova era", etc. O liberal então esboçava, a largos traços, a noite do Calvário: - "Ei-lo pendente da cruz, traspassado de lanças, a sua túnica jogada aos dados, a plebe infrene", etc. E, voltando a dirigir-se aos fariseus infelizes, o liberal gritava-lhes com ironia: - "
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Contemplai a vossa bela obra!" Depois, por uma gradação hábil, o liberal descia de Jerusalém a Leiria: - "Mas pensam os leitores que os fariseus morreram? Como se enganam! Vivem! conhecemo-los nós; Leiria está cheia deles, e vamos apresentá-los aos leitores..."
 
&mdash; Agora é que elas começam, disse o cônego olhando para todos em redor, por cima dos óculos.
 
Com efeito "elas começavam"; era, numa forma brutal, uma galeria de fotografias eclesiásticas: a primeira era a do padre Brito: - "Vede-o, (exclamava o liberal) grosso como um touro, montado na sua égua castanha..."
 
&mdash; Até a cor da égua! murmurou com uma indignação piedosa a Sra. D. Maria da Assunção.
 
"... Estúpido como um melão, sem sequer saber latim..."
 
O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o padre Brito, escarlate, mexia-se na cadeira, esfregando devagar os joelhos.
 
"... Espécie de caceteiro", continuava o cônego, que lia aquelas frases cruéis com uma tranquilidade doce, "desabrido de maneiras, mas que não desgosta de se dar à ternura, e, segundo dizem os bem informados, escolheu para Dulcinéia a própria e legítima esposa do seu regedor..."
 
O padre Brito não se dominou:
 
&mdash; Eu racho-o de meio a meio! exclamou erguendo-se e recaindo pesadamente na cadeira.
 
&mdash; Escute, homem, disse Natário.
 
&mdash; Qual escute! O que é, é que o racho!
 
Mas se ele não sabia quem era o liberal!
 
&mdash; Qual liberal! Quem eu racho é o
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doutor Godinho. O doutor Godinho é que é o dono do jornal. O doutor Godinho é que eu racho!
 
A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso grandes palmadas à coxa.
 
Lembraram-lhe o dever cristão de perdoar as injúrias! A S. Joaneira com unção citou a bofetada que Jesus Cristo suportou. Devia imitar Cristo.
 
&mdash; Qual Cristo, qual cabaça! gritou Brito apoplético.
 
Aquela impiedade criou um terror.
 
&mdash; Credo! Sr, padre Brito, credo! exclamou a irmã do cônego, recuando a cadeira.
 
O Libaninho, com as mãos na cabeça, vergado sob o desastre, murmurava:
 
&mdash; Nossa Senhora das Dores, que até pode cair um raio!
 
E, vendo mesmo Amélia indignada, o padre Amaro disse gravemente:
 
&mdash; Brito, realmente você excedeu-se.
 
&mdash; Pois se estão a puxar por mim!...
 
&mdash; Homem, ninguém puxou por você, disse severamente Amaro. E com um tom pedagogo: - Apenas lhe lembrarei, como devo, que em tais casos, quando se diz a blasfêmia má, o reverendo padre Scomelli recomenda confissão geral e dois dias de recolhimento a pão e água.
 
O padre Brito resmungava.
 
&mdash; Bem, bem, resumiu Natário. O Brito cometeu uma grande falta, mas saberá pedir perdão a Deus, e a misericórdia de Deus é infinita!
 
Houve uma pausa comovida, em que se ouviu a Sra. D. Maria da Assunção murmurar "que ficara sem pinga de sangue": e o cônego, que durante a catástrofe pousara os óculos sobre a
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mesa, retomou-os, e continuou serenamente a leitura:
 
"...Conheceis um outro com cara de furão?..."
 
Olhares de lado fixaram o padre Natário.
 
"...Desconfiai dele: se puder trair-vos, não hesita; se puder prejudicar-vos, folga; as suas intrigas trazem o cabido numa confusão porque é a víbora mais daninha da diocese, mas com tudo isso muito dado à jardinagem, porque cultiva com cuidado duas rosas do seu canteiro."
 
&mdash; Homem, essa! exclamou Amaro.
 
&mdash; É para que você veja, disse Natário erguendo-se lívido. Que lhe parece? Você sabe que eu, quando falo das minhas sobrinhas, costumo dizer as duas rosas do meu canteiro. É um gracejo. Pois, senhores, até vem com isto! - E com um sorriso macilento, de fel: - Mas amanhã hei-de saber quem é! Olaré! Eu hei-de saber quem é!
 
&mdash; Deite ao desprezo, Sr. padre Natário, deite ao desprezo, disse a S. Joaneira pacificadora.
 
&mdash; Obrigado, minha senhora, acudiu Natário curvando-se com uma ironia rancorosa, obrigado! Cá recebi!
 
Mas a voz imperturbável do cônego retomara a leitura. Agora era o retrato dele, traçado com ódio:
 
"...Cônego bojudo e glutão, antigo caceteiro do Sr. D. Miguel, que foi expulso da freguesia de Ourém, outrora mestre de Moral num seminário e hoje mestre de imoralidade em Leiria..."
 
&mdash; Isso é infame! exclamou Amaro exaltado.
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O cônego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:
 
&mdash; Você pensa que me dá isto cuidado? disse ele. Boa! Tenho que comer e que beber, graças a Deus! Deixar rosnar quem rosna!
 
&mdash; Não, mano, interrompeu a irmã, mas a gente sempre tem o seu bocadinho de brio!
 
&mdash; ora, mana! replicou o cônego Dias com um azedume de raiva concentrada. Ora, mana! ninguém lhe pede a sua opinião!
 
&mdash; Nem preciso que ma peçam, gritou ela empertigando-se. Sei-a dar muito bem quando quero e como quero. Se não tem vergonha, tenho-a eu!
 
&mdash; Então! então! disseram em roda, acalmando-a.
 
&mdash; Menos língua, mana, menos língua! disse o cônego fechando os seus óculos. Olhe, não lhe caiam os dentes postiços!
 
&mdash; Seu malcriado!
 
Ia falar, mas sufocou-se; e começou subitamente a soltar ais.
 
Recearam logo que lhe desse o flato; a S. Joaneira e a D. Joaquina Gansoso levaram-na para o quarto, embaixo, amparando-a, com palavras brandas:
 
&mdash; Estás doida! Por quem és, filha! Olha que escândalo! Nossa Senhora te valha!
 
Amélia mandava buscar água de flor de laranja.
 
&mdash; Deixe-a lá, rosnou o cônego, deixe-a lá! Aquilo passa-lhe. São calores!
 
Amélia deu um olhar triste ao padre Amaro, e desceu ao quarto com a Sra. D. Maria da Assunção e a Gansoso surda, que iam também "sossegar
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a D. Josefa, coitadita!" Os padres agora estavam sós e o cônego voltando-se para Amaro: - Ouça você, que é a sua vez - disse retomando o jornal.
 
&mdash; E verá que dose! disse Natário.
 
O cônego escarrou, aproximou mais o candeeiro, e declamou:
 
"... Mas o perigo são certos padres novos e ajanotados, párocos por influências de condes da capital, vivendo na intimidade das famílias de bem onde há donzelas inexperientes, e aproveitando-se da influência do seu sagrado ministério para lançar na alma da inocente a semente de chamas criminosas!"
 
&mdash; Pouca vergonha! murmurou Amaro lívido.
 
"... Dize, sacerdote de Cristo, onde queres arrastar a impoluta virgem? Queres arrastá-la aos lodaçais do vício? Que vens fazer aqui ao seio desta respeitável família? Por que rondas em volta da tua presa, como o milhafre em torno da inocente pomba? Para trás, sacrílego! Murmuras-lhe sedutoras frases, para a desviares do caminho da honra; condenas á desgraça e á viuvez algum honrado moço que lhe queira oferecer a sua mão trabalhadora; e vais-lhe preparando um horroroso futuro de lágrimas. E tudo para quê? Para saciares os torpes impulsos da tua criminosa lascívia..."
 
&mdash; Que infame! rosnou com os dentes cerrados o padre Amaro.
 
"...Mas acautela-te, presbítero perverso!" E a voz do cônego tinha tons cavos ao soltar aquelas apóstrofes. "Já o arcanjo levanta a espada da justiça. E sobre ti, e teus cúmplices, já a opinião
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da ilustrada Leiria fita seu olho imparcial. E nós cá estamos, nós, filhos do trabalho, para vos marcar na fronte o estigma da infâmia. Tremei, sectários do Syllabus! cuidado, sotainas negras!"
 
&mdash; De escacha! fez o cônego suado, dobrando a Voz do Distrito.
 
O padre Amaro tinha os olhos enevoados de duas lágrimas de raiva: passou devagar o lenço pela testa, soprou, disse com os beiços a tremer:
 
&mdash; Eu, colegas, nem sei o que hei-de dizer! Pelo Deus que me ouve, isto é a calúnia das calúnias.
 
&mdash; Uma calúnia infame... rosnaram.
 
&mdash; E a mim, o que me parece, continuou Amaro, é que nos dirijamos à autoridade!
 
&mdash; É o que eu tinha dito, acudiu Natário, é necessário falar ao secretário-geral...
 
&mdash; Um cacete é que é! rugiu o padre Brito. Autoridade! O que é, é rachá-lo! Eu bebia-lhe o sangue!...
 
O cônego, que meditava coçando o queixo, disse então:
 
&mdash; E você, Natário, é que deve ir ao secretário-geral. Você tem língua, tem lógica...
 
&mdash; Se os colegas decidem, disse Natário curvando-se, vou. E hei-de- lhas cantar, à autoridade!
 
Amaro ficara junto da mesa com a cabeça entre as mãos, aniquilado. E o Libaninho murmurava:
 
&mdash; Ai, filhos, eu não é nada comigo, mas só de ouvir todo esse aranzel, até se me estão a vergar as pernas. Ai, filhos, um desgosto assim...
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Mas sentiram a voz da Sra. Joaquina Gansoso subindo a escada; e o cônego imediatamente com uma voz prudente:
 
&mdash; Colegas, o melhor, diante das senhoras, é não se falar mais nisto. Bem basta o que basta.
 
Daí a momentos, apenas Amélia entrou, Amaro ergueu-se, declarou que estava com uma forte dor de cabeça, e despediu-se das senhoras.
 
&mdash; E sem tomar chá? acudiu a S. Joaneira.
 
&mdash; Sim, minha senhora, disse ele embrulhando-se no seu capote, não me estou a sentir bem. Boas noites... E você, Natário, apareça amanhã pela Sé à uma hora.
 
Apertou a mão de Amélia, que se lhe abandonou entre os dedos passiva e mole, - e saiu com os ombros vergados.
 
A S. Joaneira notou, desconsolada:
 
&mdash; O senhor pároco ia muito pálido...
 
O cônego levantou-se, e com um tom impaciente e quezilado:
 
&mdash; Se ia pálido, amanhã estará corado. E agora quero dizer uma coisa. Esse aranzel do jornal é a calúnia das calúnias! Eu não sei quem o escreveu, nem para que o escreveu. Mas são tolices e são infâmias. É pateta e maroto, quem quer que seja. O que devemos fazer já o sabemos, e como já se tagarelou bastante sobre o caso, a senhora mande vir o chá. E o que lá vai, lá vai, não se fala mais na questão.
 
As faces em roda continuavam contristadas. - E então o cônego acrescentou:
 
&mdash; Ah! e quero dizer outra coisa: como não morreu ninguém, não há necessidade de estar aqui com cara de pêsames. E tu, pequena, senta- te ao instrumento e repenica-me essa Chiquita!
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O secretário-geral, o Sr. Gouveia Ledesma, antigo jornalista, e, em anos mais expansivos, autor do livro sentimental Devaneios de um Sonhador, estava então dirigindo o distrito na ausência do governador civil.
 
Era um moço bacharel que passava por ter talento. Representara de galã no teatro acadêmico, em Coimbra, com muito aplauso; e tomara a esse tempo o hábito de passear à tarde na Sofia, com o ar fatal com que no palco arrepelava os cabelos, ou levava, nos transes de amor, o lenço aos olhos. Depois em Lisboa arruinara um pequeno patrimônio com o amor de Lolas e de Carmens, ceias no Mata, muita caça no Xafredo e perniciosas convivências literárias: aos trinta anos estava pobre, saturado de mercúrio e autor de vinte folhetins românticos na Civilização: mas tornara- se tão popular, que era conhecido nos lupanares e nos cafés por um cognome carinhoso - era o Bibi. Julgando então que conhecia a fundo a existência, deixou crescer as suíças, começou a citar Bastiat, frequentou as câmaras e entrou na carreira administrativa; chamava agora à república que tanto exaltara em Coimbra uma absurda quimera; e Bibi era um pilar das instituições.
 
Detestava Leiria, onde passava por espirituoso; e dizia às senhoras, nas soirées do deputado Novais - "que estava cansado da vida". Rosnava- se que a esposa do bom Novais andava doida por ele: e em verdade Bibi escrevera a um amigo da capital: - "enquanto a conquistas, pouco por ora; tenho apenas no papo a Novaisitos".
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Levantava-se tarde; e nessa manhã, de robe-de-chambre à mesa do almoço, partia os seus ovos quentes, lendo com saudade no jornal a narração apaixonada duma pateada em S. Carlos, quando o criado, - um galego que trouxera de Lisboa - veio dizer que "estava ali um cura".
 
&mdash; Um cura? Que entre para aqui! - E murmurou para sua satisfação pessoal: - o Estado não deve fazer esperar a Igreja.
 
Ergueu-se, e estendeu as duas mãos ao padre Natário que entrava, muito composto, na sua longa batina de lustrina.
 
&mdash; Uma cadeira, Trindade! Toma uma chávena de chá, senhor cura? Soberba manhã, hem? Estava justamente pensando em si, - isto é, estava pensando no clero em geral... Acabava de ler as peregrinações que se estão fazendo a Nossa Senhora de Lourdes... Grande exemplo! Milhares de pessoas da melhor roda... É realmente consolador ver renascer a fé... Ainda ontem eu disse em casa do Novais: "No fim de tudo a fé é a mola real da sociedade". Tome uma chávena de chá... Ah! é um grande bálsamo!...
 
&mdash; Não, obrigado, almocei já.
 
&mdash; Mas não! Quando digo um grande bálsamo refiro-me à fé, não ao chá! Ah! ah! É boa, não?
 
E prolongou a sua risadinha com complacência. Queria agradar a Natário, pelo princípio que repetia muito, com um sorriso astuto - "que quem está metido na política deve ter por si a padraria".
 
&mdash; E depois, acrescentou, como eu dizia ontem em casa do Novais, que vantagem para as localidades! Lourdes, por exemplo, era uma
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aldeola; pois com a afluência dos devotos está uma cidade... Grandes hotéis, bulevares, belas lojas... É por assim dizer o desenvolvimento econômico, correndo parelhas com o renascimento religioso.
 
E deu com satisfação um puxãozinho grave ao colarinho.
 
&mdash; Pois eu vinha aqui falar a V. Ex.a a respeito dum comunicado na Voz do Distrito.
 
&mdash; Ah! interrompeu o secretário-geral, perfeitamente, li! Uma famosa verrina... Mas literariamente, como estilo e como imagens, que miséria!
 
&mdash; E que tenciona V. Ex.a fazer, senhor secretário-geral?
 
O Sr. Gouveia Ledesma apoiou-se nas costas da cadeira, perguntou pasmado:
 
&mdash; Eu?
 
Natário disse, destilando as palavras:
 
&mdash; A autoridade tem o dever de proteger a religião do Estado, e implicitamente os seus sacerdotes... Que tenha V. Ex.a em vista, eu não venho aqui em nome do clero...
 
E acrescentou com a mão sobre o peito:
 
&mdash; Sou apenas um pobre padre sem influência... Venho, como particular, perguntar ao senhor secretário-geral se se pode permitir que caracteres respeitáveis da Igreja diocesana sejam assim difamados...
 
&mdash; É certamente lamentável que um jornal...
 
Natário interrompeu, empertigando o busto com indignação:
 
&mdash; Jornal que já devia estar suspenso, senhor secretário-geral!
 
&mdash; Suspenso! Por quem é, senhor cura! Mas
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V. St decerto não quer que eu volte ao tempo dos corredores-mores! - Suspender o jornal! Mas a liberdade de imprensa é um princípio sagrado! Nem as leis de imprensa o permitem... Mesmo querelar pelo ministério público porque um periódico diz duas ou três pilhérias sobre o cabido, impossível! Tínhamos de querelar toda a imprensa de Portugal, com exceção da Nação e do Bem Público! Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta anos de progresso, a própria idéia governamental? Mas nós não somos os Cabrais, meu caro senhor! Nós queremos luz, muitíssima luz! Justamente o que nós queremos é luz!
 
Natário tossiu devagarinho, disse:
 
&mdash; Perfeitamente. Mas então quando pelas eleições, a autoridade nos vier pedir o nosso auxilio, nós vendo que não encontramos nela proteção, diremos simplesmente: "Non possumus!"
 
&mdash; E pensa o senhor cura, que por amor de alguns votos que dão os senhores abades, nós vamos trair a civilização?
 
E o antigo Bibi, tomando uma grande atitude, soltou esta frase:
 
&mdash; Somos filhos da liberdade, não renegaremos nossa mãe!
 
&mdash; Mas o doutor Godinho, que é a alma do jornal, é oposição, observou então Natário; proteger-lhe o jornal é implicitamente proteger-lhe as manobras...
 
O secretário-geral teve um sorriso:
 
&mdash; Meu caro senhor cura, V. St não está no segredo da política. Entre o doutor Godinho e o governo civil não há inimizade, há apenas um arrufo... O doutor Godinho é uma inteligência... Vai reconhecendo que o grupo da Maia não produz
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nada... O doutor Godinho aprecia a política do governo, e o governo aprecia o doutor Godinho.
 
E, rebuçando-se todo num mistério de Estado, acrescentou:
 
&mdash; Coisas de alta política, meu caro senhor.
 
Natário ergueu-se:
 
&mdash; De modo que...
 
&mdash; Impossibilis est, disse o secretário. De resto acredite, senhor cura, que, como particular, revolto-me contra o Comunicado; mas como autoridade devo respeitar a expressão do pensamento... Mas creia, e pode dizê-lo a todo o clero diocesano, a Igreja católica não tem um filho mais fervente que eu, Gouveia Ledesma... Quero porém uma religião liberal, de harmonia com o progresso, com a ciência... Foram sempre as minhas idéias; preguei-as bem alto, na imprensa, na universidade e no grêmio... Assim, por exemplo, não acho que haja poesia maior que a poesia do cristianismo! E admiro Pio IX, uma grande figura! Somente lamento que ele não arvore a bandeira da civilização! - E o antigo Bibi, contente da sua frase, repetia-a: - Sim, lamento que ele não arvore a bandeira da civilização... O Syllabus é impossível neste século de eletricidade, senhor cura! E a verdade é que nós não podemos querelar dum jornal, porque ele diz duas ou três pilhérias sobre o sacerdócio, nem nos convém, por altas razões de política, escandalizar o doutor Godinho. Aqui tem o meu pensamento.
 
&mdash; Senhor secretário-geral, disse Natário curvando-se.
 
&mdash; Um criado de V. S.a. Sinto que não tome uma chávena de chá. E como vai o nosso chantre?
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&mdash; S. Ex. a nestes últimos dias, segundo creio, tem tornado a sofrer de tonturas.
 
&mdash; Sinto. Uma negligência também! Grande latinista... Tenha cuidado com o degrau!...
 
Natário correu à Sé, com um passo nervoso, resmungando alto de cólera. Amaro passeava devagar no terraço, com as mãos atrás das costas: tinha as olheiras batidas e a face envelhecida.
 
&mdash; Então? disse ele, indo rapidamente ao encontro de Natário.
 
&mdash; Nada!
 
Amaro mordeu o beiço: e enquanto Natário lhe contava, excitado, a conversação com o secretário-geral, "e como argumentara com ele, e como o homem tagarelara, tagarelara", - a face do pároco cobria-se duma sombra desconsolada, e ia arrancando raivosamente, com a ponta do guarda-sol, a erva que crescia nas fendas do terraço.
 
&mdash; Um patarata! resumiu o padre Natário com um grande gesto. Pela autoridade não se faz nada. É escusado... Mas a questão agora é entre mim e o liberal, padre Amaro! Eu hei-de saber quem é, padre Amaro! E quem o esmaga sou eu, padre Amaro, sou eu!...
 
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No entanto, João Eduardo desde o domingo triunfava; o artigo fizera escândalo: tinham-se vendido oitenta números avulsos do jornal, e o Agostinho afirmara-lhe que na botica da Praça a opinião era "que o liberal conhecia a padraria a fundo e tinha cabeça" ! _
 
&mdash; És um gênio, rapaz, disse o Agostinho. É trazer-me outro, é trazer-me outro!
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João Eduardo gozava prodigiosamente "daquele falatório que ia pela cidade".
 
Relia então o artigo com uma deleitação paternal; se não receasse escandalizar a S. Joaneira, desejaria ir pelas lojas dizer bem alto: fui eu, eu é que o escrevi! - e já ruminava outro, mais terrível, que se deveria intitular: O diabo feito eremita, ou O sacerdócio de Leiria perante o século XIX!
 
O doutor Godinho encontrara-o na Praça, e parara com condescendência, para lhe dizer:
 
&mdash; A coisa tem feito barulho. Você é o diabo! E a piada ao Brito é bem jogada. Que eu não sabia... E diz que é bonita, a mulher do regedor...
 
&mdash; V. Ex.a não sabia?
 
&mdash; Não sabia, e saboreei. Você é o diabo! Eu fui que disse ao Agostinho que publicasse a coisa como um comunicado. Você compreende... Eu não me convém ter turras de mais com o clero... E depois lá minha esposa tem seus escrúpulos... Enfim, é melhor e é conveniente que as mulheres tenham religião... Mas no meu foro interior saboreei... Sobretudo a piada ao Brito. O patife fez-me uma guerra dos diabos na eleição passada... Ah! e outra coisa, o seu negócio arranja-se. Lá para o mês que vem tem o seu emprego no governo civil.
 
&mdash; Oh, senhor doutor, V. Ex.a....
 
&mdash; Qual história, você é um benemérito!
 
João Eduardo foi para o cartório, trêmulo de alegria. O Sr. Nunes Ferral saíra: o escrevente aparou devagar uma pena, começou a cópia duma procuração, - e de repente, agarrando o chapéu, correu à Rua da Misericórdia.
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A S. Joaneira costurava só á janela: Amélia fora ao Morenal: e João Eduardo, logo da porta:
 
&mdash; Sabe, D. Augusta? Estive agora com o doutor Godinho. Diz que lá para o mês que vem tenho o meu emprego...
 
A S. Joaneira tirou a luneta, deixou cair as mãos no regaço:
 
&mdash; Que me diz?...
 
&mdash; É verdade, é verdade...
 
E o escrevente esfregava as palmas, com risinhos nervosos de júbilo.
 
&mdash; Que pechincha! exclamou. De modo que agora, se a Ameliazinha estiver de acordo...
 
&mdash; Ai! João Eduardo! fez a S. Joaneira com um grande suspiro, que me tira um peso do coração... Que tenho estado... Olhe, nem tenho dormido!...
 
João Eduardo pressentiu que ela ia falar do Comunicado. Foi pôr o chapéu numa cadeira ao canto; e voltando à janela, com as mãos nos bolsos:
 
&mdash; Então por quê, por quê?
 
&mdash; Aquela pouca-vergonha no Distrito! Que diz você? Aquela calúnia! Ai! tenho-me feito velha!
 
João Eduardo escrevera o artigo sob as solicitações do ciúme, só para "enterrar" o padre Amaro; não previra o desgosto das duas senhoras; e vendo agora a S. Joaneira com duas lágrimas no branco dos olhos, sentia-se quase arrependido. Disse ambiguamente:
 
&mdash; Eu li, é o diabo...
 
Mas aproveitando o sentimento da S. Joaneira
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para servir a sua paixão, acrescentou sentando-se, chegando a cadeira para ao pé dela:
 
&mdash; Eu nunca lhe quis falar disso, D. Augusta, mas... olhe que a Ameliazinha tratava o pároco com muita familiaridade... E pelas Gansosos, pelo Libaninho, mesmo sem quererem, a coisa ia-se sabendo, ia-se rosnando... Eu bem sei que ela, coitada, não via o mal, mas... a D. Augusta sabe o que é Leiria. Que línguas, hem!
 
A S. Joaneira então declarou que lhe ia falar como a um filho: o artigo afligira-a, sobretudo por causa dele, João Eduardo. Porque enfim ele podia acreditar também, desfazer o casamento, e que desgosto! E ela podia dizer-lhe como mulher de bem, como mãe, que não havia entre a pequena e o senhor pároco, nada, nada, nada! Era a rapariga que tinha aquele gênio comunicativo! E o pároco tinha boas palavras, sempre muito delicado... Que ela sempre o dissera, o Sr. padre Amaro tinha maneiras que tocavam o coração...
 
&mdash; Decerto, disse João Eduardo mordendo o bigode, com a cabeça baixa.
 
A S. Joaneira então pôs a mão de leve sobre o joelho do escrevente, e fitando-o:
 
&mdash; E olhe, não sei se me fica mal dizer-lho, mas a rapariga quer-lhe deveras, João Eduardo.
 
O coração do escrevente teve uma palpitação comovida.
 
&mdash; E eu! disse. A D. Augusta sabe a paixão que eu tenho por ela... E lá do artigo que me importa a mim?
 
Então a S. Joaneira limpou os olhos ao avental branco. Ai! era uma alegria para ela! Ela sempre o
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dissera, como rapaz de bem, não havia outro na cidade de Leiria! .
 
&mdash; Você sabe, quero-lhe como filho!
 
O escrevente enterneceu-se:
 
&mdash; Pois vamos a isso, e tapam-se as bocas do mundo... E erguendo- se, com uma solenidade engraçada:
 
&mdash; Sra. D. Augusta! Tenho a honra de lhe pedir a mão...
 
Ela riu-se, - e na sua alegria João Eduardo beijou-a na testa, filialmente.
 
&mdash; E fale à noite à Ameliazinha, disse ao sair. Eu venho amanhã, e felicidade não há-de faltar...
 
&mdash; Louvado seja Nosso Senhor, acrescentou a S. Joaneira retomando a sua costura, com um suspiro de muito alivio.
 
Apenas, nessa tarde, Amélia voltou do Morenal, a S. Joaneira, que estava pondo a mesa, disse-lhe:
 
&mdash; Esteve ai o João Eduardo...
 
&mdash; Ah!...
 
&mdash; Ai esteve a falar, coitado...
 
Amélia, calada, dobrava a sua manta de lã.
 
&mdash; Aí esteve a queixar-se, continuou a mãe.
 
&mdash; Mas de quê? perguntou ela muito vermelha.
 
&mdash; Ora de quê! Que se falava muito na cidade do artigo do Distrito; que se perguntava a quem aludia o periódico com as donzelas inexperientes, e que a resposta era: "Quem há-de ser? a Amélia da S. Joaneira, da Rua da Misericórdia!" O pobre João diz que tem andado tão desgostoso!... Não se atrevia, por delicadeza, a falar-te... Enfim...
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&mdash; Mas que hei-de eu fazer, minha mãe? exclamou Amélia com os olhos subitamente cheios de lágrimas, àquelas palavras que caíam sobre os seus tormentos como gotas de vinagre sobre feridas.
 
&mdash; Eu digo-te isto para seu governo. Faz o que quiseres, filha. Eu bem sei que são calúnias! Mas tu sabes o que são línguas do mundo... O que te posso dizer é que o rapaz não acreditou no periódico. Que era isso que me dava cuidado!... Credo! tirou-me o sono... Mas não, diz que não lhe importa o artigo, que te quer da mesma maneira, e está a arder por que se faça o casamento... E eu por mim o que fazia, para calar toda essa gente, era casar-me já. Eu bem sei que tu não morres por ele, bem sei. Deixa lá! Isso vem depois. O João é bom rapaz, vai ter o emprego...
 
&mdash; Vai ter o emprego!?
 
&mdash; Pois foi o que ele me veio dizer também... Esteve com o doutor Godinho, diz que lá para o fim do mês está empregado... Enfim tu fazes o que entenderes... Que olha que eu estou velha, filha, posso faltar-te dum momento para o outro!...
 
Amélia não respondeu, olhando de frente no telhado voarem os pardais - menos desassossegados, naquele instante, que os seus pensamentos.
 
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Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a donzela inexperiente a que aludia o Comunicado era ela, Amélia, e torturava-a o vexame de ver assim o seu amor publicado no jornal. Depois (como ela pensava, mordendo o beiço numa raiva
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muda, com os olhos afogados de lágrimas), aquilo vinha estragar tudo! Na Praça, na Arcada já se diria com risinhos perversos: - "Então a Ameliazita da S. Joaneira metida com o pároco, hem?" Decerto o senhor chantre, tão severo em "coisas de mulheres", repreenderia o padre Amaro... E por alguns olhares, alguns apertos de mão, aí estava a sua reputação estragada, estragado o seu amor!
 
Na segunda-feira, ao ir ao Morenal, parecera-lhe sentir pelas costas risinhos a escarnecê-la; no aceno que lhe fez da porta da botica o respeitável Carlos julgou ver uma secura repreensível; à volta encontrara o Marques da loja de ferragens, que não lhe tirou o chapéu, e ao entrar em casa julgava-se desacreditada - esquecendo que o bom Marques era tão curto de vista que usava na loja duas lunetas sobrepostas.
 
&mdash; Que hei-de eu fazer? que hei-de eu fazer? murmurava, às vezes, com as mãos apertadas na cabeça. O seu cérebro de devota apenas lhe fornecia soluções devotas - entrar num recolhimento, fazer uma promessa a Nossa Senhora das Dores "para que a livrasse daquele apuro", ir confessar-se ao padre Silvério... E terminava por se vir sentar resignadamente ao pé da mãe com a sua costura, considerando, muito enternecida, que desde pequena fora sempre bem infeliz!
 
A mãe não lhe falara claramente sobre o Comunicado: tivera apenas palavras ambíguas:
 
&mdash; É uma pouca-vergonha... É deitar ao desprezo... Quando a gente tem a sua consciência sossegada, o mais histórias...
 
Mas Amélia via-lhe bem o desgosto - na face envelhecida,
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nos tristes silêncios, nos suspiros repentinos quando fazia meia à janela com a luneta na ponta do nariz: e então mais se convencia que havia "grande falatório na cidade", de que a mãe, coitada, estava informada pelas Gansosos e pela D. Josefa Dias - cuja boca produzia o mexerico mais naturalmente que a saliva. Que vergonha, Jesus!
 
E então o seu amor pelo pároco, que até ai, naquela reunião de saias e batinas da Rua da Misericórdia se lhe afigurara natural, agora, julgando-o reprovado pelas pessoas que desde pequena fora acostumada a respeitar - os Guedes, os Marques, os Vaz, - aparecia-lhe já monstruoso: assim as cores dum retrato pintado à luz de azeite, e que à luz de azeite parecem justas, tomam tons falsos e disformes quando lhes cai em cima a luz do sol. E quase estimava que o padre Amaro não tivesse voltado à Rua da Misericórdia.
 
No entanto, com que ansiedade esperava todas as noites o seu toque de campainha! Mas ele não vinha; e aquela ausência, que a sua razão julgava prudente, dava ao seu coração o desespero de uma traição. Na quarta- feira á noite não se conteve, disse, corando sobre a sua costura: - Que será feito do senhor pároco?
 
O cônego, que na sua poltrona parecia dormitar, tossiu grosso, mexeu-se, rosnou:
 
&mdash; Mas que fazer... E escusam de esperar por ele tão cedo!...
 
E Amélia, que ficara branca como a cal, teve imediatamente a certeza que o pároco, aterrado com o escândalo do jornal, aconselhado pelos padres timoratos, zelosos "do bom nome do clero" -
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tratava de se descartar dela! Mas, cautelosa, diante das amigas da mãe, escondeu o seu desespero: foi mesmo sentar-se ao piano, e tocou mazurcas tão estrondosas - que o cônego, tomando a mexer-se na poltrona, grunhiu:
 
&mdash; Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga!
 
Passou uma noite agoniada, e sem chorar. A sua paixão pelo pároco flamejava mais irritada; e todavia detestava-o pela sua cobardia. Mal uma alusão num jornal o picara, ficara a tremer na sua batina, apavorado, não se atrevendo sequer a visitá-la - sem se lembrar que também ela se via diminuída na sua reputação, sem ser satisfeita no seu amor! E fora ele que a tentara com as suas palavrinhas doces, as suas denguices! Infame!... Desejava violentamente apertá-lo ao coração - e esbofeteá-lo. Teve a idéia insensata de ir ao outro dia à Rua das Sousas atirar-se-lhe aos braços, instalar-se-lhe no quarto, fazer um escândalo que o obrigasse a fugir da diocese... Por que não? Eram novos, eram robustos, poderiam viver longe, noutra cidade, - e a sua imaginação começou a repastar-se logo histericamente nas perspectivas deliciosas dessa existência, em que se figurava constantemente a dar-lhe beijos! Através da sua intensa excitação, aquele plano parecia-lhe muito prático, muito fácil: fugiriam para o Algarve; lá, ele deixaria crescer o cabelo (que mais bonito seria então!) e ninguém saberia que era um padre; poderia ensinar latim, ela coseria para fora; e viveriam numa casinha - onde o que mais a atraia era o leito com as duas travesseirinhas chegadas... E a única dificuldade que via em todo este plano
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radiante, era fazer sair de casa, ás escondidas da mãe, o baú com a sua roupa! - Mas quando acordou, essas resoluções mórbidas, à luz clara do dia, desfizeram-se como sombras: tudo aquilo que parecia agora tão impraticável, e ele tão separado dela, como se entre a Rua da Misericórdia e a Rua das Sousas se erguessem inacessivelmente todas as montanhas da Terra. Ai, o senhor pároco abandonara-a, era certo! Não queria perder os lucros da sua paróquia nem a estima dos seus superiores!... Pobre dela! Considerou-se então para sempre infeliz e desinteressada da vida. Guardou, todavia, muito intenso, o desejo de se vingar do padre Amaro.
 
Foi então que refletiu, pela primeira vez, que João Eduardo desde a publicação do Comunicado não aparecera na Rua da Misericórdia. Também me volta as costas - pensou com amargura. Mas que lhe importava? No meio da aflição que lhe dava o abandono do padre Amaro, a perda do amor do escrevente, piegas e pesado, que lhe não trazia utilidade nem prazer, era uma contrariedade imperceptível: uma infelicidade viera que lhe arrebatava bruscamente todas as afeições - a que lhe enchia a alma, e a que apenas lhe acariciava a vaidadezinha; e irritava-a, sim, não sentir já o amor do escrevente colado a suas saias, com a docilidade dum cão - mas todas as suas lágrimas eram para o senhor pároco "que já não queria saber dela"! Só lamentava a deserção de João Eduardo, porque perdia assim um meio sempre pronto de fazer enraivecer o padre Amaro...
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Por isso nessa tarde à janela, calada, olhando no telhado defronte voarem os pardais - depois de saber que João Eduardo certo do emprego, viera falar enfim a mãe - pensava com satisfação no desespero do pároco ao ver publicados na Sé os banhos do seu casamento. Depois as palavras muito práticas da S. Joaneira trabalhavam-lhe silenciosamente na alma: o emprego do governo civil rendia 25$000 réis mensais; casando, reentrava logo na sua respeitabilidade de senhora; e se a mãe morresse, com o ordenado do homem e com o rendimento do Morenal, podia viver com decência, ir mesmo no Verão aos banhos... E via-se já na Vieira, muito cumprimentada pelos cavalheiros, conhecendo talvez a do governador civil.
 
&mdash; Que lhe parece, minha mãe? - perguntou bruscamente. Estava decidida pelas vantagens que entrevia; mas, com a sua natureza lassa, desejava ser persuadida e forçada.
 
&mdash; Eu ia pelo seguro, filha - foi a resposta da S. Joaneira.
 
&mdash; É sempre o melhor - murmurou Amélia entrando no quarto. E sentou-se muito triste aos pés da cama porque a melancolia que lhe dava o crepúsculo tornava-lhe agora mais pungente a saudade "dos seus bons tempos com o senhor pároco".
 
Nessa noite choveu muito, as duas senhoras passaram sós. A S. Joaneira, repousada agora das suas inquietações, estava muito sonolenta, a cada momento cabeceava com a meia caída no regaço. Amélia então pousava a costura, e com o cotovelo sobre a mesa, fazendo girar o abajur verde
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do candeeiro, pensava no seu casamento: o João Eduardo era bom rapaz, coitado; realizava o tipo de marido tão estimado na pequena burguesia - não era feio e tinha um emprego; decerto o oferecimento da sua mão, apesar das infâmias do jornal, não lhe parecia, como a mãe dissera, "um rasgo de mão-cheia"; mas a sua dedicação lisonjeava-a, depois do abandono tão cobarde de Amaro: e havia dois anos que o pobre João gostava dela... Começou então laboriosamente a lembrar tudo o que nele lhe agradava - o seu ar sério, os seus dentes muito brancos, a sua roupa asseada.
 
Fora ventava forte, e a chuva, fustigando friamente as vidraças, dava-lhe apetites de confortos, um bom lume, o marido ao lado, o pequerrucho a dormir no berço - porque seria um rapaz, chamar-se-ia Carlos e teria os olhos negros do padre Amaro. O padre Amaro... Depois de casada, decerto, tornaria a encontrar o Sr. padre Amaro... E então uma idéia atravessou todo o seu ser, fê-la erguer bruscamente, ir por instinto procurar a escuridão da janela para ocultar a vermelhidão do rosto. Oh! isso não, isso não! Era horrível!... Mas a idéia implacavelmente apoderara-se dela como um braço muito forte que a sufocava e lhe dava uma agonia deliciosa. E então o antigo amor, que o despeito e a necessidade tinham recalcado no fundo da sua alma, rompeu, inundou-a: murmurou repetidamente, com paixão, torcendo as mãos, o nome de Amaro: desejou avidamente os seus beijos - oh! adorava-o! E tudo tinha acabado, tudo tinha acabado! E devia casar, pobre dela!... Então à janela, com a
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face contra a escuridão da noite, choramingou baixinho.
 
Ao chá a S. Joaneira disse-lhe, de repente:
 
&mdash; Pois a coisa, a fazer-se, filha, deve ser já... Era começar o enxoval, e se fosse possível casar-te para o fim do mês.
 
Ela não respondeu - mas a sua imaginação alvoroçou-se àquelas palavras. Casada daí a um mês, ela! Apesar de João Eduardo lhe ser indiferente, a idéia daquele rapaz, novo e apaixonado, que ia viver com ela, dormir com ela, deu uma perturbação a todo o seu ser.
 
E quando a mãe ia descer ao quarto, disse-lhe:
 
&mdash; Que lhe parece, minha mãe? Eu está-me a custar entrar em explicações com o João Eduardo, dizer-lhe que sim. O melhor era escrever-lhe...
 
&mdash; Também acho, filha, escreve-lhe... A Ruça leva a carta pela manhã... Uma carta bonita, e que agrade ao rapaz.
 
Amélia ficou na sala de jantar até tarde fazendo o rascunho da carta. Dizia:
 
"SR. JOÃO EDUARDO.
 
A mamã cá me pôs ao fato da conversação que teve consigo. E se a sua afeição é verdadeira, como creio e me tem dado muitas provas, eu estou pelo que se decidiu com muito boa vontade, pois conhece os meus sentimentos. E a respeito de enxoval e papéis, amanhã se falará, pois que o esperamos para o chá. A mamã está muito contente e eu
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desejo que tudo seja para nossa felicidade, como espero há-de ser, com a ajuda de Deus. A mamã recomenda-se e eu sou
 
a que muito lhe quer,
 
Amélia Caminha".
 
Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante dela deram-lhe o desejo de escrever ao padre Amaro. Mas o quê? Confessar-lhe o seu amor, com a mesma pena, molhada na mesma tinta, com que aceitava por marido o outro?... Acusá-lo da sua cobardia, mostrar o seu desgosto - era humilhar-se! E apesar de não ter motivo para lhe escrever, a sua mão ia traçando com gozo as primeiras palavras: "Meu adorado Amaro..." Deteve-se, considerando que não tinha por quem mandar a carta. Ai! tinham de separar-se assim, em silêncio, para sempre!... Separarem-se por quê? - pensou. Depois de casada podia bem ver o Sr, padre Amaro. E a mesma idéia voltava, sutilmente, mas numa forma tão honesta agora, que a não repelia: decerto, o Sr. padre Amaro podia ser o seu confessor; era em toda a cristandade a pessoa que melhor guiaria a sua alma, a sua vontade, a sua consciência; haveria então entre eles uma troca deliciosa e constante de confidências, de doces admoestações; todos os sábados iria receber ao confessionário, na luz dos seus olhos e no som das suas palavras, uma provisão de felicidade; e aquilo seria casto, muito picante, e para a glória de Deus.
 
Sentiu-se quase satisfeita com a impressão, que não definia bem, duma existência em que a
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carne estaria legitimamente contente, e a sua alma gozaria os encantos duma devoção amorosa. Tudo vinha a calhar bem, por fim... E daí a pouco dormia serenamente, sonhando que estava na sua casa, com o seu marido, e que jogava a manilha com as velhas amigas, no meio do contentamento de toda a Sé, sentada nos joelhos do senhor pároco.
 
Ao outro dia a Ruça levou a carta a João Eduardo, e toda a manhã as duas senhoras, costurando à janela, falaram do casamento. Amélia não se queria separar da mãe, e, como a casa tinha acomodações, os noivos viveriam no primeiro andar, e a S. Joaneira dormiria no quarto em cima; decerto o senhor cônego ajudaria para o enxoval; podiam ir passar a lua-de-mel para a fazenda da D. Maria. E Amélia àquelas perspectivas felizes fazia-se toda escarlate, sob o olhar da mãe que, de luneta na ponta do nariz, a admirava, babosa.
 
Às Ave-Marias a S. Joaneira fechou-se embaixo no seu quarto a rezar a sua coroa, e deixou Amélia só "para se entender com o rapaz". - Dai a pouco, com efeito, João Eduardo bateu à campainha. Vinha muito nervoso, de luvas pretas, enfrascado em água-de-colônia. Quando chegou à porta da sala de jantar não havia luz, e a bonita forma de Amélia destacava de pé, junto à claridade da vidraça. Ele pôs o xale-manta a um canto como costumava, e vindo para ela que ficara imóvel, disse-lhe, esfregando muito as mãos:
 
&mdash; Lá recebi a cartinha, menina Amélia.
 
&mdash; Eu mandei-a pela Ruça logo pela manhã para o pilhar em casa - disse ela imediatamente com as faces a arder.
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&mdash; Eu ia para o cartório, até já ia na escada... Haviam de ser nove horas...
 
&mdash; Haviam de ser... - disse ela.
 
Calaram-se, muito perturbados. Ele então tomou-lhe delicadamente os pulsos, e baixo:
 
&mdash; Então sempre quer?
 
&mdash; Quero, murmurou Amélia.
 
&mdash; E o mais depressa possível, hem?
 
&mdash; Pois sim...
 
Ele suspirou, muito feliz.
 
&mdash; Havemos de nos dar muito bem, havemos de nos dar muito bem, dizia. E as suas mãos, com pressões temas, iam-se apoderando dos braços dela, dos pulsos aos cotovelos.
 
&mdash; A mamã diz que podemos viver juntos, disse ela, esforçando-se por falar tranquilamente.
 
&mdash; Está claro, e eu vou mandar fazer lençóis, acudiu ele, todo alterado.
 
Atraiu-a então a si, subitamente, beijou-lhe os lábios; ela teve um soluçozinho, abandonou-se-lhe entre os braços, toda fraca, toda lânguida.
 
&mdash; Oh filha! murmurava o escrevente.
 
Mas os sapatos da mãe rangeram na escada, e Amélia foi vivamente para o aparador acender o candeeiro.
 
A S. Joaneira parou à porta; e para dar a sua primeira aprovação maternal, disse, com bonomia:
 
&mdash; Então vocês estão aqui às escuras, filhos?
 
Foi o cônego Dias que participou ao padre Amaro o casamento de Amélia, uma manhã na Sé. Falou no ''a propósito do enlace'', e acrescentou:
 
&mdash; Eu estimo, porque é a contento da rapariga, e é um descanso para a pobre velha...
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&mdash; Está claro, está claro... - murmurou Amaro, que se fizera muito branco.
 
O cônego pigarreou grosso, e ajuntou:
 
&mdash; E você agora apareça por lá, agora está tudo na ordem... A patifaria do jornal isso pertence à história... O que lá vai, lá vai!
 
&mdash; Está claro, está claro... - rosnou Amaro. Traçou bruscamente a capa, saiu da igreja.
 
Ia indignado; e continha-se, para não praguejar alto, pelas ruas. À esquina da viela das Sousas quase esbarrou com Natário, que o agarrou, logo, pela manga, para lhe soprar ao ouvido:
 
&mdash; Ainda não sei nada!
 
&mdash; De quê?
 
&mdash; Do liberal, do Comunicado. Mas trabalho, trabalho!
 
Amaro, que ansiava por desabafar, disse logo:
 
&mdash; Então ouviu a novidade? O casamento de Amélia... Que lhe parece?
 
&mdash; Disse-me o animal do Libaninho. Diz que o rapaz apanhou o emprego... Foi o doutor Godinho... E outro que tal!... Veja você esta corja. O doutor Godinho do jornal às bulhas com o governo civil, e o governo civil a atirar postas aos afilhados do doutor Godinho. Vá lá entendê-los! Isto é um país de biltres!
 
&mdash; Diz que há grande alegrão na casa da S. Joaneira! - disse o pároco, com um azedume negro.
 
&mdash; Que se divirtam! Eu não tenho tempo de lá ir... Eu não tenho tempo para nada!... Eu cá ando no meu fito, saber quem é o liberal e escachá-lo! Não posso ver esta gente que leva a chicotada, coça-se, e curva a orelha. Eu cá não!
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eu guardo-as! - E, com uma contração de rancor, que lhe curvou os dedos em garra, e lhe encolheu o peito magro, disse por entre os dentes cerrados: - Eu, quando odeio, odeio bem!
 
Esteve um momento calado, gozando o sabor do seu fel.
 
&mdash; Você se for à Rua da Misericórdia dê lá os parabéns a essa gente... - E acrescentou com os olhinhos em Amaro: - O palerma do escrevente leva a rapariga mais bonita da cidade! Vai encher o papo!
 
&mdash; Até à vista! exclamou bruscamente Amaro, abalando pela rua furioso.
 
Depois daquele terrível domingo em que aparecera o Comunicado, o padre Amaro, ao principio, muito egoistamente, apenas se preocupara com as consequências - "consequências fatais, Santo Deus!" - que lhe podia trazer o escândalo. Hem! se pela cidade se espalhasse que era ele o padre ajanotado que o liberal apostrofava! Viveu dois dias aterrado, tremendo de ver aparecer o padre Saldanha, com a sua cara ameninada e voz melíflua, a dizer-lhe "que sua excelência o senhor chantre reclamava a sua presença"! Passava já o tempo preparando explicações, respostas hábeis, lisonjas a sua excelência. - Mas quando viu que, apesar da violência do artigo, sua excelência parecia disposto "a fazer a vista grossa", ocupou-se então, mais tranquilo, dos interesses do seu amor tão violentamente perturbados. O medo tornava-o astucioso; e decidiu não voltar algum tempo à Rua da Misericórdia.
 
&mdash; Deixar passar o aguaceiro, pensou.
 
Ao fim de quinze dias, três semanas, quando o artigo estivesse esquecido, apareceria de novo em
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casa da S. Joaneira: deixaria ver bem à rapariga que a adorava sempre, mas evitaria a antiga familiaridade, as conversazinhas baixas, os lugarzinhos chegados ao quino; depois, pela D. Maria da Assunção, pela D. Josefa Dias, obteria que Amélia deixasse o padre Silvèrio e se confessasse a ele: poderiam então entender-se, no segredo do confessionário: combinariam uma conduta discreta, encontros cautelosos aqui e além, cartinhas pela criada: e aquele amor assim conduzido, com prudenciazinha, não teria o perigo de aparecer uma manhã anunciado no periódico! E regozijava-se já da habilidade desta combinação, quando lhe vinha o grande choque - casava-se a rapariga!
 
Depois dos primeiros desesperos, desabafos em patadas no soalho e blasfêmias de que pedia logo perdão a Nosso Senhor Jesus Cristo, quis serenar, estabelecer a razão das coisas. Aonde o levava aquela paixão? Ao escândalo. E assim, casada ela, cada um entrava no seu destino legitimo e sensato - ela na sua família, ele na sua paróquia. Depois, quando se encontrassem, um cumprimento amável; e ele poderia passear a cidade com a sua cabeça bem direita, sem medo dos apartes da Arcada, das insinuações da gazeta, das severidades de sua excelência e das picadinhas da consciência! E a sua vida seria feliz. - Não, por Deus! a sua vida não poderia ser feliz sem ela! Tirado à sua existência aquele interesse das visitas à Rua da Misericórdia, os apertozinhos de mão, a esperança de delicias melhores - que lhe restava a ele? Vegetar, como um dos tortulhos nos cantos úmidos da Sé! E ela, ela que o entontecera
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com os seus olhinhos e as suas maneirinhas, voltava-lhe as costas mal lhe aparecia outro, bom para marido, com 25$000 por mês! Todos aqueles suspiros, aquelas mudanças de cor - chalaça! Mangara com o senhor pároco!
 
O que a odiava! - menos que ao outro porém, o outro que triunfava porque era um homem, tinha a sua liberdade, o seu cabelo todo, o seu bigode, um braço livre para lhe dar na rua! Repastava então a imaginação rancorosamente nas visões de felicidade do escrevente: via-o trazendo-a da igreja triunfantemente; via-o beijando-lhe o pescoço e o peito... E a estas idéias dava patadas furiosas no soalho - que assustavam a Vicência na cozinha
 
Depois procurava sossegar, retomar a direção das suas faculdades, aplicá-las todas a achar uma vingança, uma boa vingança! E voltava então o antigo desespero de não viver no tempo da Inquisição, e com uma denúncia de irreligião ou de feitiçaria, mandá-los ambos para um cárcere. Ah! nesse tempo um padre gozava! Mas agora, com os senhores liberais, tinha de ver aquele miserável escrevente a seis vinténs por dia apoderar-se lhe da rapariga - e ele, sacerdote instruído, que podia ser bispo, que podia ser papa, tinha de vergar os ombros e ruminar solitariamente o seu despeito! Ah! se as maldições de Deus tinham algum valor - malditos fossem eles! Queria vê-los cheios de filhos, sem pão na prateleira, com o último cobertor empenhado, ressequidos de fome, injuriando-se, - e ele a rir-se, ele a regalar-se!...
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Na segunda-feira não se conteve, foi à Rua da Misericórdia. A S. Joaneira estava embaixo na saleta com o cônego Dias. E apenas viu Amaro:
 
&mdash; Oh! senhor pároco, bem aparecido! Estava a falar em V. Sa ! Já estranhava não o vermos, agora que há alegria em casa.
 
&mdash; Já sei, já sei, murmurou Amaro pálido.
 
&mdash; Alguma vez havia de ser, disse o cônego jovialmente. Deus os faça felizes e lhes dê poucos filhos, que a carne está cara.
 
Amaro sorriu - escutando em cima o piano.
 
Era Amélia que tocava como outrora a valsa dos Dois Mundos; e João Eduardo, muito chegado a ela, voltava as folhas da música.
 
&mdash; Quem entrou, Ruça? gritou ela, sentindo os passos da rapariga nas escadas.
 
&mdash; O Sr. padre Amaro.
 
Um fluxo de sangue abrasou-lhe o rosto - e o coração batia-lhe tão forte, que ficou um momento com os dedos imóveis sobre e teclado.
 
&mdash; Não se precisava cá do Sr. padre Amaro, rosnou João Eduardo por entre dentes.
 
Amélia mordeu o beiço. Teve ódio ao escrevente: num instante repugnou-lhe a sua voz, os seus modos, a sua figura de pé junto dela: pensou com deleite, como depois de casada (á que tinha de casar) se confessaria toda ao padre Amaro, e não deixaria de o amar! Não sentia naquele momento escrúpulos; e quase desejava que o escrevente lhe visse no rosto a paixão que a revolvia.
 
&mdash; Credo, criatura! disse-lhe. Chegue-se um pouco mais para lá, que nem me deixa os braços livres para tocar!
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Terminou bruscamente a valsa dos Dois Mundos, começou a cantar o Adeus:
 
Ai! adeus! acabaram-se os dias
 
Que ditoso vivi a teu lado!
 
A sua voz elevava-se, com uma modulação ardente, - dirigindo o canto, através do soalho, ao coração do pároco, embaixo.
 
E o pároco, com a sua bengala entre os joelhos, sentado no canapé, devorava todos os tons da voz dela - enquanto a S. Joaneira tagarelava, contando as peças de algodão que comprara para lençóis, os arranjos que ia fazer no quarto dos noivos, e as vantagens de viverem juntos...
 
&mdash; Uma felicidade por aí além, interrompeu o cônego erguendo-se pesadamente. E vamos lá para cima, que isto de noivos não se querem sós...
 
&mdash; Ah, lá nisso, disse a S. Joaneira rindo, fio-me nele, que é um homem de bem às direitas.
 
Amaro, ao subir a escada, tremia - e, mal entrou na sala, o rosto de Amélia, alumiado pelas luzes do piano, deu-lhe um deslumbramento, como se as vésperas do noivado a tivessem embelezado, e a separação lha tornasse mais apetitosa. Foi dar-lhe gravemente um aperto de mão, outro ao escrevente, disse baixo, sem os olhar:
 
&mdash; Os meus parabéns... Os meus parabéns...
 
Voltou as costas, e foi conversar com o cônego que se enterrara na sua poltrona, queixando-se de enfastiamento e reclamando o chá.
 
Amélia ficara como abstrata, correndo inconscientemente os dedos pelo teclado. Aquele modo do padre Amaro confirmava a sua idéia: queria a
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todo o custo descartar-se dela, o ingrato! fazia "como se nada tivesse havido", o vilão! Na sua cobardia de padre, com o terror do senhor chantre, do jornal, da Arcada, de tudo - sacudia-a da sua imaginação, do seu coração, da sua vida como se sacode um inseto que tem peçonha!... Então, para o enraivecer, começou a cochichar ternamente com o escrevente; roçava-se lhe pelo ombro, rendida, com risinhos, segredinhos; tentaram, em alarido jovial, tocar uma peça a quatro mãos; depois ela beliscou-o, ele deu um gritinho exagerado. - E a S. Joaneira contemplava-os babosa, enquanto o cônego dormitava já, e o padre Amaro, abandonado a um canto como outrora o escrevente, ia folheando o velho álbum.
 
Mas um brusco repique da campainha veio sobressaltá-los todos: passos rápidos galgaram a escada, pararam embaixo na saleta; e a Ruça apareceu dizendo "que era o Sr, padre Natàrio, que não desejava subir, e queria dar uma palavra ao senhor cônego".
 
&mdash; Fracas horas para embaixadas, rosnou o cônego, arrancando-se com custo ao fundo confortável da poltrona.
 
Amélia fechou logo o piano - e a S. Joaneira pousando a meia foi em bicos de pés escutar ao alto da escada: fora ventava forte, e para os lados da Praça afastava-se o toque de retreta.
 
Enfim a voz do cônego chamou, de baixo, da porta da saleta:
 
&mdash; Ó Amaro?
 
&mdash; Padre-mestre?
 
&mdash; Venha cá, homem. E diga à senhora que pode vir também.
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A S. Joaneira desceu logo, muito assustada: Amaro imaginava que o padre Natàrio enfim descobrira o liberal!
 
A saleta parecia muito fria com a luz pequenina da vela sobre a mesa: e na parede, num velho painel muito escuro - que ultimamente o cônego dera à S. Joaneira - destacava uma face lívida de monge e um osso frontal de caveira.
 
O cônego Dias acomodara-se ao canto do canapé, sorvendo refletidamente a pitada: e Natário, que se agitava pela sala, exclamou logo:
 
&mdash; Boas noites, senhora! Olá, Amaro! Trago novidades!... Não quis subir porque imaginei que estaria o escrevente, e estas coisas são cá para nós. Estava a começar a dizer ao colega Dias... Tive lá em casa o padre Saldanha. Temo-las boas!
 
O padre Saldanha era o confidente do senhor chantre. E o padre Amaro, já inquieto, perguntou:
 
&mdash; Coisa que nos toca?
 
Natário começou com solenidade erguendo alto o braço:
 
&mdash; Primo: o colega Brito mudado da freguesia de Amor para ao pé de Alcobaça, para a serra, para o inferno...
 
&mdash; Que me diz? exclamou a S. Joaneira.
 
&mdash; Obras do liberal, minha senhora! O nosso digno chantre levou-lhe tempo a meditar o Comunicado do Distrito, mas por fim saiu-se! O pobre Brito lá vai esfogueteado!...
 
&mdash; Sempre é o que se dizia da mulher do regedor, murmurou a boa senhora.
 
&mdash; Olá! interrompeu severamente o cônego. Então, senhora, então! Isto aqui não é casa de murmuração!...
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Siga com o seu recado, colega Natário.
 
&mdash; Secundo, continuou Natàrio: é o que eu ia dizer ao colega Dias... O senhor chantre, em vista do Comunicado e de outros ataques da imprensa, está decidido a "reformar os costumes do clero diocesano", palavras do padre Saldanha. Que lhe desagradam sumamente os conciliábulos de eclesiásticos e de senhoras... Que quer saber o que é isso de sacerdotes ajanotados tentando meninas bonitas... Enfim, palavras textuais de sua excelência - está decidido a limpar as cavalariças de Augias!... - o que quer dizer em bom português, minha senhora, que vai andar tudo numa roda-viva.
 
Houve uma pausa consternada. E Natário, plantado no meio da saleta com as mãos enterradas nas algibeiras, exclamou:
 
&mdash; Que lhes parece esta à última hora, hem?
 
O cônego ergueu-se pachorrentamente:
 
&mdash; Olhe, colega, disse, entre mortos e feridos há-de escapar alguém. E a senhora não se fique ai com essa cara de Mater dolorosa, e mande servir o chá, que é o importante.
 
&mdash; Eu lá disse ao padre Saldanha... - começou Natário perorando.
 
Mas o cônego interrompeu-o com força:
 
&mdash; O padre Saldanha é um patarata!... Vamos nós às torradinhas, e lá em cima, diante dos rapazes, caluda.
 
O chá foi silencioso. O cônego, a cada bocado de torrada, respirava afrontado, franzia muito o sobrolho: a S. Joaneira, depois de falar da D. Maria da Assunção que estava mal do catarro, ficou toda
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murcha, com a testa sobre o punho. Natário, a grandes passadas, fazia uma ventania na sala com as abas do casacão.
 
&mdash; E quando vem essa boda? exclamou ele, estacando subitamente diante de Amélia e do escrevente, que tomavam o chá sobre o piano,
 
&mdash; Um dia cedo, respondeu ela sorrindo.
 
Amaro então ergueu-se devagar, e tirando o seu cebolão:
 
&mdash; São horas de me ir chegando à Rua das Sousas, minhas senhoras, disse com uma voz desalentada.
 
Mas a S. Joaneira não consentiu. Credo, estavam todos monos como se estivessem de pêsames!... Que fizessem um quino para espairecer... - O cônego porém, saindo do seu torpor, disse com severidade:
 
&mdash; Está a senhora muito enganada, ninguém está mono. Não há razões senão para estar alegre. Pois não é verdade, senhor noivo?
 
João Eduardo mexeu-se, sorriu:
 
&mdash; Eu cá por mim, senhor cônego, não tenho razão senão para estar feliz.
 
&mdash; Pois está claro, disse o cônego. E agora Deus lhes dê boas-noites a todos, que eu vou quinar para vale de lençóis. E o Amaro também.
 
Amaro foi apertar silenciosamente a mão de Amélia, - e os três padres desceram calados.
 
Na saleta a vela ainda ardia com um morrão. O cônego entrou a buscar o seu guarda-chuva; e então, chamando os outros, cerrando devagarinho a porta, disse-lhes baixo:
 
&mdash; Eu, colegas, não quis assustar há pouco a
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pobre senhora, mas essas coisas do chantre, esses falatórios... É o diabo!
 
&mdash; É ter cautelinha, meninos! aconselhou Natário, abafando a voz.
 
&mdash; É sério, é sério, murmurou lugubremente o padre Amaro.
 
Estavam de pé no meio da saleta. Fora o vento uivava: a luz da vela agitada fazia alternadamente destacar e reentrar na sombra do quadro o osso frontal da caveira: e em cima Amélia cantarolava a Chiquita.
 
Amaro recordava outras noites felizes em que ele, triunfante e sem cuidados, fazia rir as senhoras, - e Amélia, gorjeando Ai chiquita que si, revirava-lhe olhares rendidos...
 
&mdash; Eu, disse o cônego, os colegas sabem, tenho que comer e beber, não me importa... Mas é necessário manter a honra da classe!
 
&mdash; E não carece dúvida, acrescentou Natário, que se há outro artigo e mais falatórios, estala com certeza o raio...
 
&mdash; Olha o padre Brito, murmurou Amaro, esfogueteado para a serra!
 
Em cima decerto houve alguma graça, porque sentiram as risadas do escrevente.
 
Amaro rosnou com rancor:
 
&mdash; Grande galhofa lá em cima!...
 
Desceram. Ao abrir a porta uma rajada de vento bateu a face de Natário duma chuva miudinha.
 
&mdash; Olha que noite! exclamou furioso.
 
Só o cônego tinha guarda-chuva: e abrindo-o devagar:
 
&mdash; Pois meninos, não há que ver, estamos em calças pardas...
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Da janela de cima alumiada, saiam os sons do piano, nos acompanhamentos da Chiquita. O cônego soprava, agarrando fortemente o guarda- chuva contra o vento; ao lado Natário, cheio de fel, rilhava os dentes, encolhido no seu casacão; Amaro caminhava de cabeça caída, num abatimento de derrota; e enquanto os três padres, assim agachados sob o guarda-chuva do cônego, iam chapinhando as poças pela rua tenebrosa, por trás a chuva penetrante e sonora ia-os ironicamente fustigando!